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AS PALAVRAS E AS COISAS DE WILLIAM CARLOS WILLIAMS

William Carlos Williams não é, obviamente, um desconhecido no Brasil, mas mesmo assim, foi sempre relativamente ignorado, ao menos em comparação com outros poetas de sua geração (ou seja, do alto modernismo anglo-saxônico). O que é duplamente deplorável. De um lado, porque sua obra está entre as maiores do século XX. De outro, por ser um dos poetas mais importantes para o presente. Porque sua linguagem, que faz do menos mais, tem muito a ensinar em tempos de anemia e anomia poéticas. [1]

Passado o longo momento experimentalista dos modernismos, que de uma maneira ou de outra se entendeu até os anos 1970, a poesia contemporânea perdeu o norte. Desnorteada, sua marca maior, por infeliz ironia, é a antítese de todo rigor e de toda síntese, ou, numa palavra, o prosaísmo. Versos desmedidos, nos dois sentidos, inépcia rítmica e facilidades sintáticas, além de imprecisão semântica e irrelevância temática, grassam em versos sem gana e sem graça. Sim, muitos fazem pastiche da dicção de Cabral – mas um pastiche é um pastiche é um pastiche. De pouco valeu seu obstinado rigor sintático para seus êmulos, assim como, em outra direção mas no mesmo sentido extremo, não valeu nada a radical lição de síntese substantiva de um Cummings.

William Carlos Williams (1883-1963) trilharia um terceiro caminho moderno, o da pura depuração. E nele foi ao mais extremo dos extremos.

Assim como a montagem é o osso, a razão estruturante da linguagem cinematográfica, o corte é o coração da linguagem poética moderna. Pois é o corte que lhe dá o pulso, tanto no sentido do ritmo quanto da vitalidade. Abandonadas as formas fixas, a forma de cada poema é determinada pelo próprio poema. Se, de um lado, isso permite – no sentido de facultar – à linguagem poética moderna ser proteica, também lhe permite – no sentido de facilitar – ser amorfa. É mais difícil escrever um bom poema moderno do que um bom soneto. Pois nenhum soneto exige a criação congênita de um ritmo, dado que o ritmo do soneto é previamente estabelecido, tanto na métrica (o decassílabo heroico) quanto na rímica (as rimas pareadas e alternantes). Um bom poema moderno, por outro lado, sem balizas prévias, tem de criá-las enquanto se escreve. Escrever um poema moderno é criar uma forma poética (apesar de ela jamais se tornar uma fórmula). E essa forma rítmica é criada pelos cortes.

Williams é o mestre absoluto do corte moderno, o corte que não amputa, mas expõe. Seu corte, enquanto não fere a sintática, alimenta a poética, pois ao mesmo tempo determina o ritmo e gera as relações morfossemânticas. Mas como pode um corte gerar?

A linguagem poética de Williams é posicional: se nenhuma linguagem poética prescinde da seleção de palavras, poucas dependem tanto ou tão claramente dessa seleção quanto de sua posição, ou seja, de sua posição relativa. Palavras comuns em frases diretas ganham ressonância e força morfossemântica ao se posicionarem mutuamente, e terem suas posições marcadas pelos cortes, como dobras que ao mesmo tempo expõem, aproximam e evidenciam elementos antes invisíveis do verso de uma superfície plana.

beauty is a shell
from the sea
where she rules triumphant

Poucas palavras podem ser mais comuns do que shell, sea e she. Mas na abertura do poema “Song” (de Pictures from Brueghel, 1962),[2]  tais palavras, expostas pelas posições, evidenciadas pelo ritmo (as três ocupam posições próximas e decrescentes em cada verso, respectivamente na 4a., 3a. e 2a. sílabas métricas) e marcadas pela sonoridade confluente (xéu-si-xi), além de pela comum condição monossilábica, tornam-se elementos ao mesmo tempo adensadores da linguagem verbal e estruturantes dos versos livres.

O controle de Williams das mínimas unidades composicionais é evidente em um poema como o mais que famoso “The red wheelbarrow”. Por baixo da aparente simplicidade vocabular e sintática, há uma sutil complexidade poética, com todas as palavras de cada estrofe se relacionando formalmente entre si. Na primeira, “so much depends / upon”, upon funciona como uma síntese e uma recorrência das palavras anteriores, pois tem as vogais de sO mUch (UpOn) e as consoantes de dePeNds (uPoN). Isso se repete por todo o poema. Na segunda estrofe, “A red wheel / barrow”,  A REd é retomado em bARRow (arre/arr), assim como whEEL em barrOW (iu/ou). O mesmo se dá nas relações entre as palavras da terceira estrofe, “glazed with rain / water”, para se extremar na última, “besides the white / chikens”, em que todas as palavras têm as mesmas vogais. Além disso, todas as estrofes têm a mesma estrutura, ou seja, um verso de três palavras seguido de outro de uma palavra:

THE RED WHEELBARROW

so much depends
upon

a red wheel
barrow

glazed with rain
water

beside the white
chickens.[3]

Não poderia existir exemplo melhor de como o poema moderno cria a própria forma. Não há nada de fácil, ao contrário, na linguagem moderna, apesar da libertação das formas fixas. Trata-se, na verdade, do oposto da facilidade, como hoje esquecido.

Daí ser tão difícil traduzir o poema, para além das dificuldades normais da tradução de poesia. As duas versões que analisei são, por isso, muito parecidas – assim como são semelhantes suas qualidades e suas limitações. Pois estas não vêm dos tradutores, dos mais capazes, mas das dificuldades extremas que a linguagem precisa de Williams impõe.


O CARRINHO DE MÃO VERMELHO

tanta coisa depende
de um

carrinho de mão
vermelho

esmaltado de água de
chuva

ao lado das galinhas
brancas.

(trad. José Paulo Paes) [4]


O CARRINHO DE MÃO VERMELHO

tanta coisa depende
de

um carrinho de mão
vermelho

reluzente de gotas de
chuva

ao lado das galinhas
brancas.

(trad. José Agostinho Baptista) [5]

Minha própria versão se vale de uma traição ao seu famoso objeto, que de vermelho passa a marrom. Porque no original, a segunda estrofe, como referido, relaciona a red (o vermelho) com barrow (carro), e este com wheel (roda – pois carrinho de mão é “carro de roda”). Ora, não é possível relacionar em português o nome da cor do objeto com o nome do próprio objeto a não ser que essa cor ecoe carrinho e mão. Daí meu carrinho de mão ser marrom. Em compensação, mantive a estrutura de três palavras nos primeiros versos e uma nos segundos, e tentei ainda compensar um pouco a perda da relação tripla entre “besIdes the whIte / chIkens”, na última estrofe, fazendo uma de suas palavras se relacionar com a estrofe anterior (relUzindo/chUva/jUnto).

O CARRINHO DE MÃO MARROM

Tanta coisa depende
desse

carrinho de mão
marrom

reluzindo sob a
chuva

junto às galinhas
brancas.

Se uma palavra pode, enfim, resumir a poética de Williams, esta é precisão: o exato e o necessário. A necessidade da exatidão; a exatidão da necessidade. Nada mais. Nem menos. [6]


JERSEY LIRIC

view of winter trees
before
one tree

in the foreground
where
by fresh-fallen

snow
lie 6 woodchunks ready
for the fire[7]

LIRA DE JERSEY

visão de árvores no inverno
ante
uma árvore

em primeiro plano
onde
sobre a neve

nova
jazem 6 troncos prontos
para o fogo

Essa lição de precisão seria uma das grandes conquistas do alto modernismo. Lição imprevista e imprevisível, é verdade, pois o modernismo, na forma de simbolismo, nasceu como reação a certo objetivismo moderno (mas ainda não modernista) do realismo, bem como ao racionalismo positivista. O modernismo, portanto, nasceu subjetivista e irracionalista.

A busca por certa expressão individual, em termos formais, se revelaria porém o primeiro passo na superação das formas fixas tradicionais, que o questionamento consciente de sua exaustão histórica, feito a seguir pelo próprio modernismo, levaria um passo a frente e mais fundo. Não mais por uma questão de “expressão do verdadeiro eu lírico”, como no simbolismo, mas por uma necessidade de adequação da linguagem poética ao novo mundo industrial e urbano.

Junto com o antilirismo modernista, surge então um novo objetivismo – que difere daquele do realismo do século XIX por ser descrente das capacidades redentoras da linguagem. A linguagem não redime o homem. Mas pode, talvez, redimir-se ao se render às coisas.

Há algo de Francis Ponge em William Carlos Williams. Mas enquanto Ponge demandava incontáveis palavras para tentar dar conta de uma descrição prismática e exaustiva que jamais exauria a coisa detalhadamente descrita, Williams usa palavras contadas para descrever as coisas em poucos, pequenos e poderosos traços.

PASTORAL

When I was younger
it was plain to me
I must make something of myself.
Older now
I walk back streets
admiring the houses
of the very poor:
roof out of line with sides
the yards cluttered
with old chicken wire, ashes,
furniture gone wrong;
the fences and outhouses
built of barrel staves
and parts of boxes, all,
if I am fortunate,
smeared a bluish green
that properly weathered
pleases me best
of all colors.

No one
will believe this
of vast import to the nation.[8]

PASTORAL

Quando era mais jovem
estava certo
de que devia fazer algo da vida.
Agora mais velho
ando pelas vielas
admirando as casas
dos muito pobres:
telhados desalinhados,
quintais repletos
de velhas telas de arame, cinzas,
móveis estragados,
cercas e anexos
feitos de tábuas de barris
e pedaços de caixas, todos,
se eu tiver sorte,
sujos de um verde azulado
cuja pátina
me agrada mais
que qualquer cor.

Ninguém
acreditará que isso
importa tanto para o país.

Outra diferença é que os traços parcos mas poderosos de Williams também se prestam a descrever pessoas, além de coisas. Ainda que sejam pessoas através das coisas, como neste caso e nos próximos:

THE BARE TREE

The bare cherry tree
higher than the roof
last year produced
abundant fruit. But how
speak of fruit confronted
by that skeleton?
Though live it may be
there is no fruit on it.
Therefore chop it down
and use the wood
against this biting cold.[9]


A ÁRVORE DESFOLHADA

A cerejeira desfolhada
mais alta que o telhado
ano passado produziu
frutos abundantes. Como
porém falar de frutos diante
de tal esqueleto?
Mesmo se ainda forte
nela não há frutos.
Portanto a abatam
e usem a lenha
contra esse frio cortante.

TO A POOR OLD WOMAN

munching a plum on
the street a paper bag
of them in her hand

They taste good to her
They taste good
to her. They taste
good to her

You can see it by
the way she gives herself
to the one half
sucked out in her hand

Comforted
a solace of ripe plums
seeming to fill the air
They taste good to her[10]


A UMA MULHER POBRE

mastigando ameixas na
rua e um saco de papel
cheio delas na mão

São muito saborosas para ela
São muito saborosas
para ela. São
muito saborosas para ela

Você pode ver isso
no modo como se entrega
à metade
mordida em sua mão

Reconfortada
um quê de ameixas maduras
parece se espalhar no ar
Muito saborosas para ela

Ou coisas através de pessoas, como no poema seguinte (em que algumas meninas centram e concentram a rua vazia, as férias e o verão):

THE LONELY STREET

School is over.  It is too hot
to walk at ease.  At ease
in light frocks they walk the streets
to while the time away.
They have grown tall.  They hold
pink flames in their right hands.
In white from head to foot,
with sidelong, idle look —
in yellow, floating stuff,
black sash and stockings —
touching their avid mouths
with pink sugar on a stick—
like a carnation each holds in her hand —
they mount the lonely street.[11]

RUA VAZIA

Acabaram as aulas. Faz muito calor
para andar à toa. À toa
em vestidos leves, andam pelas ruas
para passar o tempo.
Cresceram bastante. Levam
na mão direita labaredas cor de rosa.
De branco da cabeça aos pés,
um olhar de lado, desocupado –
de amarelo, roupas soltas,
cinto e meias pretas –
tocando seus lábios ávidos
com açúcar rosado num palito –
como um cravo que cada uma leva –
elas vão pela rua vazia.

Williams minimiza os meios expressivos para maximizar os objetos assim expressos. O que inclui, naturalmente, o âmbito semântico. Neste caso, a luz e o calor do verão são transmitidos pelo claro porém sutil colorido da cena, verdadeira aquarela feita do branco e do amarelo dos vestidos e do rosa dos algodões-doces (as “labaredas cor de rosa”, o “açúcar rosado num palito”). Os mesmos vestidos e os mesmos algodões-doces que também transmitem leveza, além de cor, assim como as próprias meninas, de que são parte e metonímia.

Os mesmos elementos e os mesmos recursos reaparecem em outros poemas famosos, como “Nantucket” e “The yellow chimney” (em que o uso do enjambement por Williams, levado pela cena em que tudo se entrelaça, é ainda mais extremo).


NANTUCKET

Flowers through the window
lavender and yellow

changed by white curtains –
Smell of cleanliness –

Sunshine of late afternoon –
On the glass tray

a glass pitcher, the tumbler
turned down, by which

a key is lying – And the
immaculate white bed[12]

NANTUCKET

Flores à janela
lavanda e amarelas

filtradas por cortinas brancas –
Cheiro de limpeza –

Sol de fim de tarde –
No vidro da bandeja

um jarro, o copo
para baixo, ao lado

uma chave – E o
branco leito imaculado

THE YELLOW CHIMNEY

There is a plume
of fleshpale
smoke upon the blue

sky. The silver
rings that
strap the yellow

brick stack at
wide intervals shine
in this amber

light – not
of the sun not of
the pale sun but

his born brother
the
declining season[13]


A CHAMINÉ AMARELA

Há uma pluma
de fumaça rosa-pálida
contra o azul

celeste. Os anéis
de prata que
enlaçam o amarelo

cilindro de tijolos em
largos intervalos brilham
nesta luz

âmbar – não
do sol não
do pálido sol mas

de seu irmão de sangue
a
estação da queda.

Esses elementos e esses recursos podem, então, ser manipulados para transmitir sensações/percepções opostas às de “The lonely street” e “Nantucket”, como já insinuado em “The yellow chimney”:


THE WIDOW´S LAMENT IN THE SPRINGTIME

Sorrow is my own yard
where the new grass
flames as it has flamed
often before but not
with the cold fire
that closes round me this year.
Thirtyfive years
I lived with my husband.
The plumtree is white today ]
with masses of flowers.
Masses of flowers
load the cherry branches
and color some bushes
yellow and some red
but the grief in my heart
is stronger than they
for though they were my joy
formerly, today I notice them
and turn away forgetting.
Today my son told me
that in the meadows,
at the edge of the heavy woods
in the distance, he saw
trees of white flowers.
I feel that I would like
to go there
and fall into those flowers
and sink into the marsh near them.[14]

O LAMENTO DA VIÚVA NA PRIMAVERA

A dor é meu quintal
onde a grama nova
queima como queimou
outrora, porém não
como o fogo frio
que me cerca agora.
Trinta e cinco anos
vivi com meu marido.
Hoje a ameixeira está branca
de tantas flores.
Tantas flores
carregam seus galhos
e cobrem os arbustos
de amarelo e vermelho
mas as cinzas em meu coração
são maiores
pois embora minha alegria
outrora, hoje se as vejo
me afasto e me esqueço.
Hoje meu filho me disse
que nos prados
à beira do grande bosque,
ao longe, ele viu
árvores de flores pálidas.
Acho que gostaria
de ir lá
e mergulhar nessas flores
e afundar no pântano perto delas.

O minimalismo maximizado de Williams também lhe faculta tratar de pequenos gestos, além de pequenas coisas (e de coisas maiores feitas de outras menores).

THE RIGHT OF WAY

In passing with my mind
on nothing in the world

but the right of way
I enjoy on the road by

virtue of the law –
I saw

a elderly man who
smiled and looked away

to the north past a house –
a woman in blue

who was laughing and
leaning forward to look up

into the man’s half
averted face

and a boy of eight who was
looking at the middle of

the man’s belly
at a watchchain –

The supreme importance
of this nameless spectacle

sped me by them
without a word –

Why bother where I went?
for I went spinning on the

four wheels of my car
along the wet road until

I saw a girl with one leg
over the rail of a balcony.[15]

O DIREITO DE IR

Ao passear sem pensar
em nada além

do direito de ir
desfruto do caminho por

virtude da lei –
vi

um velho homem que
sorriu e olhou além

de uma casa –
uma mulher de azul

ria e
se inclinava para

o rosto meio
virado de um homem

e um menino que
olhava no meio da

barriga do homem
a corrente do relógio –

A suprema importância
desse espetáculo anônimo

levou-me veloz por eles
sem uma palavra –

Que importa para onde?
segui rodando sobre

as quatro rodas do meu carro
pela estrada molhada até que

vi uma garota com uma perna
posta no beiral de um balcão.

Mas talvez o poema mais representativo de Williams, em que pese “The red wheelbarrow” ser o mais conhecido, seja “Poem”. Nele, seu minimalismo e seu objetivismo são postos para descrever a microcena de um gato sobre um armário de cozinha. Mas Williams na verdade não descreve, nem tenta descrever. Ele reproduz, representa, no sentido de reapresentar, com um mínimo de elementos maximizados, a cena observada. Se, de um lado, as palavras são semanticamente precisas (também no sentido de necessárias), por outro, são formalmente expostas pelos cortes e imantadas pela proximidade, de forma a tornar evidente, porque real, sua articulação rítmica, que captura os movimentos articulados e delicados do gato (mais claro na última estrofe, com a sequência pit/empty/pot).

POEM

as the cat
climbed over
the top of

the jamcloset
first the right
forefoot

carefully
then the hind
stepped down

into the pit of
the empty
flower pot[16]

Se, por um lado, a precisão de Williams torna a tradução deste poema particularmente difícil, por outro, a torna paradoxalmente fácil.

Das três versões em português que analisei, a primeira, de José Paulo Paes, é, no entanto, estranhamente prosaica (o que talvez se explique pelo escopo de seu trabalho: Paes era um pedagogo, que traduzia continuamente em parte para fechar lacunas na bibliografia nacional; ele foi, aliás, um dos que mais fez pela divulgação de Williams no Brasil, com a publicação de William Carlos Williams – poemas [São Paulo, Cia das Letras, 1987]). A tradução menos satisfatória, porém, é a de Rodrigo Garcia Lopes – enquanto a melhor é a de Alcir Pécora e de Paulo Franchetti.

Consequência de tentar dar ao poema certa conotação metalinguística, que parece partir de uma sugestão do título, “Poem”, e de uma tradução possível do primeiro verso, “as the cat”, vertido para “como o gato” – tornando o animal solitário, ágil, preciso e cauteloso, a imagem do poeta em ação –, Garcia Lopes escorrega em dois gerúndios, “trepando” e “descendo”, enquanto não sustenta nada disso, pois Williams não faz sugestões, e o primeiro verso é, na verdade, corretamente traduzido por “assim que o gato”.

POEMA

como o gato
trepando
no topo da

prateleira
primeiro a pata
da frente

com cautela
depois a traseira
descendo

dentro do vaso
de flores
vazio

A última estrofe da tradução de Lopes é, em todo caso, quase idêntica à de Paes – que identicamente perde as relações formais e rítmicas da tripla aliteração de pit/empity/pot (culminação do poema), contentando-se com a aliteração dupla de vaso/vazio:

POEMA

Ao trepar sobre
o tampo do
armário de conservas

o gato pôs
cuidadosamente
primeiro a pata

direita da frente
depois a de trás
dentro

do vaso
de flores
vazio.

A tradução de Pécora e Franchetti é, semanticamente, a mais precisa.

POEMA

Quando o gato
subiu no
topo do

guarda-geleias
primeiro a pata direita
da frente

cuidadosamente
depois a traseira
desceu

ao fundo
do vaso de flores
vazio

Referi acima uma paradoxal facilidade tradutória que esse poema teria. Tomo como exemplo a palavra jamcloset, que abre a segunda estrofe ecoando os vários tt finais mudos do poema (forefoot, pit, pot), sendo o primeiro o da própria palavra cat. A opção de Paulo Paes por armário de conversas é tão pouco defensável quanto a prateleira de Garcia Lopes, enquanto o guarda-geleias de Pécora e Franchetti mantém toda a precisão semântica, além de ecoar gato nos gg. Ainda assim, ela me parece pouco sintética, pouco simples e pouco corriqueira, o que então contrariaria a dicção de Williams. A mera palavra armário, ao ecoar gato nas vogais, talvez pudesse ser suficiente, e ao sê-lo, fazer mais com menos, williamsianamente.

Outro exemplo é o verbo stepped down – que Paulo Paes traduz por pôs e Garcia Lopes por um estranho gerúndio, descendo, enquanto Pécora e Franchetti o vertem literalmente, desceu. A melhor solução, porém, talvez esteja na própria precisão gestual do original: pois o gato não pôs simplesmente a pata no vaso, tampouco meramente a desceu, mas a pôs para baixo & para dentro: depôs. Opção que se reforça por haver antes um then, passível de ser traduzido por depois – e de fato assim traduzido nas três versões analisadas.

No caso do advérbio carefully, tanto Paes quanto Pécora e Franchetti optam pelo literal e correto cuidadosamente. Mas como toda tradução é um incontornável jogo de perdas e ganhos, que se perde ao não se contrapor ganhos às perdas, a expressão adverbial com cuidado seria talvez mais williamsiana, na aliteração em c, no ritmo marcado, nas palavras menores e, por fim, na recorrência sonora com gato (Garcia Lopes opta por com cautela, sem ganhar em solução formal).

A tripla aliteração final, pit/empty/pot, possui dois substantivos, pit (fenda, cova), e pot (pote). Paulo Paes e Garcia Lopes, com “dentro do vaso / de flores / vazio”, além de se contentarem com a relação dupla de vaso/vazio, perdem um substantivo por um advérbio, dentro – o que Pécora e Franchetti não fazem, ao traduzir pit pelo substantivo o fundo. Por que não, então, um substantivo que recupere a tripla aliteração, como o cavo (isto é, o oco)?

Enfim, tentei tirar proveito de seu trabalho e da análise de seus acertos e suas potencialidades não exploradas em minha própria versão:

POEMA

o gato
ao agarrar-se
no alto do

armário
primeiro a pata
direita

com cuidado
depois a traseira
depôs

no cavo do
vazio
vaso de flores

Termino com um poema metalinguístico, em que aparece a frase depois tornada uma espécie de lema williamsiano: “No ideas / but in things” (“Sem ideias, mas em coisas”).

A SORT OF SONG

Let the snake wait under
his weed
and the writing
be of words, slow and quick, sharp
to strike, quiet to wait,
sleepless.
– through metaphor to reconcile
the people and the stones.
Compose. (No ideas
but in things) Invent.[20]

UMA ESPÉCIE DE CANÇÃO

Que a víbora fique à espera sob
suas ervas daninhas
e a escrita
seja de palavras, lentas e rápidas, prontas
para o ataque, quietas na tocaia,
sem sono.
– pela metáfora reconciliar
pedras e pessoas.
Compor. (Sem ideias
mas em coisas) Criar.


Notas

[1] Em 2005, Alcir Pécora e Paulo Franchetti tentaram introduzir Williams em leituras semanais de poesia que realizavam então na Unicamp, porém o público, antes mantido pela leitura de Eliot, evaporou (seu trabalho, em todo caso, resultou em algumas belas traduções). Cf. “Olhar minimalista”, http://www.germinaliteratura.com.br/enc_pecorafranchetti_out5.htm.
[2] Antologia breve, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p. 86 (ed. bilíngue, sel. e trad. José Agostinho Baptista).
[3] De Spring and all (1923), opus cit., p. 30.
[4] “Poemas de William Carlos Williams”, http://www.scielo.br/pdf/ea/v2n1/v2n1a06.pdf.
[5] Opus cit., p. 31.
[6] Todas as traduções são de minha autoria, salvo indicação contrária.
[7] De Pictures from Brueghel (1962), opus cit., p. 88.
[8] De Al que quiere! (1917), idem, p. 10.
[9] De The Wedge (1944), idem, p. 78.
[10] De An Early Martur (1935), idem, p. 46.
[11] De Sour Grapes (1921), idem, p. 24.
[12] De Collected Poems 1921-1931 (1934), idem, p. 36.
[13] De The Wedge (1944), idem, p. 76.
[14] De Sour Grapes (1921), idem, p. 20.
[15] De Spring and all (1923), idem, p. 26.
[16]Http://www.americanpoems.com/poets/williams/4510.
[17]Http://estudiorealidade.blogspot.com/2010/08/poema-william-carlos-williams-traducao.html.
[18] Http://www.scielo.br/pdf/ea/v2n1/v2n1a06.pdf.
[19] Http://www.germinaliteratura.com.br/enc_pecorafranchetti_out5.htm.
[20] De The Wedge (1944), opus cit., p. 70.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).