Rapidamente a internet passou a ser usada em larga escala por todos. Mal nos damos conta da profundidade da revolução em curso por ela induzida. Como analistas, devemos estar atentos a tais mudanças e suas inevitáveis repercussões no espaço psíquico.
Como uma introdução mais densa à questão, nada melhor do que seguir as considerações dos pensadores franceses Alain Finkielkraut e Paul Soriano, proferidas em 2001 em conferências realizadas na Fundação 2 de Março (instituição antes chamada Fundação Marc Bloch). Nestes tempos de rápida obsolescência, especialmente neste campo, poderíamos temer que as ideias ali expostas já tivessem envelhecido. Não é o caso, como veremos a seguir.
Finkielkraut intitulou a sua participação como “Liberdade Fatal”, inspirado numa expressão cunhada por Fellini. O cineasta italiano pensava que a televisão roubara a grandeza e a magia do cinema ao transportá-lo para a pequena tela de um eletrodoméstico. A situação, em sua opinião, se agravara ainda mais com a invenção do controle remoto, que dá um ilimitado poder ao espectador, pois com ele passa a afastar qualquer conteúdo que o provoque ou incomode, gozando assim de uma liberdade excessiva, “fatal”.
Como Felini frente ao advento da televisão, Finkielkraut se posiciona de forma um tanto conservadora frente à internet. Mostra-se reticente com a opinião generalizada que a vê como uma grande aquisição tecnológica que traz inúmeros benefícios culturais. Desconfia de sua capacidade de avaliação, registro e controle social, que – a seu ver – deixa o cidadão exposto ao grande capital ou ao estado.
Finkielkraut cita Michel Alberganti numa comparação da escola do século XIX com as do século XXI. As primeiras tiveram como modelo o cárcere e a igreja. Eram centralizadoras, verticalizadas e exigiam uma escuta respeitosa e intimidada do mestre por parte do aluno. As escolas do nosso século são regidas pela abertura, horizontalidade e interatividade entre professor e aluno.
Mesmo lhe reconhecendo os aspectos negativos, Finkielkraut parece nostálgico em relação à escola antiga, desde que, no modelo atual, toda hierarquia periga desaparecer e os alunos podem ilusoriamente se igualar com os professores e mesmo com os autores dos grandes textos. Esta transformação dos modelos de escola fica bem ilustrada, em sua opinião, pela transformação do conceito de “obra” em “texto”, preconizada por Barthes. Se antes a “obra” era vista quase como uma inscrição sagrada da qual se fazia uma exegese, ao transformá-la num mero “texto”, Barthes autoriza qualquer um a ter uma intimidade desrespeitosa com o autor, permitindo-se a fazer intervenções e interpretações arbitrárias, decorrentes do desconhecimento de inúmeros referenciais que cercam uma “obra”.
Diz ele que a internet traz uma antinomia inesperada. Até então os que defendiam o direito e a justiça social sempre lutaram contra a falta de liberdade. Com a internet, há uma reversão, pois talvez se tenha de lutar contra o excesso de liberdade. Para Finkielkraut a “liberdade fatal” é um correlato do narcisismo, possibilitado pelo enfraquecimento da figura paterna, como bem ilustra o “parricídio” preconizado por Barthes ao rebaixar a “obra” ao estatuto de “texto”.
Para ele, a internet dissolve toda hierarquia, respeito, sacralidade, alteridade e transcendência, reduzindo tudo isso a informação e interação. Lamenta ele a exuberante anarquia, o discurso uniforme, as repetições, as apropriações, as diluições, as trivialidades, a boa-fé e a ingenuidade propiciadas pela internet, assim como a confusão entre fronteiras, a abolição das diferenças entre público e privado, o ser e o parecer, o consumidor e o cidadão.
Finkielkraut teme que a internet banalize o ato da escrita, na medida em que permite que qualquer um – seja qual for sua qualificação, nível cultural ou talento – possa escrever e tornar pública sua produção, arvorando-se à posição de “autor”, o que poderia levar a uma indiscriminação generalizada, penalizando a literatura e os grandes textos, nivelando por baixo o trabalho do gênio humano.
Seu texto, escrito em 2001, antecipa a explosão dos blogs que aconteceria logo depois. Se tem ele razão em apontar que a internet favorece o narcisismo ao facilitar a publicação de banalidades autocentradas, por outro lado, é difícil pensar que com isso a literatura corra perigo.
Para Finkielkraut, a internet parece anunciar o fim da era do recolhimento e verticalidade, apregoando a da abertura e horizontalidade. Seu temor é que fiquem sacrificadas a meditação e o recolhimento – imprescindíveis para a verdadeira criação e produção de conhecimento, substituídas ilusoriamente pela agitação e a comunicação.
A tecnologia, da qual a internet é um dos últimos rebentos, faz com que aquilo que na esfera do humano era considerado não manipulável fique cada vez mais reduzido. Segundo ele, perde-se a ideia de progresso e se ganha a de aperfeiçoamento, perfectibilidade, superação continua, sem limites. Mais uma vez, vislumbra-se o fantasma do narcisismo entronizado.
De modo geral, o enfoque de Finkielkraut sobre a internet é o de apreensão, que o leva a temer que ela coloque em risco valores culturais que devem ser preservados, ao dar prioridade à comunicação e informação imediatas, deixando de lado o fato de que a produção intelectual não se dá instantaneamente – exige silêncio, tempo, meditação, recolhimento. Além disso, Finkelkraut escolhe um ângulo muito estreito para analisá-la, centrado no ato de escrever e de ler, no texto e hipertexto, nas possibilidades de leituras e intervenções no texto, na oposição entre a literatura e as platitudes dos blogs.
Já a conferência de Paul Soriano – intitulada “O zero-um e o infinito – um humanismo sem homem?” – aborda a internet de forma mais ampla.
Soriano parte do pressuposto de que vivemos no que chama de “sociedade em rede”, na qual convergem vários conceitos – internet, globalização, logística planetária dos fluxos imateriais e materiais e crise das regulações e instituições.
Três fatores produzem a “sociedade em rede” – o tecnológico, o econômico e o ideológico.
Do lado técnico, temos a internet (“dispositivo informático que permite teoricamente interconectar todos os homens do planeta e que lhes permite a cada um o acesso a toda informação digitalizada”) e a engenharia genética, que pode intervir no cerne de processos vitais. As duas revoluções estão estreitamente relacionadas.
Na ordem econômica, constata-se o triunfo da esfera comercial, que passa a colonizar de forma definitiva a existência humana. Ao contrário do que dizia Weber, o desejo não é mais o inimigo da moral capitalista ascética. Pelo contrário, é o motor de sua criatividade. Desenvolve-se uma “economia do desejo” que se espalha no universo das redes de comunicação e nas logísticas de distribuição, organizando uma lógica do acesso ao produto.
Quanto ao aspecto ideológico, fomenta-se a mobilização dos desejos, que estimula a transgressão, o nomadismo, a indiferenciação, a ponto de estabelecer uma intolerância fóbica por qualquer limite ou fronteira que separem ou discriminem países, sexos, produções do espírito e até mesmo – via engenharia genética – as espécies vivas.
“A revolução em curso não é apenas tecnológica, econômica, política e cultural, ela tem um alcance antropológico, pois afeta nossa experiência íntima dos fundamentos da existência humana – o tempo, o espaço, a memória, a identidade, as instituições, a vida, e o que se chama ‘real’” – afirma Soriano.
No que diz respeito ao tempo, a rede propicia a experiência de um eterno presente, constitui-se numa presença permanente, que rompe com a periodização tradicional da vida corriqueira – tempo de trabalhar, de descansar, de se divertir, de se formar. Ficam depreciadas as atividades que requerem duração, que só podem ser executadas num tempo extensivo – ler, escrever, falar, estudar, pensar, rezar, deliberar, legislar, governar. Poderíamos aqui acrescentar o psicanalizar.
A forma peculiar pela qual a rede dimensiona o espaço faz com que Soriano cunhe um novo significante – “glocal” – uma mistura de “global” e “local”, pois ela fica fortemente polarizada entre estes dois extremos.
Em relação à comunicação, espaço e tempo são referências obrigatórias, daí a importância do território, que é combinação destes dois elementos. Com a rede, as antigas referências de tempo, espaço e território deixam de ser estruturais e passam a ser conjunturais.
De forma ainda mais extrema, a engenharia genética se dispõe a transpor uma fronteira até então intransponível, a que separa as espécies.
Ao abolir qualquer delimitação de fronteiras, a rede coloca em questão os territórios institucionais ou simbólicos. Um bom exemplo é dado por Soriano ao citar a arte cibernética, “uma arte sem obra, sem artista, sem público e sem crítica”, apesar de exposta a todos. A horizontalidade e o imediatismo da rede comprometem os atributos essenciais da arte, favorecendo o narcisismo e o autoengano.
Em Fedro, Platão se preocupava com a perda da memória enquanto atributo pessoal, o que seria induzido pela linguagem escrita, desde que ela possibilita registros e arquivos externos à mente. A capacidade de registrar e arquivar da rede é praticamente incomensurável.
As redes de comunicação, o comércio e a supressão da memória promovem uma homogeneização planetária. Por outro lado, em função das comunidades virtuais, elas viabilizam uma reafirmação identitária. Uniformização e fragmentação são dois aspectos do já referido espaço “glocal”.
Na “sociedade de rede” as identidades não mais são estáveis, baseadas que eram na tradição e nos costumes, na história, na política ou na ideologia. As identidades pós-modernas tendem a ser fluidas, escolhidas, não predeterminadas. Um bom exemplo disso são os personagens imaginários criados pelos usuários nas comunidades virtuais.
Soriano levanta uma interessante questão – se a internet pode digitalizar tudo, seria necessário manter tão dispendiosamente museus, escolas, bibliotecas, parlamentos, igrejas? Será necessário continuar produzindo livros?
Dizendo de outra maneira, como ficam as instituições depois do advento da internet, qual é o impacto que esta causa nelas?
O que se depreende desta questão é a relação entre duração e instituição. Frente ao imediatismo instantâneo da internet, a fluidez das identificações, o rápido trânsito da informação, contrapõe-se à duração, o tempo extenso próprio das instituições. Elas acolhem e protegem o direito de cada um gozar desta duração, de se defenderem contra a ininterrupta irrupção dos acontecimentos e informações, que são por elas mantidos à distância. As instituições protegem a necessidade de pensar, refletir, meditar. A vitalidade de uma instituição, diz Soriano, pode ser aferida hoje pelo poder de impor ao usuário o desconectar-se da rede ao ingressar em seu recinto, como acontece ao se pedir para desligar celulares e pagers no cinema, no teatro e outros lugares semelhantes.
Das instituições, as mais ameaçadas de obsolescência pela “sociedade em rede” são as políticas, pois elas necessitam de fronteiras, identidades estáveis, territórios bem delimitados, fortes tradições – tudo enfim que a rede tem abalado profundamente. Como consequência disso, instala-se uma crise das regulações. As leis ficam difíceis de aplicar e se impõe a necessidade de organizar novas formas de regulação.
“A rede possibilita a utopia de uma ágora, mas como realizá-la sem compartilhar os mesmos códigos identitários que permitiriam uma discussão?” – pergunta Soriano.
A rede dissolve o poder e instala um mais sutil, o seu próprio. Tal poder é mais perigoso, pois as organizações na rede ficam virtuais, não sofrem o desgaste real e se reorganizam conjunturalmente, o que as deixa extremamente resistentes. As redes nos aprisionam e, no futuro, é possível que haja duas classes – os que podem e os que não podem desconectar-se da rede.
A questão “virtual” versus “real” é muito antiga e já preocupava Platão e Aristóteles, lembra Soriano. O cibermundo está mais próximo de Platão. Nele, as ideias platônicas são substituídas pelo código binário, cujo domínio a tudo pode alterar, produzir, reproduzir, até mesmo o código genético, cuja manipulação pode alterar seres vivos.
O real não desaparece de todo na rede, mas fica como um território desvalorizado, produzível e reproduzível. A desvalorização do real afeta inclusive aquilo que, até o dia de hoje, considerávamos como o mais real no real, nosso próprio corpo.
Fukuyama diz que a biotecnologia nos dará ferramentas para levar a cabo aquilo que a engenharia social não conseguiu fazer e, com isso, teremos acabado a história humana, pois teríamos abolido o ser humano tal como o conhecemos até o presente. “Começaremos então uma nova história, mais além do humano”, diz ele.
Se isso assusta a muitos, não é o que ocorre com Isabelle Rieusset-Lemarié, citada por Soriano. Para ela, o “mais além do humano” abre perspectivas estimulantes. A futura sociedade de clones entrevista por Fukuyama não seria um universo asséptico e uniforme, seria a proliferação de criaturas transgênicas que poderiam expressar singularidades únicas, concretizando uma arte viva, que usaria como matéria-prima a própria vida.
Soriano pensa que o maior risco da internet é a massificação e a intolerância contra aqueles que não querem entrar na rede, os que querem ficar desligados por pensarem que assim mantêm a individualidade e os valores que lhes são caros. Lembra que toda inovação tecnológica é recebida com muita ambivalência – a desconfiança por parte de uns e a pronta aceitação por parte de outros.
Soriano termina sua fala de maneira poética, evocando as figuras de Penélope, aquela que tecia sem parar sua “rede”, e Ulisses, o maior dos navegantes, que bem poderia ser o patrono dos atuais internautas. É através delas que expressa o desejo de que a humanidade saiba lidar com esta importante aquisição tecnológica e possa integrá-la com o valioso acervo que a cultura já produziu até então.
Resenha de Internet, el éxtasis inquietante, de Alain Finkielkraut e Paul Soriano. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2006, 96 p.