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A despedida de Trisha Brown

1) A LENDÁRIA DANÇARINA ENCERRA SUAS ATIVIDADES

Dirce Waltrick do Amarante

A dançarina, performer, coreógrafa e desenhista norte-americana Trisha Brown, uma das precursoras da dança pós-moderna, anunciou oficialmente o encerramento de suas atividades frente a sua companhia, The Trisha Brown Dance Company. A despedida culminou com aclamadas apresentações na Howard Gilman Opera House, em Nova York, entre 30 de janeiro e 2 de fevereiro de 2013.

A lendária artista sofreu, nos últimos anos, uma série de pequenos derrames que afetaram a sua fala e a debilitaram muito. Em dezembro de 2012, aos 76 anos de idade, ela anunciou que duas das performances que apresentaria na Howard Gilman Opera House seriam as suas últimas coreografias.

Discípula de Merce Cunningham, Trisha Brown incorporou à sua arte movimentos extremamente estudados – “estruturas matemáticas complexas e construções coreográficas detalhadas”, como afirma o estudioso Philip Bither –, sem abrir mão, porém, do acaso e das improvisações. Mesclou espaços horizontais e verticais, e fez uso de elementos fílmicos e plásticos em suas apresentações. Alguns trabalhos importantes de Trisha Brown contaram com a colaboração de Robert Rauschenberg, Laurie Anderson e Mikhail Baryshnikov, entre outros artistas.

Brown nunca permitiu que modelos do teatro tradicional restringissem sua criatividade. Foi uma das pioneiras do site especific, criando performances de acordo com o espaço escolhido, como Man walking down the side of the building [Homen descendo o lado do edifício], de 1970, em que um performer caminhou suspenso por cordas na parede lateral de um prédio de sete andares no SoHo, Nova York.

A artista nunca escondeu os equipamentos que permitiam a seus dançarinos desafiar a gravidade e criar movimentos aéreos ou, ainda, estender as possibilidades de seus corpos. Esse procedimento experimental exigiu o uso de cabos, trampolins etc., e foi depois explorado por outras companhias de danças ao redor do mundo, entre elas a da brasileira Deborah Colker.

Acima de tudo, Brown descartou da sua dança elementos que considerava “artificiais”. Assim, o figurino clássico foi substituído por roupas do dia a dia, como pijamas, e os elementos cênicos tradicionais deram lugar à exploração arquitetônica do espaço e ao uso de objetos comuns, como ventiladores. Esses aparelhos, além de ajudarem a colocar em movimento os famosos pijamas, também contribuíram para compor a trilha sonora do espetáculo. Foi o que se viu na temporada de despedida da coreógrafa. Para Brown, no entanto, movimento e música são dois sistemas independentes e não necessariamente interligados.

Natural de Aberdeen, Washington, Trisha Brown estudou na Califórnia e se mudou para Nova York em 1961, onde ajudou a criar o grupo Judson Dance Theater, que abandonou a música nas suas apresentações, preferindo à trilha sonora convencional o silêncio, o som eletrônico e os ruídos da natureza.

A distribuidora Magnus Opus lançou no Brasil, em 2010, dois ótimos DVDs com algumas apresentações famosas de Trisha Brown e seu grupo, sob o título Early works 1966-1979, volumes I e II. O primeiro volume traz, entre outras coreografias, a célebre “Homemade” [Feito em casa], de 1966.

2) A ÚLTIMA COREOGRAFIA

Sérgio Medeiros

Trisha Brown disse adeus, mas sua companhia de dança continuará em atividade, pois inicia em breve uma turnê internacional de despedida que durará três anos. Apesar de seus problemas de saúde terem se agravado nos últimos anos, ela continuou coreografando até o outono de 2011 e, nos meses seguintes, manteve contato regular com os bailarinos sob seu comando. Agora, com séria dificuldade de comunicação, tudo acabou: Trisha Brown não é mais a diretora artística da companhia que leva seu nome. Essa decisão foi anunciada em dezembro de 2012, de modo que o público que compareceu à Academia de Música do Brooklyn, no gelado inverno nova-iorquino, entre 30 de janeiro e 2 de fevereiro, assistiu às duas últimas coreografias assinadas pela artista antes da aposentadoria: “Les yeux et l’âme” [Os olhos e a alma], de março de 2011, e “I’m going to toss my arms – if you catch them they’re yours” [Lançarei meus braços – se você os pegar são seus], de outubro de 2011.

O programa incluiu também duas importantes obras antigas, “Homemade” [Feito em casa], de 1966, e “Newark (Niweweorce)”, de 1987. Das duas excelentes coreografias mais recentes, a última foi a que mais me impressionou. Nessa obra longa, os bailarinos (quatro homens e quatro mulheres) dançam usando roupas largas como pijamas diante de grandes ventiladores postados num dos lados do palco. Os aparelhos discretamente ruidosos inflam as roupas que vão se soltando aos poucos dos corpos em movimento e depois deslizam livremente pelo palco vazio, impulsionadas pela brisa. As peças de roupa branca se movem devagar ou com pressa, ou primeiro com pressa e depois devagar (descrevo exatamente o que vi), mas não desaparecem do palco nem caem dele, embora isso obviamente também possa acontecer. As peças vão parando trêmulas aqui e ali, e algumas ainda deslizam um pouco mais para a frente ou para o lado.

Essa delicada e inesperada “dança” de roupas sem bailarinos que um vento contínuo finalmente arrastou para o centro do palco enquanto ao fundo um músico tocava piano foi um dos momentos mais tocantes da última coreografia de Trisha Brown. Livres dos pijamas, os bailarinos finalmente tomaram o palco e dançaram usando coloridas roupas de banho como se estivessem numa praia tropical. Decididamente, essa obra de despedida não é melancólica (não fala da desmaterialização do performer), mas energética, na qual tudo se move e tudo vibra ao mesmo tempo o tempo todo. Trisha Brown despiu os bailarinos de suas peças de roupa e deu a estas “vida própria” no palco, mas elas não se tornaram assombrações nem substituíram a artista ausente. Tampouco se pode afirmar que os pijamas são casulos de que os bailarinos se livraram para melhor exercer sua arte ou atingir a plena liberdade de movimento, numa passagem do sono à vigília. Isso seria pouco sutil ou elementar demais para os altos padrões criativos da exigente Trisha Brown.

Tudo ganha autonomia na última coreografia da artista norte-americana, daí o porquê de os bailarinos se moverem independentemente da música, e as roupas, independentemente dos bailarinos. Ninguém estorva ninguém, nessa cena vívida e complexa. Os bailarinos não descartam as roupas, e as roupas tampouco descartam os bailarinos. Essa é, parece-me, a essência da amorosa dialética entre vestir e despir, entre sonhar e despertar, na performance fascinante dessa coreógrafa. As roupas ficaram espalhadas no palco até o final do espetáculo e, ouso afirmar, foram tão ovacionadas quanto os próprios bailarinos.

No dia 31 de janeiro, a companhia também dançou a mítica “Set and reset” [Monta e remonta], de 1983, que o jornal The New York Times descreveu como “certamente a mais amada e irresistível obra da dança pós-moderna”. As roupas dos performers dançando ao som da música de Laurie Anderson adquiriram grande importância cênica, como registrou o mesmo jornal. Traziam a assinatura de Robert Rauschenberg, que criou toda a elogiada apresentação visual do espetáculo.

 

 

(Estes dois textos, em versões ligeiramente diferentes, foram publicados no Caderno 2, de O Estado de S. Paulo, em 18 de fevereiro de 2013.)


 Sobre Dirce Waltrick do Amarante

Professora do curso de artes cênicas da UFSC. Coorganizou e cotraduziu, com Sérgio Medeiros, De santos e sábios, uma antologia de textos estéticos e políticos de James Joyce (Iluminuras, 2012), e Cartas a Nora. Autora de As antenas do caracol: notas sobre literatura infanto juvenil e Pequena biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professores. É autora de Para ler ‘Finnegans wake’ de James Joyce (Iluminuras).