As Cartas de Vieira na compilação de João Lúcio de Azevedo
Senhor. – Quando V. S.ª me faz mercê dizer que desejara falar comigo, e com tanto encarecimento, que posso dizer eu, cujo coração há mais de três anos está cozendo desgostos e discursos, sem poder romper o silêncio? Esta é a enfermidade de que adoeço, e a falta deste remédio a que me há-de matar, se Deus não abrir algum extraordinário caminho, com que me veja aos pés de V. S.ª, pois todos os ordinários estão fechados.
Antônio Vieira, carta de 24 de agosto de 1665, a D. Rodrigo de Meneses
As cartas trocadas pelos jesuítas cruzavam os muitos caminhos dos padres nas quatro partes do mundo, como nas brenhas do Brasil. Em relação à correspondência em língua portuguesa, como é sabido, uma grande parte foi editada pelo Padre Serafim Leite, principalmente nas décadas de 1940 e 1950. No entanto, no que diz respeito ao material epistolográfico do Padre Antônio Vieira (1608-1697), ainda não há trabalho de compilação mais abrangente e acurado do que o produzido por João Lúcio de Azevedo, em 1925-1928.
O português João Lúcio de Azevedo (1855-1933), imigrante em Belém do Pará, onde fez fortuna, foi basicamente um autodidata. Ainda enquanto morava naquela cidade, teve publicado o seu primeiro livro: Estudos de história paraense. Transferiu-se depois para Paris, antes de tornar definitivamente a Portugal. Amigo dos historiadores brasileiros Capistrano de Abreu e Oliveira Lima, manteve com eles importante correspondência, com fecundas consequências para a sua obra, cujos títulos mais citados são O Marques de Pombal e a sua época; A evolução do sebastianismo; História dos cristãos-novos portugueses e, a mais conhecida de todas, Épocas de Portugal econômico. João Lúcio de Azevedo, ademais, é autor de outras obras não menos relevantes para a historiografia do período, como Elementos para a história econômica de Portugal (séculos XII a XVII); Os jesuítas no Grão-Pará, suas missões e a colonização, e especialmente Novas epanáforas. Estudos de história e literatura, cujo capítulo sobre Antônio José da Silva, o Judeu, me foi insistentemente recomendado pelo saudoso Alexandre Eulalio, outro autodidata de extraordinária erudição.
O interesse de João Lúcio pelos séculos XVII e XVIII levou-o a se concentrar na investigação da figura incontornável do Padre Antônio Vieira, do qual se tornou um dos mais dedicados e importantes estudiosos, a despeito da imensa fortuna crítica internacional do jesuíta. Este lugar de destaque se verifica, sobretudo, devido ao trabalho estupendo de edição das Cartas, bem como pela sua documentadíssima História de Antônio Vieira, cujos dois volumes constroem, em larga medida, a imagem que até hoje se tem do padre.
No que toca às Cartas, existiram várias edições anteriores à de João Lúcio de Azevedo, que cumpre mencionar, uma vez que a grandeza de sua coleção também herda muito do que havia sido feito antes. Ao que consta, após a morte de Vieira, o seu espólio foi reunido pelo padre Antonio Maria Bonucci, jesuíta italiano a servir na missão da Bahia, que o entregaria ao Inquisidor Geral de Lisboa, D. Nuno da Cunha. Este, por sua vez, repassou-o ao Conde da Ericeira, D. Luís de Meneses, com o qual Vieira manteve uma importante correspondência ao longo do seu último período de vida na Bahia –, não sem mágoa inicial da parte do jesuíta, por conta do reparo feito pelo conde à sua atuação diplomática, como se depreende da resposta que lhe dirige em 23 de maio de 1689.
D. Luís ajunta ao espólio, além das cartas que Vieira lhe endereçara, também as que lhe repassara o Duque de Cadaval, um dos mais assíduos correspondentes do jesuíta, sobretudo em seus últimos trinta anos de vida. Ericeira, juntamente com o padre oratoriano Antônio dos Reis, edita todo o conjunto em dois tomos, no ano de 1735. Um terceiro tomo aparece em 1746, preparado pelo Padre Francisco Antônio Monteiro. Novas cartas se estamparam nos volumes das Vozes saudosas (1736) e da Voz sagrada (1748), os dois últimos volumes a serem incorporados à primeira edição dos Sermões, em 15 volumes, iniciada em 1679 pelo próprio Vieira. Já no século XIX, com poucos acréscimos, essas cartas foram reunidas em quatro volumes, na edição das Obras completas de Vieira, de J. M. C. Seabra & T. Q. Antunes, de 1854-1855, em um total de mais de 500 cartas. Com outro acréscimo, pequeno embora, a Empresa Literária Fluminense, 20 anos depois, editou toda essa correspondência em dois volumes.
Nenhuma das edições referidas, contudo, é comparável em qualidade e extensão à compilação de João Lúcio de Azevedo, que reúne 729 cartas ao todo (e não 710, como ele mesmo supunha em sua introdução ao primeiro volume), saídas em três grossos volumes, entre os anos de 1925-1928, pela Universidade de Coimbra. Certamente é a edição que tomou maiores cuidados para garantir a fidedignidade textual da correspondência vieiriana, seja recuperando os trechos censurados ou preenchendo as lacunas de vária ordem deixadas nas edições anteriores, seja corrigindo nomes, datas, destinatários e outras informações. Ainda mais, João Lúcio fez o trabalho detetivesco de identificação de inúmeras pessoas e situações mencionadas, que eram provavelmente bem conhecidas dos que se carteavam, mas que se tornaram desconhecidas ou enigmáticas para outros tempos e leituras mais distantes. A rigor, pode-se dizer que João Lúcio de Azevedo não apenas levantou, reuniu e organizou as cartas – ele simplesmente descobriu o fio da meada de sua legibilidade contemporânea.
João Lúcio também procedeu a uma tarefa que os filólogos, em geral, não veem com bons olhos, a saber, a atualização ortográfica e de pontuação do texto de Vieira. Entretanto, a meu ver, essa foi a melhor escolha que ele poderia fazer, uma vez que, no caso das Cartas, muitas vezes está perdido o original manuscrito, ficando disponível ao pesquisador apenas cópias, as quais já haviam sofrido atualização ortográfica. Manter a ortografia antiga, nessas condições, como está claríssimo para o próprio João Lúcio, significaria apenas naturalizar as adulterações anteriores, e, o que é pior, apresentar uma mistura de ortografias de épocas diversas, segundo os diferentes tempos de produção das cópias ainda disponíveis. Por isso mesmo, em sua introdução ao primeiro volume das Cartas, o historiador prudentemente alerta para o fato de que, dada a ausência de muitos originais e as intervenções de diversa procedência, “importa serem muito cuidadosos aqueles que nas cartas de Vieira vão colher exemplos gramaticais e modelos de dicção, porque se arriscam a tomar por sentença de clássico a falha de amanuense ignaro”.
Segundo José Paiva, comissário e coordenador do Catálogo da Exposição do III Centenário de morte do Padre Vieira, produzido e editado pela Biblioteca Nacional de Lisboa, em 1997, “João Lúcio de Azevedo divulgou novas peças inéditas e corrigiu algumas das versões que anteriormente circulavam, em uma edição fidedigna, que conheceu poucas novidades até o presente”. Em outro momento, ainda diz: “Após a edição das Cartas de Vieira compilada por João Lúcio de Azevedo, poucas foram as descobertas de novas epístolas do jesuíta”. De qualquer modo, citaria, entre essas descobertas, as que vieram à tona na edição de Clado Ribeiro Lessa (Rio de Janeiro: Typografia S. José, 1934), as editadas por Serafim Leite (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940); as incluídas na História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, editada no Porto, em 1944; as de C. R. Boxer, na revista Brotéria, 45, de 1947; e as de Aníbal Pinto de Castro, na Revista de História Literária de Portugal, de Coimbra, em 1962.
Um aspecto a destacar – não necessariamente a elogiar – na edição das Cartas produzida por João Lúcio de Azevedo é o didatismo positivista de sua organização, que privilegia a ordenação do material por ordem cronológica, e a divisão em capítulos segundo diferentes períodos da vida tumultuosa do jesuíta. Isto perfaz um total redondo de dez partes consecutivas, mais dois apêndices contendo as cartas encontradas posteriormente à estampa dos volumes que lhe corresponderiam em termos cronológicos, além de uma, mais longa e explicativa, possivelmente escolhida para fechar o volume.
Para que se tenha uma visão sinótica dessas divisões propostas por João Lúcio, no primeiro volume –, o menor deles, apesar de ser o que contém o maior número das partes consideradas –, elas referem, respectivamente, aos seguintes conjuntos de cartas:
- 1ª. parte: inclui apenas a sua primeira carta conhecida, a longa Carta Ânua da Província do Brasil, em língua latina, escrita em nome do Provincial da Bahia ao Geral da Companhia dando conta das ocorrências dos anos 1624-1625, quando a cidade da Bahia cai sob o ataque holandês;
- 2ª. e 3ª. partes: incluem, respectivamente, as cartas escritas durante suas duas missões diplomáticas a Paris e Haia, a serviço de D. João IV, a quem cabia a difícil missão de sustentar a Coroa portuguesa em meio a guerras contra duas das maiores potências do tempo: Espanha e Holanda;
- 4ª. parte: coleciona as cartas produzidas durante sua missão diplomática a Roma, na qual procurava estabelecer a paz com a Espanha e, ao mesmo tempo, fomentar a insurreição dos napolitanos contra o senhorio de Castela, de modo a dividir as suas forças;
- 5ª. parte: compila as cartas escritas durante o período de seu retorno ao Brasil, desta vez como superior das missões do Maranhão, Macapá e Grão-Pará.
- O segundo volume é concebido pelo historiador de modo a conter apenas duas partes, havendo em cada uma delas grande quantidade de cartas, a saber:
- 6ª. parte: reúne aquelas que Vieira escreve durante o tempo em que responde ao processo movido contra ele pelo Tribunal do Santo Ofício de Coimbra, sob alegação de vários crimes de heresia, especialmente os de judaísmo;
- 7ª. parte: reúne as cartas da “primeira parte” das duas em que João Lúcio divide o que chama de “Segunda jornada a Roma”, quando o jesuíta fixa residência na cidade por quase seis anos. Como se sabe, Vieira faz a viagem movido tanto pela ideia de se livrar das culpas que lhe foram imputadas pela Inquisição portuguesa, como pelo desejo de obter junto ao Papado as “reformas dos estilos” da Inquisição portuguesa. O objetivo era fazer com que as denúncias fossem “abertas e publicadas”, isto é, com obrigatoriedade de anúncio do nome do acusador e da natureza do crime imputado ao acusado, e ainda com oferecimento de garantias de não confisco dos bens dos judeus e cristãos-novos que aplicassem o seu cabedal nas companhias de comércio marítimo que, pelo menos desde 1644, sugeria criar em Portugal.
O último volume dos três dados à luz por João Lúcio de Azevedo traz, como o primeiro, cinco divisões na coleção de cartas, a considerar também os apêndices:
- 8ª. parte: coleciona as cartas produzidas na segunda metade de sua estada em Roma, quando, pregando em italiano e conhecendo amplo sucesso como orador na sede do Papado, resiste aos apelos do Geral dos Jesuítas para permanecer na Sé, substituindo-o como pregador do Papa, e ainda aos da Rainha Cristina da Suécia, que o desejava como pregador exclusivo de sua corte romana;
- 9ª. parte: diz respeito às cartas que escreveu nos seis anos que passou em Lisboa antes do seu retorno definitivo ao Brasil, na expectativa de tornar à privança do Rei;
- 10ª. parte: reúne as cartas que envia da Bahia, onde vive seus últimos 15 anos, não menos animados e não menos epistolares do que todos os outros.
Neste terceiro volume, como disse, ainda aparecem dois apêndices contendo cartas de épocas anteriores, as quais, entretanto, João Lúcio não logrou editar a tempo no volume cronologicamente adequado. Constam deles:
- Um conjunto de dez cartas do período das missões diplomáticas reunidas no primeiro volume, além de mais uma, escrita logo depois da sua saída da prisão do Santo Ofício, de Coimbra, a qual, portanto, deveria constar no segundo volume.
- A importante carta, em língua castelhana, que Vieira enviou ao Padre Iquazafigo, jesuíta e provincial da Andaluzia, de 1686, na qual pretende esclarecer a sua posição em face das proposições que lhe andavam atribuídas no papel de certo “Escoto Patavino”, entre elas, a de considerar o sapateiro Bandarra superior aos santos e profetas, e a de pregar a próxima fundação de uma nova e verdadeira Igreja em substituição à de Roma.
Na recolha de João Lúcio, essa divisão em 12 (10 + 2) partes, introduz alguns intervalos temporais privilegiados, cuja notícia pode ser relevante para que se tire deles as devidas consequências interpretativas. Assim, no primeiro volume há um total de 93 cartas, que cobrem o período de 15 anos entre 1646 e 1661, quando Vieira tem intensa atividade diplomática nas cortes europeias e, em seguida, volta ao Brasil para chefiar as missões de Grão-Pará e Maranhão, responsáveis por entradas pioneiras em vários ermos do Amazonas. As cinco partes introduzidas por João Lúcio as dividem numericamente de maneira bastante desigual, justificada mediante a estrita predominância do critério cronológico-temático:
- 1 (uma) única carta (a Ânua) escrita no dia 30 de setembro de 1626;
- 6 cartas escritas no intervalo entre 25 de fevereiro de 1646 e 21 de abril do mesmo ano;
- 42 cartas escritas no período entre 26 de setembro de 1647 e 10 de novembro de 1648;
- 3 cartas escritas entre 23 de janeiro de 1650 e 6 de junho de 1650;
- 41 cartas escritas entre 17 de junho de 1651 e 11 de junho de 1661.
No segundo volume, há um total muito superior de cartas, 321, embora não tenha mais de 100 páginas do que o primeiro, o que sugere cartas mais curtas. Está dedicado ao material dos 11 anos passados entre 1662 e 1673, quando Vieira sofre o penoso processo da Inquisição portuguesa, do qual sai condenado por heresia e judaísmo, transferindo-se posteriormente para Roma, onde reside por mais de cinco anos em busca de absolvição junto à Sé Católica. Segundo as duas partições estabelecidas por João Lúcio, elas de subdividem da seguinte maneira:
- 146 cartas entre os sete anos do período entre 9 de setembro de 1662 e alguma data não identificada de 1669;
- 175 cartas nos quatro anos entre 22 de novembro de 1669 e 28 de dezembro de 1673.
No terceiro volume há um total de cartas pouco menor que o do segundo, 305, mas com quase 150 páginas a mais do que ele, cobrindo um total de 23 anos da vida de Vieira. As cartas dizem então respeito ao período final de sua estada romana, mais aos seis últimos anos vividos em Lisboa, quando espera, impacientemente, e em vão, algum sinal do príncipe D. Pedro para que tome parte no Conselho de Estado, assim como aos seus últimos 15 anos na Bahia. De acordo com as divisões estabelecidas por João Lúcio, as cartas distribuem-se da seguinte forma:
- 77 cartas no período de 2 de janeiro de 1674 a 12 de agosto de 1675;
- 101 cartas no intervalo entre 26 de agosto e 21 de janeiro de 1681;
- 115 cartas entre 23 de maio de 1682 e 10 de julho de 1697;
- 11 cartas esparsas entre 15 de maio de 1653 e 9 de janeiro de 1668;
- 1 (uma) carta (ao Padre Iquazafigo) de 30 de abril de 1686.
No conjunto dessas divisões estabelecidas por João Lúcio, o período da chamada “Segunda jornada a Roma” é o que apresenta o maior número de cartas documentadas, com um total de 252 exemplares. Em ordem decrescente vêm a seguir os períodos relativos ao “Desterro e processo em Coimbra”, com 146 cartas; aos “Anos finais na Bahia”, com 115; aos “Seis anos em Portugal”, com 101; à “Segunda missão diplomática – Paris e Haia”, com 42, e, ainda com números altos, o período relativo aos “Tempos de missionário”, no Maranhão, com 41 cartas.
A considerar, entretanto, a média de cartas escritas ao ano, praticamente empatam em frequência os períodos da “Segunda jornada a Roma”, da “Segunda missão a Haia” e da “Missão maranhense”, com 42 ou 41 cartas anuais, o que dá cerca de uma carta a cada oito ou nove dias, apenas entre aquelas reunidas por João Lúcio. Por outro lado, acatando-se o corte que o historiador estabelece para a correspondência dos tempos passados em Roma, dividindo-a em duas partes, tem-se que a primeira delas leva a palma absolutamente sozinha em matéria de disposição epistolar: nada menos de 175 cartas em dois anos, o que perfaz uma frequência anual de 87,5 cartas, ou de uma carta a cada quatro, cinco dias. Claro, restrinjo-me sempre a contar, aqui, os exemplares recolhidos na edição de João Lúcio – conquanto a quantidade de cartas aparecidas em outras edições não seja grande, o número de inéditas e desaparecidas é provavelmente considerável.
Outro aspecto do conjunto das cartas recolhidas diz respeito ao número e à condição dos correspondentes de Vieira. Apenas para pincelar algumas possibilidades descritivas a respeito deles, que certamente é relevante para se conhecer a natureza da epistolografia de Vieira, é fácil perceber que, em todo o primeiro volume, o Marquês de Nisa, então ainda Conde da Vidigueira, embaixador de Portugal em Paris, é o mais importante dos seus correspondentes, com um total de 41 cartas destinadas a ele. A seguir, mas com um número muito menor de cartas, isto é, nove para cada um, aparecem D. João IV, Rei e grande protetor do jesuíta, e o Padre André Fernandes, também da Companhia de Jesus, confessor de D. Teodósio e de D. Luísa, respectivamente o primogênito e a mulher de D. João IV. É a este jesuíta que Vieira dirige a célebre carta conhecida como “Esperanças de Portugal, V Império do Mundo”, de 29 de abril de 1659, com fatais consequências para a sua vida, uma vez que se tornou a base da qualificação dos crimes que lhe foram imputados pelo Tribunal do Santo Ofício de Coimbra.
Considerando também as cartas reunidas no segundo volume, a primazia da correspondência traz muitos novos nomes em relação ao volume anterior, com números de frequência muito mais expressivos. Em ordem decrescente, os correspondentes mais assíduos de Vieira passam a ser o Marquês de Gouveia, D. João da Silva, que participa do governo de D. João IV e se encontra desterrado de Lisboa, durante o governo de D. Afonso VI, com 88 cartas; Duarte Ribeiro de Macedo, embaixador em Paris e depois em Espanha, com 83 cartas; D. Rodrigo de Meneses, Regedor de Justiças, irmão do Marquês de Marialva – este, comandante das forças portuguesas em terra nas guerras da Restauração –, homem de confiança do Infante e depois Príncipe e Rei D. Pedro, com 78 cartas; D. Teodósio de Melo, cônego da Sé de Lisboa, por indicação de D. Luísa, e irmão do Duque do Cadaval, com 30 cartas; e enfim, o mesmo Duque, D. Nuno Álvares Pereira de Melo, desterrado por D. Afonso VI, destacando-se posteriormente na guerra contra Castela, com 20 cartas.
A somar a estas cartas também aquelas reunidas no terceiro volume, os principais correspondentes de Vieira, segundo o número total das cartas recolhidas, praticamente se mantêm os mesmos, embora com a frequência alterada. São eles: Duarte Ribeiro de Macedo, com 239 cartas, que se qualifica, assim, como o mais constante dos interlocutores das missivas ao longo da vida do jesuíta; o Marquês de Gouveia, com 99 cartas; D. Rodrigo e D. Teodósio, já mortos neste último quartel da vida de Vieira, sem alteração nos números e posições anteriores, e, por fim, o Duque do Cadaval, com mais 17 cartas em relação ao segundo volume, totalizando então 37 exemplares.
Não será preciso dizer mais para evidenciar que Vieira entendia a correspondência, em primeiríssimo lugar, no âmbito da res publica e, portanto, da ação e da conversa política. Os seus principais carteadores são, todos eles, homens ligados ao governo de D. João IV, os mesmos que, posteriormente, com a morte do soberano, constituíram a facção que tomou o partido da regente D. Luísa contra a subida ao trono de Afonso VI. São eles também que, mais tarde, de uma forma ou de outra, com a notável exceção do Padre Vieira, alcançaram nova vida no poder com a derrubada de Afonso VI e a ascensão ao trono do Príncipe D. Pedro.
Por isso mesmo, o que as cartas mais dizem e ecoam, no mais pisado dos seus muitos tópicos, é justamente a memória dos serviços prestados a D. João IV, que, segundo o jesuíta, sofreram menoscabo e castigo no governo de D. Afonso VI, sem jamais obter resgate, mas antes acrescer maior ingratidão por parte de D. Pedro. A sequência desses três tempos, segundo os três reis, nos quais dispõe o conjunto de sua vida, compõe o temperamento áulico, voluntarista, determinado, agastado, impaciente, achacoso e também melancólico do conjunto das cartas aqui recolhidas.
Dito o mesmo em chave dialética, menos que temporal, os serviços prestados ao rei e ao reino são coletados, na memória epistolar de Vieira, como dívidas de um tesouro irremediavelmente sem resgate. Ou ainda, como dívidas que, quanto menos pagas são, e nunca o poderão ser suficientemente, mais avivam o sentimento de injustiça, de desdém imerecido – e, justamente por isso, mais coroam ou fazem brilhar o tesouro original do seu amor, cuja ausência de recompensa de fato, pretende demonstrar, por retroprojeção, o seu original desinteresse e fineza de espírito. Mas o que realmente queda demonstrado é o talento da escrita, embebida nas nódoas do desejo mais humano, com que escreve tanto aos correspondentes a partir de uma enfermidade de origem, a do silêncio, que não é apenas aquele a que o obriga a Inquisição, mas também o do discurso que coze só consigo, desgostosamente, quando aquele que mais o deveria ouvir não o chama. No limite, o destinatário de todas as suas cartas é apenas um, o Príncipe português, assim mesmo, no comum, e sem nome particular, embora apenas cada um dos particulares, em sua porção de corpo histórico, lhe importe realmente.
As cartas jesuíticas que cruzaram o mundo lançaram mão de procedimentos discursivos disponíveis no legado, ainda vivo e renovado no tempo de Vieira, da ars dictaminis, a arte de escrever cartas. Isto significa, em primeiro lugar, que as cartas jesuíticas não são uma tábua em branco impressionada exclusivamente por acontecimentos vividos pelos padres, mas um mapa retórico em progresso, que se acomoda aos diversos trabalhos de que se encarregaram: da conversão da “gentilidade” em todas as quatro partes do mundo, vale dizer, dos brasis aos japões, até o aconselhamento político dos reis mais poderosos da Europa cristã. Assim, as prescrições da tradição epistolar, revistas pela Companhia e aplicadas aos diversos casos vividos pelos jesuítas particulares, constroem o caminho que, séculos depois, apenas parece existir sem elas. Os conteúdos das cartas, no entanto, são sempre possibilidades surgidas no processo de acomodação ao gênero, enquanto experiência retoricamente organizada. Por isso mesmo, convém examinar a epistolografia jesuítica no âmbito do modelo histórico da ars dictaminis, cujas partes principais da disposição são, nos seus termos latinos, salutatio (saudação ou cumprimento), captatio benevolentiae (obtenção de simpatia ou boa disposição), narratio (narrativa, relação), petitio (pedido, solicitação) e conclusio (fecho, conclusão).
A salutatio é a primeira parte do exórdio da carta. Trata-se, em geral, de uma saudação breve, que se resume, no caso de Vieira, a um “Senhor”, “Senhor meu”, “Meu senhor”, “Exmo. Senhor”, com poucas variações notáveis, seja qual for o lugar hierárquico do destinatário, mas com uma notável articulação com os procedimentos de obtenção da simpatia do destinatário, a captatio benevolentiae. No âmbito das preceptivas epistolares, esta constitui uma segunda parte do exórdio, que fundamentalmente busca a disposição favorável do leitor para o que há de ler em seguida. Aqui, Vieira utiliza recursos amplos e diversificados, que algumas vezes chegam a ocupar todo o corpo principal da carta, mantendo sempre o efeito de demonstração de cortesia, implicado na saudação. Ao mesmo tempo em que afeta modéstia e humildade em face dos destinatários de qualquer condição, ressalta a muita expectação sofrida até a chegada da carta do correspondente, ou a felicidade de sabê-lo com saúde, ou, ainda, na direção oposta, mas com o mesmo sentido, o demasiado pesar que lhe causara saber de males ou doenças que acometeram ao destinatário, pelos quais pede melhoras a Deus. É mesmo rara a carta de Vieira que não inicia com uma longa captatio de saudação ou cortesia, assentada no comentário sobre a doença, ou sobre a expectativa de que a correspondência não falte e ainda seja abundante.
Este último tipo de captatio benevolentiae, muito empregada por Vieira, que se associa à reflexão sobre a própria epistolografia, tem como efeito principal a acentuação do lugar da carta como dramatização da partilha comum de situações e sentimentos vividos antes separadamente, e, por assim dizer, em silêncio pesaroso. O caráter negocial, público, das suas cartas, portanto, não se descuidam jamais dos aparatos implicados em uma ideia de encontro amigável muito esperado e, por isso, atento ao registro afetivo, que inscreve na carta um temperamento, como o recomendam os preceptistas de viés humanista, como Justo Lípsio, entre outros, avessos quase sempre ao tratamento notarial da correspondência. A captatio benevolentiae, aplicada nesses termos, não apenas expande a saudação como preenche o lugar da partilha amistosa, solidária, e, ainda mais, cúmplice.
A inclinação favorável, a boa vontade da leitura que se busca com base nas provas do caráter humilde, obediente e piedoso do autor é solicitada igualmente em nome do sentimento comum dos que se carteiam, que, de maneira exemplar, refere os incômodos ou excessos do amor da pátria, que não deixa tempo para cuidar de si. O que se inscreve na carta, assim, seja qual for o seu conteúdo, é a comunicação instantânea de afetos acesos nas letras, a confirmação dos bons termos mantidos entre os interlocutores, quando não da amizade e da aliança política entre eles.
A terceira parte da carta reúne os procedimentos da narratio, na qual se trata de construir um relato do ocorrido na ausência do destinatário. Nas cartas de Vieira, um aspecto bem marcado de suas narrativas é a descrição do tempo presente como um estado de coisas adverso – sem ser exatamente “às avessas”, como prevê a tópica quinhentista, cujo caráter é mais aristocrático e definitivo. No caso de Vieira, como ocorre genericamente com os relatos jesuíticos, trata-se de adversidade difícil, mas não insuperável. Em particular, para ele, trata-se de uma adversidade devida menos à ação de inimigos externos do que à incapacidade própria de agir, conjuntamente, com espírito cristão e com eficácia política, segundo os lugares da razão e da ocasião. Exemplarmente, para Vieira, os portugueses e, ainda mais, os que governam Portugal são os seus próprios e mais ferozes inimigos. É este o lugar argumentativo mais recorrente na interpretação do estado sempre lastimável do reino, desde que a graça e a intervenção providencial de Deus mostram inequívoca inclinação favorável a ele.
Nesses termos, a narração é basicamente a composição de um lugar argumentativo no qual os acontecimentos selecionados na carta atuam como amostras de situações repetidas, que referem menos ocorrências únicas do que maus hábitos que se foram estabelecendo no reino. Como exemplo, pode-se tomar o quadro desenhado por Vieira a respeito da situação dos índios do Brasil. Em termos de virtualidade ou potência, tudo parece providencialmente disposto para favorecimento da conversão das almas e da sustentação de Portugal, sobretudo pela boa disposição dos índios e pela determinação heroica dos padres. Contudo, quando o quadro das virtualidades da conversão cruza com o concreto ou atual do governo e dos costumes dos portugueses que nela vivem, ocorre o desastre: trata-se agora de evidenciar enganos e vícios, pecados mortais, prantos derramados sobre a seara originariamente boa. Assim, os moradores são, quase sempre, descritos como maus exemplos para os índios, estorvos à conversão, seja por mancebias, roubos e escândalos; seja pelo descuido da alma do servo, e, mais do que isso, pelo ódio ao índio sedimentado na injustiça do cativeiro; seja ainda pela murmuração e desobediência contra as disposições reais, agravadas pelo governo praticado usualmente como saque pelos capitães-mores e governadores. Práticas más, porém, não são o mesmo que má natureza. Nesta diferença, reside o fundamento teológico da conversão e da intervenção jesuítica, bem como da eleição providencial de Portugal como Estado cristão para levar a cabo a destinação cristã da história.
O mesmo sentido de uma narratio que constrói um “estado de coisas” terrível que solicita, a seu turno, uma firme e decisiva intervenção, efetua-se, em Vieira, de formas muito variadas, que vão muito além do exemplo das coisas do Brasil. Algumas das narrativas mais persistentes são as que dizem respeito à situação do “Turco”, que o jesuíta imagina alternadamente ameaçar Hungria, Polônia, Cracóvia ou Croácia, quando não diferentes principados alemães, italianos, e a própria Roma, figurando-o muitas vezes já às portas da cidade papal. Tal narrativa compõe um estado de coisas alarmante, difuso, com sombras palpáveis como as que diz haver em Roma, o qual fomenta a entrada triunfal do rei português em uma espécie de grande ato final da política europeia. A este grande rei, que Vieira define “no comum” como português, e, no particular, seguidamente, como D. João IV vivo, D. João IV ressuscitado, D. Afonso VI, D. Pedro, e ainda mais de um de seus filhos, se deverão os passos decisivos da conquista do “paraíso terreal”, a dar-se justamente quando o corpo católico estiver em grande perigo, incluindo a sua cabeça, Roma.
Outro exemplo de narrativa persistente nas cartas de Vieira refere a situação dos cristãos-novos, invariavelmente tratados como vítimas de injustiças e de perseguições da Inquisição, e como evidência da falta de razão política do governo, que não se dá conta da utilidade do cabedal da gente de nação para a sustentação e ampliação do Império português no mundo. Também são admiráveis os muitos relatos particulares, dispersos nas muitas cartas, sobre assuntos tão múltiplos e variados como as técnicas indígenas da caça às tartarugas nas chamadas praias de viração, as notícias desencontradas das batalhas nas fronteiras sempre demasiado distantes para a fidedignidade das informações, as intrigas da corte portuguesa, os comportamentos dos embaixadores estrangeiros junto à Cúria, os bastidores da eleição papal, as idas e vindas das tratativas de casamento, as formas de negociar no Parlamento da Holanda, e mais uma infinidade de relatos que conjugam correspondências apertadas entre miudezas, achaques e prodígios.
Tudo sinais que, bem interpretados, haveriam de revelar o descontentamento de Deus com a desordem das criaturas e a iminência de uma catástrofe que, entretanto, enquanto parte de uma economia salvífica, acabaria por detonar um conjunto de intervenções decisivas na história. Delas, avultariam as do rei português, finalmente lançado na empresa de redução do mundo todo a uma única monarquia universal, por meio da união dos príncipes cristãos armados contra os inimigos da fé, descontados os judeus que se converteriam espontaneamente a ela com a descoberta das tribos perdidas de Israel. Todas essas narrativas de tribulações preparariam não apenas um final feliz, mas um longo e continuado período de paz na terra, antes ainda da vinda do Anticristo e do Juízo Final. Ou, como escreve Vieira a Duarte Ribeiro de Macedo, seu mais fiel correspondente, em carta de 23 de agosto de 1672: “Nesta suspensão do mundo espera todo ele com ânsia pelo fim de tão notáveis princípios”.
Por esse breve resumo se percebe que a narração dos desastres e anúncios funestos, em Vieira, não é apenas relato de fatos passados, vale dizer, memória ou diagnóstico de uma situação inalterável, mas também relato de expectativas de uma história do futuro, que obra já em latência. É também narração de projetos longamente acalentados de intervenção do Estado português no mundo, onde não haveria de ser pequeno o seu papel do jesuíta, enquanto intérprete de sinais divinos e conselheiro do rei fatal que lhe emprestasse os ouvidos.
A narratio tem ainda como função específica a sustentação eficaz da petitio, na medida em que fornece a fundamentação histórica para as várias solicitações feitas ao destinatário. E sempre protestando que não tem pleitos pessoais, como Vieira pede, solicita, cobra, reclama, requer, pleiteia! As cartas infalivelmente trazem pedidos de vária ordem, desde os mais simples, como o favor do destinatário à necessidade de um conhecido – e, em pequena escala, de um parente, como o que pede pela irmã, pelo sobrinho e pelo irmão –, até os que dizem respeito a operações de larga monta como a reivindicação de dinheiro para a compra de navios em Ruão e Amsterdã, ou para usar como propina para amaciar os deputados de Haia que tratavam a paz com Portugal, a qual passava obrigatoriamente pelo cálculo dos prejuízos de Pernambuco, que os holandeses contavam como território seu.
Em seu período de visitador do Maranhão, o pedido mais frequente de Vieira é o mesmo de todas as cartas jesuíticas do XVI: o envio de mais padres, ainda que de outras nações e mesmo sem letras, já que os índios tampouco as tinham; o pedido de novas regulamentações sobre a captura dos índios, apenas admissível em guerras justas; o monopólio da Companhia de Jesus no trato do índio, o que incluía o comando das entradas ao sertão e a jurisdição exclusiva sobre as missões, sem interferência do governador; a nomeação de um governador zeloso e prudente, que favorecesse a conversão, e não a estorvasse como julgava ser o costume, entre outras.
Mas se tivesse de escolher apenas um exemplo da petitio vieiriana, escolheria a mais recorrente e exasperada delas, que, entretanto, resultou inútil: a petição eterna de servir ao reino e ao rei de Portugal – seja qual for o rei, como disse antes –, na qualidade de conselheiro e privado, como antes servira a D. João IV, desgraçadamente morto e não ressuscitado, e ao malfadado D. Teodósio, morto antes de alcançar o trono.
Enfim, cabe notar que a petição não ocupa apenas um lugar fixo nas cartas, mas permeia toda a narração e, na quase totalidade delas, participa da sua conclusão, seja como retomada de um pedido já expresso antes, seja como enunciado do “remédio” que sugere para a cura do que antes narrou como um quadro de “doença”.
Na conclusio, é comum que se encontre a reiteração dos pedidos feitos anteriormente, sendo que a parte final da conclusão se reserva à valedictio, a despedida, que Vieira em geral resolve com uma fórmula simples, que reitera a cortesia, e o desejo particular de que o destinatário viva muitos anos, reafirmando a sua própria obrigação ou serviço do destinatário: “De V. M.cê obrigadíssimo servo”. Ou ainda, mais simplesmente: “Criado de V. Ex.ª”.
Mas o mais fundamental desta última parte da carta é a reintrodução da esperança no quadro dos desastres acontecidos ou iminentes que ocupam usualmente o corpo da narração. A esperança, por assim dizer, é componente técnico da carta jesuítica, e, nisso, Vieira não é nenhuma exceção, mesmo em seus achaques mais exasperados. Não é à toa que ele assim se despede de seu último correspondente, Sebastião de Matos e Sousa, secretário do Duque de Cadaval, na última carta que João Lúcio recolhe, escrita apenas uma semana antes de Vieira morrer, já com o corpo tomado de febres: “Deus nos acuda e me traga melhores e mais confiadas novas de V. Mcê., que será uma grande parte do alívio, nestes poucos dias que as moléstias me podem conservar de vida, a qual o Senhor aumente a V. Mcê. por muitos anos, como todas as felicidades temporais e eternas, que V. Mcê pode desejar e eu em minhas orações peço a Sua Divina Majestade”.
Ou seja, concordando Deus e a Majestade reitera a graça como fábrica e conservação do futuro, e, portanto, como a última fiança das esperanças do presente adverso. As cartas de Vieira, desse ponto de vista, são parte de um esforço de produção de uma esperança radical, algo semelhante àquela que é descrita por Jonathan Lear quando pensa não nos padres, mas nos índios: a esperança de uma resposta legítima para a catástrofe do mundo, e que se esforça para recolher dos presságios da devastação os signos que ainda mal se compreendem – algaravias –, mas que podem significar ao menos a continuação de uma conversa, em meio ao desastre continuado.