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Arte e coronavírus

O pintor e escritor espanhol Pepe Cerdá reflete sobre a reclusão pelo coronavírus, a importância da arte, a economia, a política e o “dia seguinte”.[1]

Como você vive esses dias de confinamento?

Com absoluta serenidade. Recordo Stefan Zweig, de seu livro de memórias, O mundo de ontem, especialmente o prólogo, no qual ele conta como seu mundo, sua vida, sua identidade foram repentina e repetidamente destruídos. Recordo Fernando Fernán Gómez, do filme que David Trueba e Luis Alegre fizerem entrevistando-o, chamado A cadeira de Fernando, especialmente quando Fernan Gómez, velho, os faz saber, não porque supõe, mas porque sabe – como os idosos costumam falar sobre coisas importantes a seus jovens amigos –, como os privilégios de inquilina viúva não ajudaram sua mãe a evitar ser despejada de sua casa para abrigar um padre, após a guerra civil. Foi tão fácil quanto mudar a lei que protegia sua mãe por outra, que protegia o padre. Lembro-me das Memórias de Arthur Koestler, em que ele conta como a vida lhe deu mil tombos …

Você está bem acompanhado por suas referências…

Eu poderia continuar citando escritores: Pla, Quevedo, Galdós, Cervantes, Montaigne; todos dizem essencialmente a mesma coisa: a desesperança e a fragilidade do indivíduo frente à fatalidade política. A inutilidade prática e as consequências criminosas de todo pensamento revolucionário. Poderíamos afirmar que praticamente toda a literatura fala sobre a luta, condenada a ser perdida, do indivíduo contra o todo. Em tempos em que a realidade é imposta ao pensamento único social-democrata e à cultura do conforto como um direito, vê-se como somos frágeis. A realidade sempre exagera.

O que mais o perturba?

Muito poucas coisas, na verdade. Especialmente não poder viajar à França.

Em algum momento lhe ocorreu que uma entidade invisível e maléfica poderia surgir de repente, como em um filme de ficção científica, e paralisaro mundo?

Os que têm o vício da leitura sabem que isso aconteceu com frequência. Na realidade, inéditos são os 80 anos que tivemos na Espanha sem sustos sérios. Por isso, por não termos problemas reais, tivemos muitos problemas imaginários.

Em uma circunstância como essa, é a hora de cientistas e profissionais de saúde, de criadores, de governantes ou da sociedade civil?

Não gosto da expressão “sociedade civil”. Parte do princípio de que existe outra “sociedade”, a “não civil”. É como em um rebanho em que há ovelhas, cães, pastores, burros e fazendeiros. “Sociedade civil”, neste símile, suponho que sejam as ovelhas. Não gosto de ser uma ovelha, um cachorro, um burro ou um pastor. Dito isto, nossas “elites políticas” – gosto mais da expressão “elites extrativas” – mostram sua verdadeira cara quando as coisas ficam complicadas. É muito difícil estar em um partido político desde a independência. Quando Picasso se juntou ao Partido Comunista, influenciado por Paul Éluard, puseram um comissário político no estúdio da Rue de les Grands Agustins, que, juntamente com seu secretário Sabartés, vigiava o mestre. Palau i Fabre relata isso de passagem em seu livro Querido Picasso (Ed. Galaxia Gutemberg, página: 48, 49 e 50). Este comissário perguntava o que, quem, para que, ideologia etc. a todos os visitantes.

O quer dizer?

Os partidos não aceitam mentes livres, apenas intelectuais orgânicos. Basta ver como e quão prontamente a maioria dos fundadores de partidos surgidos recentemente na Espanha, como Ciudadanos e Podemos, desapareceu.

O que lhe comove naquilo que vê, que lhe contam ou que segue pela mídia? Como você percebe a psicose?

O que mais me preocupa é a avidez delatora de pessoas que insultam qualquer um que veem de suas varandas sem saber por que estão na rua.

Você tem a sensação de que sua disciplina artística, a pintura, já abordou esse fenômeno ou as múltiplas doenças que a história mundial registra?

Claro. Estou pensando em Brueghel, Georg Grosz ou em nosso Goya. Na verdade, quase todos os pintores importantes o fizeram. Alguns mais explicitamente do que outros.

Que respostas a arte dá a uma situação como essa?

A arte não dá respostas, limita-se a constatar, a transmitir. Qualquer pessoa sensível se comunica com o autor e com a era de qualquer obra de arte do passado apenas olhando para ela sem preconceitos.

Algum artista o consola especialmente, ou o observa com mais frequência, caso precise ou apenas queira?

Mais do que artistas existem obras de arte. No meu caso, encarar o último autorretrato de Van Gogh ou o retrato de Inocente X de Velázquez ou o escriba egípcio sentado do Louvre é suficiente para entender intimamente a profissão de pintor e escultor e a futilidade da vida.

Como o coronavírus afeta o artista de maneira particular?

Eu acho que como todo mundo. Através de pessoas infectadas entre meus amigos, ou pela possibilidade de sofrer a doença eu mesmo. A impossibilidade de viajar. Projetos abortados. Como todo mundo.

Você consome todos os menus que os museus oferecem online todos os dias?

Não. Os trabalhos devem ser vistos ao vivo. Eu tenho uma boa biblioteca de arte que consulto de tempos em tempos para atualizar uma obra em minha memória. Também uso a internet para isso. Mas sabendo que o que vejo é apenas uma vaga lembrança do que é.

Você descobriu autores, linhas de trabalho, em qualquer pesquisa, a partir dessa constatação?

Josep Pla dizia que leu vorazmente os autores clássicos e seus predecessores imediatos, especialmente franceses e ingleses, na juventude. Então começou a ler seus contemporâneos, e comentou sobre eles: “Sempre tinha a impressão de já ter lido”. Algo semelhante acontece comigo. A novidade é tão antiga quanto o mundo. Estou cada vez mais convencido de que a ideia de progresso não se aplica às artes. Para mim, todas as obras de arte, não importa quando foram feitas, são contemporâneas. Elas são como urânio: emitem radiação por milênios.

Você considera que, em algum momento da história, além das grandes guerras, a fragilidade do ser humano foi tão evidente como agora?

Isso não é nada! Imagine o gueto de Varsóvia, o cerco de Stalingrado ou as cidades medievais. O que é excepcional é o conforto e a segurança das últimas décadas.

O que você acha das medidas econômicas?

As medidas econômicas que virão serão de uma dureza ainda inimaginável. Semelhante a um pós-guerra sem um Plano Marshall. Será sem aviso.

Você entende as queixas dos freelances?  E quais são as suas queixas ou reclamações?

Os trabalhadores independentes somos cobrados pelo fato de existir, por respirar; também contamos com a animosidade do estado. Temos que provar nossa inocência antecipa e constantemente. Apenas dois tribunais exigem que o acusado prove sua inocência: o do Imposto de Renda e o da Inquisição. Em situações de crise tudo isso é mais evidente.

Você já recuperou algum dos hábitos ou passatempos de antes do confinamento?

Eu nunca tive hobbies, apenas ocupações.

Em um sentido puramente físico, você sente medo, desconforto?

Sempre fui bastante pessimista. É meu estado natural. “Sem esperança, portanto sem temor”, disse Lucrécia Borgia. Também se pode dizer o contrário e ainda é verdade: “Somente no risco há esperança”.

O que vai ser do humor agora?

O humor vale para tudo. O que teria sido da Espanha de Franco sem “La Codorniz”, sem Gila e sem Tip y Coll. Aliás, o fenômeno humorístico jamais ocorre nas ditaduras comunistas. Eles sabem que o riso é perigoso.

Você recomendaria algo para este período de crise?

As memórias de Arthur Koestler.

 

Pepe Cerdá
Pepe Cerdá

 

[1] Antón Castro, “Pepe Cerdá: ‘Los partidos no aceptan mentes libres, tan solo intelectuales orgánicos’” (https://www.heraldo.es/noticias/ocio-y-cultura/2020/04/09/pepe-cerda-los-partidos-no-aceptan-mentes-libres-tan-solo-intelectuales-organicos-1368999.html?utm_source=facebook.com&utm_medium=socialshare&utm_campaign=desktop).