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Sim, é o fim do mundo

Dado que o mundo atual é, de qualquer forma, insustentável, ele tem duas e apenas duas alternativas: mudar ou se extinguir. Em ambos os casos (e a despeito de como e quando), será o fim deste mundo.

  1. Uma notícia ruim

No mar de notícias (reais) sobre o já não tão novo coronavírus, uma hoje se destaca [13/04/2020]: “OMS diz haver poucos sinais de imunidade para quem já contraiu coronavírus”.[1] E esta, se confirmada, não é a pior notícia.

Ainda assim, antes de prosseguir, cabe algum detalhamento.

A descoberta significa que não se conseguirá a imunidade populacional pela inevitável difusão do vírus (que a quarentena apenas adia). Não por acaso, foi detectada uma chamada “segunda onda” entre suas características epidemiológicas. Restaria, então, para o fim definitivo da pandemia, a mutação do vírus, uma vacina ou um antiviral.

Quanto à primeira, há três possibilidades principais: 1) o vírus sofre uma mutação e fica ainda menos mortal do que já é; tornar-se-ia, assim, mais uma virose “comum”, que, como a gripe, só mata os muito frágeis, sem preocupar a população geral; 2)  ele sofre uma mutação em sentido contrário, tornando-se mais mortal – o que está longe de ser impossível, ainda que um pouco mais difícil (pois agentes pandêmicos tendem a “aprender” [por seleção natural] a conviver com a população que parasitam, preservando-a e preservando-se); 3) ocorre uma mutação com abrandamento do vírus, mas a nova subespécie atenuada não elimina a forma original do seu ecossistema, ou seja, a população humana; ambas as formas virais convivem.

Nas duas últimas hipóteses, a pandemia atual se converteria em endemia global, ou seja, uma infestação permanente. Apenas uma vacina ou uma droga antiviral salvaria o mundo de se tornar, cronicamente, o que se tornou agudamente hoje: refém do vírus.

Vacinas são artefatos biológicos complexos, que envolvem uma interferência controlada no sistema imune, a fim de fazê-lo produzir anticorpos que seriam produzidos por um agente patogênico, antes que ele próprio o faça. Acontece que nem sempre dá certo, por muitos e igualmente complexos motivos técnicos, que não cabe aqui detalhar. Mas sim exemplificar: a vacina mais buscada na história da medicina é a da malária, jamais obtida. Tampouco se conseguiu uma vacina para o HIV. Ao mesmo tempo, a vacina contra a gripe comum precisa ser renovada todo ano. Há, em suma, patógenos contra os quais não se consegue obter uma vacina, e aqueles contra os quais ela é obtida, mas não garante uma imunidade definitiva ou prolongada.

Como a Organização Mundial de Saúde acaba de afirmar já existirem evidências de que o novo coronavírus não gera, ele próprio, imunidade prolongada ou definitiva nos infectados, isso indica uma possível dificuldade particular em se conseguir uma vacina eficaz.

Nesse caso, não haveria vacina contra o novo coronavírus este ano, nem no próximo, ou no outro. Não haveria vacina.

Há ainda a possibilidade de se desenvolver ou descobrir uma droga antiviral. Mas isso é ainda mais difícil do que obter uma vacina (por características inatas dos vírus que não cabe aqui detalhar; basta lembrar a enorme quantidade de vacinas contra doenças virais, e a pouca quantidade de drogas – o que torna as ruidosas notícias sobre drogas “milagrosas” ainda mais estridentes).

Sem uma mutação favorável, uma vacina eficaz ou um antiviral potente, resta a possibilidade de este ser o começo do fim do mundo como o conhecemos.

  1. Uma notícia pior

 Nos anos 1980, o pesquisador francês Luc Montagnier foi um dos descobridores do vírus da aids, até então não identificado. Ganharia o prêmio Nobel de Medicina pela detecção do HIV. Montagnier acaba de afirmar ter encontrado evidências no genoma do novo coronavírus que indicam se tratar de um vírus produzido em laboratório.

“Novo coronavírus foi fabricado acidentalmente em laboratório chinês, diz descobridor do HIV”

Diferentemente do que divulgaram as autoridades, o novo coronavírus foi fabricado artificialmente em um laboratório chinês, provavelmente no segundo semestre de 2019, diz Luc Montagnier, prêmio Nobel de Medicina de 2008. O cientista francês diz que “o laboratório de alta segurança da cidade de Wuhan é especializado nesse tipo de vírus, o coronavírus, desde o começo dos anos 2000. Eles têm expertise com isso. Isso me fez olhar de perto a sequência de RNA do vírus. Fiz essa análise, assim como o matemático Jean-Claude Perez, especialista em biomatemática. A história de que veio de um mercado de peixes é uma lenda”. Montagnier especulou que os chineses estavam desenvolvendo uma vacina contra a Aids, e usaram um coronavírus para isso. O coronavírus causador da Covid-19 teria então sido desenvolvido por acidente e se espalhou. Ele fez essa declaração à rádio Frequénce Médicale. O assunto ganha mais gravidade porque as autoridades chinesas têm coibido a divulgação de pesquisas sobre a origem do vírus, o que despertou dúvidas entre os cientistas. “Os iranianos reconheceram que derrubaram um avião por engano. Os chineses também deveriam reconhecer o erro, pelo bem da ciência”. Nos últimos dias, o vice-presidente americano Mike Pompeo afirmou que havia muitas dúvidas sobre a origem do coronavírus. O presidente francês, Emmanuel Macron, também manifestou dúvidas em entrevista ao jornal “Financial Times”. A embaixada americana em Pequim já teria alertado há algumas semanas para a necessidade de maior controle sobre o Wuhan Institute of Virology (WIV), o centro que seria responsável pelo vírus. […] O novo coronavírus teria sido produzido a partir de um coquetel de vírus que inclui o HIV e o coronavírus presente em morcegos, uma especialidade do WIV. A tese está causando controvérsia entre os laboratórios franceses, e já foi contestada por cientistas do Instituto Pasteur e do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Para Montagnier, por ser artificial, o novo coronavírus tende a ser eliminado pela natureza com o tempo. Na costa leste dos EUA, estudos já demonstrariam que ele estaria atenuado. “Mas haverá muitas mortes até lá”, diz o francês.[2]

Talvez Montagnier esteja certo. Talvez não. Em ciência, nada é certo de fato até haver a comprovação da hipótese inicial. Portanto, nem isso é uma notícia alarmante em si, nem uma notícia falsa (apesar de Montagnier, a despeito de seu Nobel, já ter sido contestado em outros casos, ao longo de sua extensa carreira).

O cerne da notícia, em todo caso, está fora dela. Pois na prática não importa, para a atual pandemia, a origem do vírus, se um mercado chinês de animais selvagens manipulados promiscuamente, como até aqui aventado, ou um laboratório também chinês controlado irresponsavelmente, como agora especulado. Tal notícia, portanto, não tem serventia para aumentar a pandemia de teorias da conspiração. Bem lida, ela serve para outra coisa.

Pois aponta para a origem do vírus em sentido amplo: uma ação humana, em qualquer dos casos. E aqui emerge todo o significado da segunda notícia em relação à primeira, da possível impossibilidade de se obter uma vacina. É que a chamada civilização global com certeza conseguirá, em compensação, produzir novas pandemias.

  1. Epílogo

Ao contrário do que dizem os irracionalistas, a ciência não “brinca de Deus”. Na verdade, ela simplesmente não brinca. A população mundial se aproxima dos 8 bilhões de indivíduos, e em muitos países há mais obesidade do que fome, além de um igual aumento da longevidade. São conquistas tanto da ciência em particular quanto da “prosperidade” do capitalismo em geral. O mesmo capitalismo que tampouco brinca, mas leva muitíssimo a sério seu papel de anjo destruidor do mundo.

O capitalismo de consumo de massa não é um descomedido produtor de objetos, serviços e energia para a gigantesca população mundial: ele é um descomedido transformador do meio ambiente global. Como afirmou outro pesquisador francês, na natureza nada se cria (ou se produz), tudo se transforma. A chamada produção agroindustrial na verdade transforma partes do ambiente em energia, serviços e objetos para consumo humano. Ocorre que, do ponto de vista desse ambiente, transformação externa ou artificial é sinônimo de invasão e destruição: toda atividade econômica para além da mera troca de algo já existente (pedras por conchas) envolve uma ação para se obter alguma coisa e transformá-la em outra, a ser por fim consumida (petróleo extraído do subsolo para se transformar em gasolina e plásticos). Para não falar dos subprodutos de toda transformação e de todo consumo, o lixo e a poluição. Além da crescente penetração dos recantos mais recônditos do planeta, fonte imediata de mais materiais a serem transformados, e fonte potencial de novos patógenos a serem contatados.

Voltamos aos novos vírus. Mas não se trata de um círculo, e sim de uma espiral. De mais uma volta no parafuso das consequências catastróficas. Pois a inevitabilidade de novas e imprevisíveis doenças infecciosas (não apenas novos vírus: a Peste Negra foi causada por uma bactéria), sejam de origem natural, cultural ou laboratorial, se soma à destruição e à poluição do meio ambiente global. E essa conta (novas pandemias [algumas sem vacina ou remédio] + meio ambiente em crescente devastação + novas pandemias + meio ambiente em crescente devastação + novas pandemias etc.) não fecha.

Dado que o mundo atual é, de qualquer forma, insustentável, ele tem duas e apenas duas alternativas: mudar ou se extinguir. Em ambos os casos (e a despeito de como e quando), será o fim deste mundo.

              

 

[1] <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2020/04/17/oms-ve-poucos-sinais-de-imunidade-de-grupo-para-covid-19-diz-que-esta-ajudando-brasil-a-adquirir-testes.htm>

[2] <https://istoe.com.br/Novo-coronavIrus-foi-fabricado-em-laboratorio-chines-diz-descobridor-do-HIV>


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).