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A fotografia é uma imagem onde o autor está sempre colocado em xeque-mate, por ser uma imagem feita com uma máquina, que dispensa o uso da mão (aqueiropoieta, como o véu de Verônica, sine manu facta, onde o rosto impresso de Jesus surge no linho), devido a específicas características processuais da impressão luminosa em um aparato fotossensível.
Não importa o que sente: o antigo sal de prata ou o sensor da câmera digital, algo tem que ser sensível à luz em algum momento. Ademais, o automatismo do processo possibilita images/stories fotográficas sem nenhuma autoria, na maioria das vezes. As câmeras de segurança são meros espelhos com memória, sem falar nas cabines automáticas de fotos de identificação, onde o enquadramento do retrato se dá através de um ajuste do espelho, e a foto é feita automaticamente pela máquina da cabine. (Por favor, onde compro as fichas da cabine de retratos?)Por essas e outras, a fotografia tem sempre um problema com autoria, por isso seus autores, como eu aqui, estão sempre a se justificar. No Tribunal a fotografia continuará sempre suspeita, apesar de colaborar delatando, incrementando as vendas e dopando como entretenimento bilhões de zumbis a cabos
Com o recente acordo ortográfico, a palavra que denomina a prática da representação de si mesmo – “auto-retrato” – passou a ser escrita sem hífen e com r dobrado, tornando-se “autorretrato”, o que fez surgir com destaque um “autor” dentro da palavra.
Em se tratando de pintura, escultura ou outra forma de autorrepresentação, excetuando a fotografia, não seria um fato muito significativo o surgimento da palavra “autor” dentro de “autorretrato”. Mas em fotografia isso se reveste de um significado que faz do autorretrato sua prática autoral mais inquestionável. A mais autêntica autoria em fotografia.
Como estou a brincar com as palavras, curiosamente a palavra que nomeia o processo fotográfico – “fotografia” – não foi adotada logo de inicio pelos pioneiros. Exceção foi Hércules Florence, que também inventou a fotografia no século xix, na antiga vila de São Carlos, hoje Campinas (sp). Mesmo isolado, foi ele – antes dos europeus – que pensou num nome adequado ao processo que estava desenvolvendo, juntando as palavras gregas “photo” (luz) e “graphos” (escrita, desenho). O uso disseminado do nome “fotografia” não se deve a Florence, mas foi escolhido por ele com clarividência, uma vez que é a luz e não a mão que grafa.
Mesmo que Florence e seu processo denominado “fotografia” tenham passado despercebido por mais de um século, foi este nome que, por coincidência, acabou se celebrizando.
Outros nomes curiosos e autoexplicativos foram dados pelos inventores europeus. Nicéphore Niépce deu dois nomes: um deles foi “heliogravura” (gravado pelo Sol), por se tratar de uma tentativa de impressionar um verniz fotossensível (betume da Judeia) sobre uma placa de gravura em metal; o outro nome foi “fisioautotipo”, que quer dizer algo como “imagem da natureza por si própria”. Outro pioneiro da fotografia, o inglês W. H. Fox Talbot, intitulou a sua publicação que é considerada o primeiro livro de fotografias – onde ele apresentava as images/stories resultantes de sua pesquisa – de The pencil of nature (O lápis da natureza).
Excetuando o extremo personalismo de Daguerre, que batizou o processo com o nome de “daguerreótipo”, podemos considerar que as denominações “fotografia”, “fisioautotipo”, “heliogravura” e “lápis da natureza” são nomes explicativos da essência de tudo o que veio a se chamar com um único nome: fotografia. Este elemento essencial – o mínimo múltiplo comum de todos os processos que resultam em uma imagem feita pela luz – é o fato de ser uma impressão luminosa das próprias coisas, um processo passivo onde as coisas refletem/projetam sua marca no suporte sensível à luz. O fotógrafo abre a porta da câmara e a luz é quem p(h)ode lá dentro.
Um fotógrafo tem de estar muito mal intencionado para propor um trabalho autoral com fotografia, pois, fazendo as contas, em um processo de construção de images/stories, onde as coisas se designam por reflexos de si mesmas, o autor (?) fotógrafo fica devendo às coisas fotografadas no mínimo cinquenta por cento da autoria. Quando o fotógrafo (autor/sujeito) fotografa uma pessoa (outro sujeito,) esta divisão de autoria se dá até no verbo usado para o ato de fazer a imagem, pois ambos, modelo e fotógrafo, fotografam.
A Gisele Bündchen fotografa muito bem. Ela vai ao estúdio para fotografar, e, por ser boa modelo, dificilmente se deixa ser fotografada, ela é quem fotografa para o fotógrafo.
Outras coisas fotografam muito bem: botox; roupas de marca; rir ao celular com muita satisfação; carros potentes e polidos ao lustro. Até a fome fotografa muito bem.
De acordo com este raciocínio, portanto, a máxima autoria que um fotógrafo pode conseguir é fotografando a si mesmo. Para isso existem várias estratégias conhecidas: virar a câmera para si mesmo, usar o disparador automático, longos cabos de disparo, o próprio reflexo, a sua sombra, partes do seu corpo, entre outras.
Cabe lembrar o que já foi dito por muitos que se debruçaram sobre a fotografia com muito mais seriedade do que eu: ela é a primeira imagem em que o sujeito se viu como um outro; que permitiu que ele se visse como os outros o veem, incluindo partes de si mesmo que nós não vemos, como as costas, por exemplo.
A representação de si mesmo através da fotografia – que também pode ser chamada de autorretrato (feito com fotografia) – teve sem querer, com o acordo ortográfico, um acerto doloso, reservando um campo do fazer fotográfico em que de fato é o único onde a autoria em fotografia é possível sem questionamentos, ao pé da letra e à luz do processo.