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30 gramas de prosa


Sobre o livro Desde os anos 2000 (Minha vida),

de Mauricio Salles Vasconcelos

 

Escrevo sobre o livro Desde os anos 2000 (Minha vida), de Mauricio Salles Vasconcelos. Num pequeno e seminal ensaio dos anos 90, “Rumo à prosa”, Pierre Alferi propõe: “é preciso peneirar toneladas de escritos, de diálogos, de versos, para recolher trinta gramas de prosa”[1]. Tal prosa sucede aos excessos históricos, vem depois das experiências-limite reservadas à elite intelectual, das experiências de massas características do século XX. Joga com o chão, a miséria, os rumores da multidão, com as margens e as bordas revoltas da linguagem quando o prazo de uma representação estável ou pura há muito expirou. Engano de quem imagina que o fim da linguagem cede lugar ao silêncio e ao vazio ambos indizíveis. Ao contrário, deixa aberta a matéria da palavra, sua questão mais premente e alarmante. Esse óbito tão prenunciado já ocorreu bem antes, aparentemente. A linguagem está então liberada da necessidade íntima de representar sua própria morte. E agora? Nada mais a dizer sobre um tema para lá de esgarçado. O apocalipse (não) vem. Mostra-se peça adjacente à história, sua sombra motriz, futuro anterior. Depois de tudo, entretanto, ressobram matéria e motivos para fabular sobre a vida. 

Desde os anos 2000 (Minha vida), de Mauricio Salles Vasconcelos, nos chega neste fim de 2020 feito um compósito de rumor, horror e humor. A tradução da tão recente quanto complexa história neomilenar em um livro mínimo, módico, demonstra certo procedimento do autor ao apreender sua vida passada em prosa: toda uma (cosmo)política da frase, da pontuação, de espacialização, desponta de sua atividade escritural. Singularização para além das veleidades do indivíduo. Uma vida em questão e desbordo na linguagem, expandindo seu campo de atuação e irradiação até o indeterminável, nada tem a ver com o teatro familiar abrigado em códigos subjetivos, objetivos, particulares, universais. Nem com a literatura de regateio, da complacência, da assimilação. Sua força dramática é pré-individual, sua mise-en-scène aberrante – comunica e traz para a superfície anomalias inorgânicas. Não há outro modo de combater as seduções fascistas da linguagem se não se alcança uma escrita impessoal, estranha a si mesma, capaz de acionar máquinas de guerra – independentes do sujeito – contra as novas condições de normalidade da sociedade necrohumana. A passagem para o “ele” da enunciação – “variante-eu”, escreve Mauricio –, não ocorre sem uma obstinada luta existencial, um corpo-a-corpo permanente com a linguagem, “um longo, imenso e pensado desregramento de todos os sentidos”, tal como já fica notável no livro de Mauricio, Rimbaud da América e outras iluminações (2000), através de uma sondagem crítico-teórica das radiações de Rimbaud nos corpos urbanos, na música, no cinema, reveladora de conceitos decisivos para a narrativa de fim de século/virada de milênio como o de escrita de ação. Nenhuma fórmula (ou essa: “O melhor da poesia é ela acomodar (agradar, facilitar) menos. [O falso]”[2]). Mas ação. Eu enquanto ele. Saída do lago de si. Escrita e construtividade. Clarividência.

Lyn Hejinian, autora matriz para o livro em questão – MSV parte de um diálogo com ela, de quem traduziu My Life, em 2014, e agora ressitua/reescreve no novo milênio My Life in the Nineties (2003) –, sentencia: “Depois de Auschwitz a poesia deve sem dúvida ser bárbara; deve ser estranha para as culturas  que produzem atrocidades. Disso resulta que o poeta deve assumir uma posição bárbara, tomando uma postura criativa, analítica, e muitas vezes de oposição, ocupando (e sendo ocupado pela) estrangeiridade – pelo barbarismo de ser estranho”[3]. Não há um bloco (ano/segmento) de Desde os anos 2000 (Minha vida), ou melhor, não há uma frase do livro que não seja abstrusa, provocadora, discrepante. O leitor é permanentemente incitado a se desencaixar, furar a bolha, realizar uma leitura out of joint. Ou, não há leitura. E essa inquietação rebelde, incansável, traz traços de uma jovialidade rimbaudiana reiterados nas construções personológicas do autor. É um dado marcante em MSV: “Chegar aos gritos no interior do círculo universitário (pós-hermenêutica) – apenas para expor minha indisposição ante os ditames do poder-saber. Porque, em sintonia com vertentes vivas de conhecimento (para lá de “linhas programáticas”), coloquei minha voz ao alto durante-debate, em plena desarmonia”[4].

 

Seu procedimento de escrita põe em prática dispositivos de montagem (reunião de fragmentos, de sequências, reciclagem de segmentos de vida, recolha e edição de matéria/memória, etc.) num processo mnemotécnico de individuação em disposições formais variáveis, conferindo ao andamento narrativo um aspecto de deriva offline, uma temporalidade fora dos universais online distribuída em blocos erráticos. Cada sequência uma sentença. Auge após auge. Meromáximo mínimo, ao modo de Beckett, trazendo elementos menores da vida – desprezados pela poesia essencialista – a uma dimensão expandida, salvaguardando-os da extinção iminente e provável quando se tem por base a política hegemônica e higienista de empresas editoriais, da grande imprensa, dos fest-foods literários, círculos acadêmicos, confrarias de escritores, etc. Extingue-se, no caso, o ser que está por trás dessas corporações, subsistindo a relação ilimitada e irrefreável entre as palavras e as coisas.

Mas antes de alcançar esse dínamo de narrativas sinuosas, fora do esquadro e do compasso demarcadores das estrias, estradas e estadas entre montanhas e litorais do negócio literário Br, convém dizer que MSV opera com base nas técnicas de raspagem, saturação, cortes, perfurações, pick-ups, samples, covers, remix, colisões… Técnicas retiradas, por exemplo, de W.S. Burroughs, Jean-Luc Godard, Lucio Fontana, Brian Eno, Agustín Fernández Mallo. “Em meio à saturação dos signos da História, tomada como entidade-registro, e à automática máquina da mente. Chego a agradecer à vida – na borda de Deus vir-a-ser (sempre), e ficar por aí, aerial alegorema/torrente barro vermelho – pelo inusitado bólide/bônus no Auge Alta Tecnologia”[5].

O sujeito de enunciação, concebido como operador de objetos poéticos, transforma a existência em obra de arte, tal como Deleuze apreende em Foucault um pensamento-artista em “A vida como obra de arte”. Assim, a produção do livro converge com o vir-a-ser da vida enquanto palavras e mundos surgem em correlações simultâneas. Justamente por essa produção (profusão) se dar em debandada e saída do estado de coisas do mundo é que ela vai se tornar incompreensível ante padrões de leitura, estilo, comportamento. O livro-vida se apresenta como ovni[6]  – objeto verbal não identificável – para instituições e clubes literários. Sua resistência consiste neste modo de desestabilizar as especulações editoriais, seus processos de gentrificação, de atacar as diversas modalidades de ditaduras identitárias. E é sobretudo nesse sentido que o trabalho escritural de MSV proposita uma cosmopolítica, presentifica uma individuação criadora multifacetada, díspar, um desejo de liberdade livre capaz de manter a língua sempre viva, surpreendente, como ocorre em Rimbaud. Liberdade sem representantes, é o que estampam na página do livro, no bloco referente a 2015, ano que antecede a sucessão de golpes de Estado no Brasil, os enunciados “Somos nós os políticos (…) Ninguém me representa (…) Eu não me represento”[7]. Eu é ele emerge feito um actante inseminador do vírus no verbo e na primeira pessoa das orações/interpelações. Dispositivo desnorteador de gramáticas. Personagem conceitual a descrever o plano de imanência (uma vida) do autor, o idiota[8] amplificado, desinibido, reivindica a comunidade dos que não têm comunidade, a reunião pela dispersão, quando uma espécie de comunicação alien entra em jogo.

No extremo alheamento ao qual é lançado quem escava as camadas de linguagem que envolvem vida e memória advém a dimensão desabrigada da escrita. A matéria da palavra descoberta desconhece gênero, eu, outro. Está disposta, aberta ao atrito, ao que vem ao seu encontro.  Não seleciona nem divide. Há tanta coisa para ser tocada e perscrutada pela escrita prescindida de uma consciência moral, normativa, missionária, que um mínimo deslizamento de terra, uma folha caindo de uma árvore bastam para a geração de uma nova história. Quem dirá um país em chamas… A exigência escolar de um conhecimento técnico, especializado, tem sua função preparatória, sim, mas para um próximo posto cada vez mais oneroso. Não há fixação de formas e burocracias desatreladas de um jogo de poder e submissão mesquinho, desvitalizante, no qual as dívidas crescem à medida do derruimento humano. Ninguém chega a um fim planejado a não ser quando se passa a vida cavando a própria cova. É a fantasia das formas e edificações que ignora e recalca a astúcia criadora. Pierre Alferi observa que os poetas refinados de hoje vivem assombrados pela prosa, por sua irregularidade, pela precariedade chã que ela implica.

Chega a ser engraçado como a literalidade da prosa nos encaminha a encontros fortuitos e oportunos. É que o texto diz o que diz dizendo-o. Agora mesmo, ao escrever o parágrafo acima, me lembrei de um trecho do livro Literatura de esquerda, de Damián Tabarovsky, onde ele cita Jean Dubuffet enquanto considera ser muito improvável que a criação literária ocorra na posição “homologadora do professor”. Que uma literatura professoral tende a ser desinteressante, fastidiosa. E que um professor a fim de ser reconhecido artista de vanguarda tem maiores chances de se tornar reitor, como foi o caso de Adorno. Tabarovsky chama atenção para essas palavras de Dubuffet, já que elas se aproximam de sua concepção de literatura de esquerda: “Agora seria o momento de fundar institutos de desculturação, espécies de liceus niilistas, onde se dariam um ensino de descondicionamento e desmistificação durante vários anos, de maneira que nos dotassem de um corpo de negadores que mantivesse vivo, em meio ao grande desdobramento geral do acordo cultural, o protesto”[9].

Achei graça, pois não imaginava trazer Damián para diálogo com o presente livro do Mauricio. No entanto, sem que eu percebesse o autor argentino já figurava neste ensaio em outros momentos anteriores. E ainda figura no que está por vir. Inevitável não relacionar, agora, a literatura de esquerda com a linguagem em questão de Lyn Hejinian, com a máxima já citada de The Language of Inquiry: “Depois de Auschwitz a poesia [aqui prosa] deve sem dúvida ser bárbara”. Justamente essa urgência bárbara me permitiu testemunhar que MSV seria o antípoda da argumentação apresentada em Literatura de esquerda sobre professor, literatura e arte, mas isso se houvesse qualquer intenção de verossimilhança nesses textos em convergência. Entretanto, a Arte Bruta, ou Outsider Art de Dubuffet tem muito a contribuir nessa sequência toda.

A livre fabulação em Desde os anos 2000 (Minha vida) chama a atenção do leitor para a estranheza surgida no contato com um material completamente incomum, novo, sem nome. Toca, assim, um ponto crucial da prosa que é a impossibilidade de classificá-la. João Barrento, no prefácio da edição portuguesa do livro Ideia da prosa, de Agamben, assina essa escrita com uma expressão de Henri Michaux: Essai-Échec (Ensaio-Erro). Do escritor e pintor belga me interessa neste momento a nota inscrita na segunda página de seu livro Emergences-Résurgences: “Nascido, criado, educado em um meio e uma cultura unicamente “verbal” (antes da época da invasão das imagens), eu pinto para me descondicionar”.

O trabalho de descondicionamento da escrita, em consistentes incursões pelo ensaio, romance, poesia, narrativas breves, dramaturgia, ao longo de uma existência, proporcionou a Mauricio Salles Vasconcelos desmedida argúcia na composição deste livro-vida. Não por sua elevação, verticalidade, mas pelo grau de perspicácia com que o autor deita a palavra no chão – sobretudo as palavras de ordem. A transformação do eu em ele desdobra-se em outras manobras diegéticas até a saturação do que se pode fazer em termos de artifícios narrativos. Uma terceira pessoa do singular não tem dono, como o “cão-deambulador (“você, que não deixa de me acompanhar”)”[10]. O próprio cão do autor assumindo o andamento narrativo sugere linhas evocatórias de Kafka, Blanchot, Tabarovsky[11]. E também de Jean-Marie Gleize, autor do ensaio “Para onde vão os cães?” – a pergunta seminal de Blanchot (para onde vai a literatura?) tem o foco desviado para esses animais baldios que perambulam pelas ruas da cidade. A pós-poesia nomeada por Gleize se concentra na figura do cão, desde Victor Hugo (“Lancei o verso nobre aos cães negros da prosa”) e Baudelaire (“Eu canto o cão enlameado, o cão pobre, o cão sem domicílio, o cão vagabundo, o cão saltimbanco, o cão cujo instinto, como o do pobre, do boêmio e do histrião, é maravilhosamente espicaçado pela necessidade, essa boa mãe, essa verdadeira mãe das inteligências”). O projeto de um discurso crítico voltado para “o princípio da nudez integral”, uma linguagem literal, de “altitude zero”, incide na elaboração de uma prosa que seja capaz de dizer a presença, o corpo sensível do real. A nudez do animal acaba por desnudar o contorno de que se reveste o humano. Em Desde os anos 2000 (Minha vida), é o narrador que acompanha o cão.

Tudo o que existe por meio da escrita está em jogo:

 

“O nome Ludo   assim (“Eu”) significa (Jogo). Exibe em cada rodada sua raiz –

Eu (é isso que está sendo significado) em jogo –

Entidade permutável –”[12]

 

E assim MSV dissemina dêiticos no decurso deste livro mínimo, compacto de vinte anos de vida em travessia pelo novo milênio, desencadeando uma proliferação de perspectivas narradoras, demonstrando que na narração não existe um ponto de vista privilegiado. E sim uma multidão insurgente, ainda no papel, pronta para se materializar, no ápice do desmonte criminoso do país. Se o eu se torna ele, o “ele não” vociferado em hashtags pela rede se transforma em “eu não”. Está dado o nome aos bois. O monstro na presidência não teria a mínima capacidade de se metamorfosear em ele. É o próprio Eu mergulhado em sua treva interior. Narciso apodrecido. Eu-não, cruz-credo.

Desde os anos 2000 (Minha vida), tal como disse Marcelo Ariel no evento de lançamento do livro – com ato cênico do autor seguido de conversa sobre literatura agora/segunda década neomilenar com o poeta –, ocorrido na plataforma Google Meet no dia 12/12/2020, ocupa o lugar de Magnum opus na obra do autor. A grande ironia é que este, talvez, seja o seu menor livro em extensão. Ou seja, uma arma poderosa por tamanha discrição e concretude, já que o inimigo máximo está entre os mais espalhafatosos e delirantes da face da Terra. Algo que me lembra, para finalizar esse jogo interlocutório, o começo da introdução de O que é a filosofia?, “Assim Pois a Questão…”: “Há casos em que a velhice dá, não uma eterna juventude mas, ao contrário, uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um traço que atravessa as eras”[13].

 

 

 

 

 

[1] Pierre Alferi. “Rumo à prosa”, in ALEA, Rio de Janeiro, vol. 15/2, p. 423-427, jul-dez 2013.

[2] Charles Bernstein. “Imaginação pataquérica”, in Sibila – Revista de poesia e crítica literária. Seção Crítica, 01 fev 2017.

[3] Lyn Hejinian. The Language of Inquiry. University of California Press. Berkeley and Los Angeles, Californa: 2000, p. 326. A tradução desse trecho, de Aurora Bernardini, foi extraída do ensaio de Charles Bernstein citado acima.

[4] Mauricio Salles Vasconcelos. Desde os anos 2000 (Minha vida). Lumme Editor: 2020, p. 21.

[5] Vasconcelos, 2020, p. 11.

[6] Cf. Pierre Alferi e Olivier Cadiot, “La mécanique lyrique”.

[7] Vasconcelos, 2020, p. 33.

[8] Isabelle Stengers, em “A proposição cosmopolítica” utiliza a figura do idiota para elucidar seu pensamento: “É preciso ser cauteloso quanto à boa vontade individual. Conferir uma dimensão “cosmopolítica” aos problemas que pensamos sob o modo da política não se refere ao registro das respostas, mas coloca a questão sobre a maneira como podem ser escutados “coletivamente”, no âmbito do agenciamento através do qual se propõe uma questão política, o grito de pavor ou o sussurro do idiota. Nem o idiota, nem Cromwell apavorado, nem o homem da lei obcecado por Bartleby o sabem. Não se trata de se dirigir a eles, mas de agenciar o conjunto de maneira tal que o pensamento coletivo se construa “em presença” da questão insistente que eles fazem existir. Dar a essa insistência um nome, cosmos, inventar a maneira mediante a qual a “política”, que é a nossa assinatura, poderia fazer existir seu “duplo cósmico” [doublure cosmique], as repercussões disso que vai ser decidido, disso que constrói suas razões legítimas, sobre isso que permanece surdo a essa legitimidade, eis a proposição cosmopolítica”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, nº 69, p. 442-464, abr. 2018.

[9] Damián Tabarovsky. Literatura de esquerda. Trad. Ciro Lubliner e Tiago Cfer. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017, p. 83.

[10] Vasconcelos, 2020, p. 21.

[11] Cf. Damián Tabarovsky. Kafka de férias. Trad. e posfácio Tiago Cfer. São Paulo: Editora Córrego, 2019.

[12] Vasconcelos, 2020, p. 44.

[13] Gilles Deleuze e Félix Guattari. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 09.