Skip to main content

Pound, testemunha da crise do ocidente

Não se pode compreender a obra de Pound sem colocá-la, antes de mais nada, em seu devido contexto. Ele coincide com uma fratura sem precedentes na tradição do Ocidente, da qual o Ocidente não só ainda não saiu, mas da qual não poderá sair se não for capaz de mensurar seu alcance, decisivo em todos os sentidos. Depois do fim da Primeira Guerra Mundial havia ficado claro, para quem tivesse conseguido manter a lucidez, que algo de irreparável se produzira na Europa, e que o nexo entre passado e presente havia se rompido.

Não deve surpreender que os primeiros a se dar conta disso tenham sido os poetas e artistas, uma vez que é a eles que cabe – em qualquer tempo – a transmissão daquilo que há de mais precioso: a língua e os sentidos. De mesma forma, não se pode colocar o problema das vanguardas poéticas do século XX se não se entender, preliminarmente, que elas são a tentativa de responder – com maior ou menor consciência, conforme o caso – a tal catástrofe: essas vanguardas não têm a ver com a poesia e com as artes, mas sim com a sua impossibilidade radical, com o desaparecimento das condições que as tornavam possíveis.

A transposição em termos estético-mercantis da crise de uma época que se expressara nas vanguardas é, por isso mesmo, uma das páginas mais vergonhosas da história do Ocidente, da qual os museus de arte contemporânea representam, hoje, a extrema e a mais preguiçosa das ramificações. Aquilo em que consistia a própria possibilidade de sobrevivência do ser humano enquanto ser espiritual, é reduzido a um fenômeno de moda e liquidado, uma vez por todas, em forma de produção de novas mercadorias […].

Apenas nesse contexto a obra de Pound – ao menos, a partir dos primeiros Cantos – se torna inteligível. Ele é o poeta que com mais rigor e quase com “absoluto descaramento” se colocou diante da catástrofe da cultura ocidental. Bem mais decididamente do que Eliot, ele mora nessa “ terra devastada” – um inferno que, como sugere no “Canto XLVII”, não se pode crer “atravessar depressa”, tal como fez o “reverendo Eliot”.

Mas, justamente por isso, para ele “todas as idades são contemporâneas” e ele pode, assim, referir-se imediatamente à história inteira da cultura, de Homero a Cavalcanti, de Mani a Mussolini, de Dante a Browning, de Perséfone a Woodrow Wilson, de Confúcio a Arnaut Daniel. ”Somente Pound”, disse Eliot, “é capaz de vê-los como seres viventes” – com a condição de precisar que, nos Cantos, essas personagens são apenas fragmentos que emergem por um instante do Letes e mergulham nele novamente, incessantemente […].

Se a tradição é acessível apenas como lasca e fragmento, o poeta caçador de formas não vê diante de si outra coisa a não ser ruínas – mesmo que sejam, para ele, vivas e vitais, justamente enquanto fragmentos. Seu canto inaudito está entretecido desses escombros que, uma vez esgotada sua função, não sobrevivem a ele. Daí decorre a impressão de artificialidade, tantas vezes injustamente censurada em sua poesia. Pound procede como um filólogo que, na crise irrevogável da tradição, experimenta transmitir sem notas de rodapé a própria impossibilidade da transmissão.

Na frase do “Canto 76”, em que ele evoca a si mesmo enquanto scriptor, diante do naufrágio da Europa, o termo deve obviamente ser entendido como “escriba”, não como escritor. Diante da destruição da tradição, ele transforma essa destruição em um método poético e – numa espécie de acrobática “destruição da destruição”, ainda mima, como copista, um ato de transmissão. Em que medida esse ato é bem-sucedido, ou seja, em que medida o texto ilegível, em que um ideograma chinês ao lado de uma palavra grega e um vocábulo provençal responde a um hemistíquio latino possa ser realmente lido é outra questão, à qual não se pode responder ligeiramente.

A verdade e a grandeza de Pound coincidem, ou seja, colocam-se e caem, com a resposta a essas perguntas […]. Daí a importância daqueles escritos em prosa – como os que há no seu livro O ABC da Economia – em que Pound expõe suas ideias sobre a poesia, sobre a economia e sobre a política. Esses escritos constituem a tal ponto parte integrante de sua produção poética que foi possível afirmar, com razão, que “os Cantos são, obviamente, a exposição de uma teoria econômica que busca na história uma exemplificação”.

Como um poeta arcaico, Pound sente-se responsável por todo o paideuma (como ele adora dizer, usando o termo de Frobenius) do Ocidente, em todos seus aspectos. “Usura”, “dinheirolatria” e, finalmente, “avareza”, são os nomes que ele dá ao sistema mental – simetricamente oposto ao “ estado mental eterno” que de acordo com o primeiro axioma da Religio, define a divindade – que determinou o colapso do estado mental eterno e que domina ainda hoje – muito mais do que no tempo de Pound – os governos das democracias ocidentais que concordaram em se dedicar – com menor ou maior ferocidade – ao “assassínio por meio do capital”.

Não é aqui o lugar para avaliar em que medida, apesar das ilusões quanto aos “povos latinos” e ao fascismo, as teorias econômicas de Pound sejam ainda atuais. O problema não está em saber se a genial moeda de Silvio Gesell, que tanto o fascinava e na qual, para impedir seu entesouramento, devia se aplicar a cada mês um selo de um por cento de seu valor, seja ou não seja realizável. O que é decisivo, isso sim, é o fato que, nas intenções do poeta, dito entesouramento (acúmulo de riqueza não destinada a investimentos produtivos) denunciava aquela “possibilidade de estrangular o povo por meio da moeda” que ele via, não sem razão, como base do sistema bancário moderno.

O fato de que o poeta que havia percebido com maior agudeza a crise da cultura moderna tenha dedicado um número impressionante de pequenas obras aos problemas da economia é, nesse sentido, perfeitamente coerente. “Os artistas são as antenas da raça. Os efeitos do mal social se manifestam, antes de tudo, nas artes. A maior parte dos males sociais são, em sua raiz, econômicos”.

 

La Stampa Tuttolibri, 1 de outubro de 2016.

 

 

 

Ezra Pound lê Canto LXXXI