Já no título do novo livro de Ronald Augusto, A contragosto do solo (Selo Demônio Negro, 2020) o autor, como vem fazendo reiteradamente desde que publicou seu primeiro livro, em 1983, deixa evidente a que veio: escreve contra – contra a língua, contra o senso comum, contra o estado de coisas em que estamos engolfados, contra o racismo e contra escritores e poéticas que se acomodam diante disso tudo se naturalizando sem o exigível senso crítico e, se o leitor for sagaz, poderá notar nas leituras de seus livros que escreve também contra si próprio. E, quando, num de seus trampos de trama enganosa, escreve a favor, usa sua habitual escrita de feitio barroco, ornada por vocabulário preciosista, que joga a todo momento o leitor na dúvida abismal do sentido, a ponto de muitos dizerem ser difícil sua poesia, insinuando uma sinonímia de ilegibilidade que, afinal, só diminui para quem a enfrenta e descobre que não existe. Ainda assim a acusação de ilegibilidade, como disse, superável, não chega a ser de todo infundada se pensarmos que Ronald é useiro e vezeiro da prática do “trobar clus”, forma de expressão poética experimentada por Marcabru e Arnaut Daniel, que primava pela complexidade e sentido obscuro, sendo muito usada pelos trovadores por volta do século XII para um público minoritário e mais exigente, a ponto de que, devido à sua inacessibilidade tendeu ao desaparecimento…
De fato, porém, para os neófitos leitores de poemas de livros que abundam contemporaneamente se assemelhando com aqueles almanaques de farmácia de antigamente, a leitura da poesia de Ronald Augusto pode se transparecer árida, pois exige atenção, releituras, buscas ao dicionário ou a enciclopédias e, para quem se arrisca ir mais longe, conhecimento de contexto histórico, cultural, literário, bem como da própria biografia do autor, emaranhada nas diversas camadas em palimpsesto que seu texto vai urdindo.
No contexto histórico em que vivemos, desvelado em sua contundência de propósitos desde o golpe de 2016, tudo está dito com evidência irretocável e o estado de barbárie somente choca aos virginais que não entenderam o que é o capitalismo global ou mesmo o imperialismo negreiro que ainda rege o país desde que o tráfico de escravos começou e se manteve, mesmo com encenações emancipatórias para inglês ver. A linguagem disso tudo está aí, evidenciada em desfaçatez, límpida. Por isso uma poética como a de Ronald Augusto, que lida com refinamentos, é altamente necessária porque remexe a língua, usando com maestria subversiva a linguagem poética, sendo desafiadora para fazer pensar ao agir de forma disruptiva no interior desses discursos, cujo “poste da ku klux klan”, como o batizou Ronald, oferece o maior exemplo.
Assim é que A contragosto do solo se abre com a seção “Ao pé do mural”, o mural como lugar onde são publicados os atos oficiais, uma espécie de hasta pública…, que hoje poderíamos dizer que é não apenas mais os antiquados “meios de comunicação”, mas todas as redes insociáveis, é diante desse e-mural que o autor se põe, iniciando com um poema que, de entrada, já ironiza os que fazem qualquer coisa para publicar livros, de virar evangélicos a se reconhecer como afrodescendentes, entre muitos exemplos mais, como ele reitera, para publicar livros.
Atravessado o preâmbulo dessa ironia, o leitor já pisa a barbárie contestada em dois excelentes poemas porque contundentes e altamente elaborados. O primeiro é “Não conheço”, um petardo dirigido ao racismo mais refinado existente na linguagem cotidiana que naturaliza expressões explicitadas no poema por seu contrário, com o efeito subversivo da troca das palavras relacionadas à cor negra por palavras relacionadas à cor branca: – “Não conheço”, diz o poeta: “nenhum branco fujão”, “nenhum genocídio de jovens brancos”, “nenhum branco encardido”, “nenhuma peste branca”…, “nenhum futuro branco”… A contundência dos exemplos é irretocável, dispensa argumentos, tal a potência de dizer do poema, restando ao leitor apenas a missão de pensar e desentranhar em si esse vírus da dúvida inoculado para corroer sua própria linguagem. Publicado pelo Selo Demônio Negro, vírus da dúvida ativo, pode se dizer que o poema se derrama invísivel em mais um sugestivo imaginoso verso que sussurra “Não conheço nenhum Selo Demônio Branco…”
O poema seguinte, “O último refúgio”, envereda pelas vísceras fétidas do patriotismo, que se reembandeirou de verde e amarelo e se abriu de vez após o golpe para em seu mando moralizar e penalizar direitos, derramando-se em verborragia pela redução da maioridade penal, pela cura gay, contra cotas raciais, passando pelo patriotismo de esquerda e o de direita, o da jovem-guarda e o do tropicalismo e o que troca a palavra sagacidade por esperteza…
“Elegia, 2014”, vai ao ponto nevrálgico desta sociedade, deste “brasil negro metido a branco/ que mal se sustenta sobre a própria branquitude/ de pequeno catedrático incurioso/ curvado sobre o anuário de segurança pública… de lobatomia coextensiva”, diria-se, aos juízes do supremo… “que assassina jovens negros” e encerra o assunto com “balanços superavitários”: “no nervo da arena erística/ o costume de pôr fim a todas as ideias racistas/ dando cabo antes daquele que promove a crítica ao racismo/ do que daquele que o pratica”.
Na sequência desses poemas Ronald oferece um respiro ao leitor ofertando um lirismo que vem percorrendo sua poética, inspirada na cultura negra de origem africana, explicitada em “orikis”, palavra originada da língua iorubá, que expressa afeto a alguém. Assim, passamos por uma “oiá empurra-nuvem”, “pomba e senhora priapeia dos raios”; por um ogum “que não empunha espada, não/ nem é espadaúdo/ tal qual os semideuses/ da marvel entretenimento/ nem tem a musculatura/ de estopa dos grandalhões/ do cinema mudo”; uma renca de xangôs irados; uma dona ivone que “samba o miudinho devagar demoradinho” e risca para o rés do chão “a velha vanguarda masculina do samba”.
A seção seguinte é a de Mnemetrônomo, que foi publicado em 2014 numa pequena tiragem na Coleção Coice de Porco, da Butecanis Editora Cabocla, do resistente Daniel Rosa dos Santos, em Camboriú, a facão, como dita seu marketing. A observação, aqui, não é excessiva, mas tem a função de comentar outra das características da veiculação da poética de Ronald Augusto, que tem se dado através de pequenas editoras artesanais como a Éblis, criada e extinta por ele e Ronaldo Machado em Porto Alegre, que publicou No assoalho duro em 2007 e Cair de costas, reunião de seus primeiros seis livros, em 2012; a Editora Caseira, de Florianópolis, que publicou Subir ao mural em 2017; a Artes & Ecos, de Porto Alegre, que publicou Entre uma praia e outra em 2018; a Editora Ogums, de Salvador, que publicou À Ipásia que o espera, em 2016 e a Papel do Mato Oficina Tipográfica, que publicou Física, criada pelo poeta Cristiano Moreira em Rodeio-SC.
Mnemetrômono é um livro, ou conjunto de poemas, peculiar, que é precedido de uma rara apresentação do autor, que, nesse caso, explica que os poemas “nasceram como uma resposta à irritação que me causaram as traduções de Augusto de Campos a alguns poemas de Stéphane Mallarmé e W. B. Yeats, incluídas no livro Poesia da recusa (2006)”. Diz Ronald que “Naquele momento, o nó da irritação dizia respeito à precisão e à liberdade – excessiva às vezes – com que o poeta-tradutor manejava o alexandrino”.
A irritação, positiva e potente, gera um conjunto interessantíssimo de sete poemas em que o autor experimenta escrever versos com dez e doze sílabas, exercitando a retórica peculiar em sua poética, também remarcada pelo preciosismo vocabular, características que em geral motivam os comentários de dificuldade de leitura por leitores desabituados a enfrentar essa espécie de linguagem que desafia a curta compreensão, predominante na poesia convencional. Os dois primeiros poemas, “Ao peso se dobra” e “Sócios no transe”, descrevem de forma bufa dois personagens rebeldes, um “alheio a mais desditas derrribando regras/ que lhe custaram escaras tanta choça brava” e outro, um “vulcano coxo/ que alça a gâmbia seca/ e sai num pisar raro”. “O que mal se explica” remarca um eu lírico que se diz fugir “ao cimento branco da copulativa é”, remetendo a um diálogo com a reflexão de Lezama Lima, tripudiada por um “vil trobar clus” para, ao fim, escafeder-se num não dizer o bastante… Após, vem “A estrela invernal”, um belo poema sobre a vida na senectude que exalta a prática da escrita ao lado de sua progênie e de sua ipásia amada. Nos seguintes o eu lírico persiste teimoso nos embates com a vida, descrito em “A mais baixa atividade mental” como “das naves do inferno a trampa residual/ à província admoesta sem lograr cuidado/ sequer de quem lhe deve atenção mais venal” e, em “Que cansa, estafa”, “à beira da várzea múrmuro anuro/ arredado da própria circunstância/ ele se excede no que é sem augúrio/ e assoma ao extremo da sua lâmina”, concluindo a série com “Versos de circunstância e acervo”, em que o embate se dá entre um homem e uma mulher, ele impondo que “tanto se dá como se perde ardor” e ela derrubando com “tanto se dá como se perde a forma”.
O conjunto “Seis noites” narra a escuta noturna dos movimentos e ruídos que ocorrem numa praia demonstrando-se um exercício interessante que une o senso de observação auditiva com a escrita versificada em livres associações que trazem para os poemas um bêbado de chinelas, um caminhão, as ondas enormes etc., que vão transitando pelos versos e se entrecruzando com personagens como o cego Aderaldo ou o poeta Langston Hughes. Essa série, por sua vez, se associa em semelhança a outra série do livro, “Viagem à Gamboa”, remarcada pela observação da praia, porém em sua exterioridade, através de figuras como um boi zebu encontrado pelo caminho ou, no excelente poema que descreve “as mulheres de gamboa”, que transitam em “um ônibus só de mulheres”, as quais “dispõem de um idioma/ que se confunde com aquele praticado por galinhas de angola”. Dialoga com essas, pela mesma característica descritiva e de observação a série de poemas 2015-2016, de viagem pelos subúrbios de Arroio Grande e Jaguarão, indo em direção ao Uruguai e Chile.
A última série de poemas, de caráter biográfico e de memória, registra a experiência sensível da perda da pequena filha Lília, que se pode ler a título de encerramento do livro mesmo, em sua contundência constatada de que “viver não passa de um simulacro de milagre/ não há mais lília em nenhuma parte”, restando, após a esgrima barroca que percorre o livro, o silêncio para ser remoído pelo leitor.
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Feitas essas observações sobre a poética de Ronald Augusto, é preciso também destacar seu trabalho de ensaísta e crítico, presente de forma exemplar nos livros Decupagens assim (Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2012) e O leitor desobediente (Porto Alegre: Figura de Linguagem, 2019), nos quais percorre variados temas, com predileção pela leitura poética. Os textos são, como sugere um dos títulos, de um leitor desobediente, inconformado e possuído pela poesia que derrama ácido contra a amenidade poética lida em poetas como Cora Coralina, Manoel de Barros ou Leminski, sobrando também para o ficcionista Cristóvão Tezza e poetas contemporâneos na ativa, em relação aos quais aponta um “notável adestramento técnico… que se restringe a ratificar o continuum da tradição e do entorno poéticos a que eles mais se submetem do que problematizam”. A pulsão que move sua escrita é a de um possesso que, conforme nota ele em análise sobre Orfeu da Conceição, refere-se ao sentido dos cultos afro-brasileiros segundo os quais a possessão é o momento exusíaco da interlocução entre o homem e o orum, o reino dos mortos da mitologia iorubá. Pois então, afastando a visão cristã, que exige o antídoto do exorcismo, que não interessa a Ronald, que não vê demônios nesse meio, mas mortos de vitalidade, poderíamos insinuar que ele age tomado nesse terreiro arrastando a asa nos montículos de pó, cobrando a necessária vitalidade negativa da poesia.
Podemos dizer, também, que Ronald envelhece mas não envilece, procura manter uma vitalidade juvenil expressa em rebeldia crítica que não se conforma. Tendo como lema os poetas que “lesam a regra e passam a encarar a tradição menos como coisa herdada do que como conquista permanente… e estabelecem uma tradição de ruptura ou de abandono da consagração como topo cumulativo de feitos”, inspira-se em escritores como Ezra Pound ou Joan Brossa para manter acesa a chama criativa.
Com a certeza expressa de que “o gesto inaugural de nossa gostosa mestiçagem, ao fim e ao cabo, provém do estupro escravagista”, amadureceu suas leituras de escritores negros e assimilou como paradigma a ideia de uma transgressão constante que, associada à negritude, o levou à síntese perfeita formulada pelo poeta Arnaldo Xavier, de “transnegressão”, que serve como lema orientador da prática, sendo Xavier, para Ronald, o “poeta negro mais consciente acerca da natureza das relações entre a poesia e a política”, e aos quais soma Cruz e Sousa, Cuti e Oliveira Silveira, de quem organizou sua poesia reunida.
Ainda que sua escrita não se restrinja a uma militância pela causa negra, ela tem sido premida pelas contingências, exigindo do escritor uma constante tomada de posição, em relação à qual eventualmente reage como aquele personagem coxo do poema, saindo pela tangente e agulhando reflexão nos panfletários. Assim é que afirma que a “luta pela construção de um novo repertório e de uma poética transnegressora adequadas a uma época como a nossa, cuja intersecção, o trânsito entre as diversas (antes divergentes) formas de linguagem cresce velozmente” (p. 114 de O leitor desobediente) e vai contra o estereótipo e a convenção do que se tem entendido como ‘literatura negra’ ou participante que priorize apenas “uma representação sentimentalista ou naturalista da realidade” ou o discurso político que a traveste de panfleto.
Concluo dizendo que Ronald Augusto é incontornável, não adianta mudar de calçada. Sendo um dos poetas mais importantes deste momento que vivemos, um livro como A contragosto do solo, que exalta sua poética numa seleção do que tem de melhor, é de leitura obrigatória para o que se entende por poesia contemporânea, merecedora ansiosa de fissuras.