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Relendo Leminski

(Paulo depois do Leminski: três “minifestos” e um projeto estético[1])

Na liturgia da academia – reduto dos santos e não dos diabos – Leminski, embora se pense o contrário, quase não entra e, quando o faz, é pelas mãos de uma espécie de corte brusco na totalidade do organismo para retirar-lhe um único filete a ser analisado pelo cientista da vez com um bom aporte teórico nos microscópios dos laboratórios literários. Frequentemente, o objetivo é mais o de etiquetar uma poética – dando-a, finalmente, como um corpo morto e acabado – e menos o de dissecá-la tirando-lhe a carne podre para que seja possível reconhecer seus ossos buscando chegar à medula.

Prezado Herr Doktor Proféssor,
eu só queria saber
por que nessa história
todo mundo tem nome, menos eu

 atenciosamente,

                                     menos eu. (LEMINSKI, 1984, p.36)

            O bilhete escrito pelo narrador de Agora é que são elas (1984) endereçado ao professor Propp – personagem fictícia embora historicamente verídica com o qual o narrador mantém relação conflituosa de existência – parece pertinente também neste contexto investigativo que se pretende: por que nessa história, a da poesia brasileira, todo mundo tem nome menos Paulo Leminski?

            Algumas hipóteses são possíveis. Por exemplo: trata-se de uma poesia “fraca”, “fácil” e, sobretudo, sem referência externa. Hipótese verificável, não há dúvidas:

mesmo
na idade
de virar
eu mesmo

ainda
confundo
felicidade
com este
nervosismo (LEMINSKI, 2013, p.35)

Ou ainda:

nada que o sol
não explique

tudo que a lua
mais chique

não tem chuva
que desbote essa flor (LEMINSKI, 2013, p.46)

            Estes dois exemplos rápidos são mais do que suficientes para atestar o que há de mais fraco na poesia de Leminski: o tema poético ralo (impressões mais ou menos corriqueiras), adoção do verso livre com ausência de ritmo forte, linguagem capaz de garantir a comunicação, ausência de referência externa etc. Em suma: versos não agudos que encarnam o mundo contemporâneo não pelo seu avesso, “pela via difícil de pô-lo a olho a nu ou lhe meter o dedo na cara, mas por ecoar o que mais o caracteriza” (DOLHNIKOFF, 2013)[2]. Uma poesia, portanto, tributária da linguagem conotativa da publicidade, não há dúvidas. Ainda assim, há controvérsias e um breve ensaio do próprio Leminski, datado de 1978, pode dar algumas pistas disso – embora saibamos o perigo que se corre quando se pensa o poeta a partir dele mesmo e não a contrapelo.

            O título do ensaio é grafado, em máquina de escrever, como se fosse uma espécie de texto publicitário colocado em xeque por uma questão final[3]:

Propaganda.
Tudo vai bem no melhor dos mundos possíveis.
Será que vai mesmo?

            Vejamos o conteúdo do ensaio:

Tem um tabu, em propaganda,
em relação ao não.
Ao nunca.
Ao negativo.
A publicidade é, fundamentalmente, positiva.
Um não pega mal em título

[…]

Ora, o discurso da verdade não pode passar sem um não.
Ele é o começo da crítica.
Crítica quer dizer pensamento.
E pensamento é o acesso da consciência à verdade.
A verdade, sabemos, é o mais importante
dos bens sociais,
no plano da consciência.
Uma publicidade socialmente consciente,
no seu sentido mais amplo e mais radical,
deveria poder chegar até ela.
Para isso,
temos que reivindicar o direito ao não.
Mesmo contra o cliente,
que paga a agência
que nos paga.
O não é o único antídoto
contra o otimismo-mentira.
Vamos usá-lo mais, pessoal? (LEMINSKI, 1978, grifo meu). [4]

O importante aqui é verificar a presença de duas questões fundamentais: a crítica e a publicidade, campos conceituais antagônicos em diversos aspectos embora muito semelhante no objetivo comum de convencer alguém (o leitor para a crítica e o consumidor para a propaganda) de alguma coisa. A diferença abissal entre esses dois campos parece ser o ponto de tensão colocado em discussão por Leminski: o tabu do não. Enquanto para a publicidade a linguagem positiva é imperativa, para a crítica é fundamental dissuadir tal “otimismo-mentira”. Só assim, segundo o poeta, é possível atingir esse “bem social”, essa esfera utópica e filosófica da “verdade”.

É certo que uma vista rápida à edição de maior sucesso editorial de Leminski, sua Toda Poesia (Companhia das Letras, 2013), pode fazer cair por terra a disposição empreendida no referido ensaio. Ronald Augusto, por exemplo, em Uma análise da poesia de Leminski, publicado na Sibila, avalia precisamente as fraquezas críticas da edição e os problemas da dimensão publicitária dada à obra – sobretudo visando à divulgação comercial. Se por um lado esses traços parecem consonantes com o valor rarefeito de grande parte dos poemas contidos ali, por outro parecem apagar dimensões críticas fundamentais tratadas diversas vezes pelo próprio Leminski. Talvez esteja aí, nessa edição póstuma de capa florescente, o maior exemplo do “tabu do não” atuando como força decisiva sobre o próprio poeta. 

Uma rápida passada pela primeira edição de poemas do autor pode, no entanto, nos dar alguns indícios desta outra “faceta” leminskiana[5]: aquela que tributa pelo “não” como “antídoto” contra o “otimismo-mentira”. Encontramos, por exemplo, em Não fosse isso e era menos não fosse menos e era quase (1980), um extrato de um Leminski impossível de ser estampado em frases de camiseta, vejamos:

grande angular para zap[6]

as cidades do ocidente
nas planícies
na beira mar
do lado dos rios
feras abatidas a tiro
durante a noite

de dia
um motor mantém todas
vivas e acesas                              LUCRO

à noite
fantasmas das coisas não ditas
sombras das coisas não feitas
vêm
pé ante pé
mexer em seus sonhos

as cidades do ocidente
gritam
gritam
demônios loucos
por toda a madrugada (LEMINSKI, 1980, s/p).

Mesmo quando a metalinguagem se faz presente o tom não é, de modo algum, o de um poeta otimista.

essa língua que sempre falo
(e falo sempre)
e distraído escrevo
embora não tão frequentemente
massa falida
desmorona no papel
                                                           quando babo
e acabada em texto
eu acabo (LEMINSKI, 1980, s/p).

No primeiro poema, temos uma angular que flagra a cidade em seu espectro violento do lucro, da morte e dos “demônios loucos” que gritam onde só existem as “coisas não ditas”. No segundo, a língua é expressa como “massa falida” e, por isso, só possível de, paradoxalmente, construir “desmoronamentos”, ruínas. Em ensaio intitulado 3 línguas, publicado mais tarde em Anseios crípticos (anseios teóricos): peripécias de um investigador no torvelinho das ideias (1986), o mesmo tom de negatividade em relação à língua é reforçado na afirmação: “A língua portuguesa é o túmulo do pensamento”. Ora, se não é um Leminski cultivando o “tabu do não”, com um tom completamente oposto àquele cujas sacadas são estampadas em camisetas, grafites e redes sociais?

            Com esses exemplos é possível, minimamente, intuir que Leminski não é, de modo integral e indiscutível, esse ilustre poeta popular que canta a toda gente versos breves, ágeis e ausentes de conflitos, tal como se refletisse em sua poética o ethos publicitário. Ou como se fosse, num corte brusco e rasteiro, um “poeta para iniciantes”, como afirma, não sem razão, Ronald Augusto (2013)[7]. Tampouco é Paulo Leminski somente o jogo entre a faceta junkie, porralouca com a qual venceu a década de 1970 – quando, retomando o narrador de Agora é que são elas (1984), o poeta chegou a pensar “(…) que a festa já tinha começado, quando, bem, todo mundo sabe como é que são essas coisas” (LEMINSKI, 1984, p.37) – e a faceta do poeta cujas soluções no campo da linguagem foram e ainda são reproduzidas como modelo pelas gerações posteriores, como bem atesta Ronald Augusto (2013). Por fim, Paulo Leminski não é somente o “Paulo Coelho” da poesia, como quer Dolhnikoff (2013).

            Um poeta é também aquilo que ele próprio formula, quando o faz, como projeto estético, mesmo que projeto e prática tenha suas divergências.  Exercício que, a propósito, Paulo Coelho não faz sobre literatura. É neste ponto que parece residir lacuna maior dos estudos acerca de Paulo Leminski: a ausência de uma investigação aprofundada a respeito daquilo que o poeta propõe como horizonte possível para a sua poesia e a de seu tempo como projeto. Chegamos, portanto, a uma questão fundamental: há um projeto de poesia em Paulo Leminski? E se há, o que é poesia para Paulo Leminski? Dessas questões desdobra-se uma outra: qual a função social da poesia para Paulo Leminski?[8]

Em 1963, Leminski, então com 19 anos, publica breve ensaio crítico intitulado Um poeta mineiro, no suplemento literário Vanguarda do jornal Correio do Paraná, sobre a poesia de Affonso Romano de Sant’Anna. Leminski analisa minuciosamente cinco poemas[9] afirmando ser o poeta em questão uma “honrosa exceção” por apresentar uma “grande economia verbal” aliada à eficácia da proximidade sonora, semântica e consciência histórica, tendo em vista que os “poetas que surgem atualmente no país” demonstram “certo descaso pelo labor poético” e consideram “a poesia como uma loucura divertida e passageira que merece a comemoração de ser editada” (CORREIO DO PARANÁ, 1963, p.7). A ressalva, por exemplo, à poesia “a serviço da revolução social” (CORREIO DO PARANÁ, 1963, p.7) indica muito cedo uma espécie de reflexão introdutória de Leminski sobre o problema crítico da natureza e função social da poesia. Para ele, Affonso Romano de Sant’Anna diferencia-se dos demais poetas contemporâneos principalmente porque para aqueles “Basta-lhes a justa causa. O apuro da forma é passadismo, veleidade decadente” (CORREIO DO PARANÁ, 1963, p.7), o que para o jovem crítico significa um erro “fatal na arte e muito mais na poesia” (CORREIO DO PARANÁ, 1963, p.7). Ora, para o Leminski de 1963, cujo texto é escrito meses antes do seu encontro com os poetas concretos[10] na I Semana Nacional de Poesia de Vanguarda (963), o poeta contemporâneo deve ser capaz de operar uma simbiose entre o labor formal – o que inclui “economia verbal” – e a consciência histórica. Mesmo que neste texto não fique exatamente claro “o que é poesia” na concepção do paranaense, tem-se muito certo o que ela não deve ser: engajamento puramente social sem rigor formal.

Ainda em 1963, logo após retornar da I Semana de Poesia de Vanguarda, Leminski organiza e realiza uma palestra, na Biblioteca Pública do Paraná, apresentada nos dias 8 e 9 de outubro, com o seguinte título: “Apresentação da poesia de vanguarda”[11].  O objetivo, segundo o esquema elaborado pelo autor, foi o de “colocar o problema da poesia no século XX e expor as soluções apresentadas por grupos brasileiros a essa problemática” (ACERVO DIGITAL PAULO LEMINSKI, 2014, originais datilografados I, arq.37/310). O dado fundamental deste evento, mais do que a função propriamente didática da palestra, é o relato do fotógrafo e amigo de Leminski, Dico Kremer, sobre o clima de polêmica gerado entre os poucos ouvintes[12] por uma espécie de disputa a respeito da função social da poesia tendo em vista as duas principais tendências da época, a poesia concreta, portanto vanguardista e experimental, e a poesia engajada.

Se na ocasião, o clima de tensão não passou de uma polêmica, durante toda a década de 1970 um contingente de textos produzidos por Leminski irá propor uma série de reflexões sobre esse que é, sem dúvida, um dos problemas fundamentais da poesia brasileira dos finais do século XX. Tais reflexões, de modo geral, incutem também numa espécie de busca por um projeto próprio de poesia. Por isso, não é de surpreender que Leminski irá se debruçar – sintomaticamente entre 1975 (pós-Catatau) e 1978 (pré-Não fosse isso) –sobre uma das formas mais tradicionais das vanguardas: os manifestos.  Ou melhor, os “minifestos”, como o poeta os denomina, num misto de tributo e paródia que, acima de tudo, constata a natureza de forma já teórica e historicamente superada.

A primeira publicação a merecer destaque e a que parece cronologicamente como início dos “minifestos” está na revista Qorpo Estranho[13], no número 2 (set.-out.-nov.), de 1976. A imagem reproduzida abaixo é a do texto integral de “Minifesto”[14] (QORPO ESTRANHO, n.2, 1976), tal como publicado no periódico em questão:

Figura 1 – Minifesto

Fonte: reprodução da autora Qorpo estranho n.2, 1976
Fonte: reprodução da autora Qorpo estranho n.2, 1976

O projeto do “Minifesto”, claramente ligado às concepções concretistas, está postulado: a ideia do poeta-criador como aquele interessado na radicalidade oriunda da informação nova, o que pode levá-lo a produzir para uma faixa muito estreita de público. O contrário dessa postura incute, segundo Leminski, numa posição “fascista”, aquela que veta e desautoriza uma “informação mais exigente e sofisticada” com a prerrogativa de se tratar de inacessível à “massa”[15]. E é justamente uma dupla crença que parece justificar tal embasamento: a crença na ciência, acionada pela menção à teoria da relatividade de Einstein como um contínuo progresso caminhando do complexo ao acessível, e a crença na própria “massa” e na capacidade de evolução de sua inteligência e raciocínio diante da informação nova. Isto é, o poeta interessado na radicalidade da informação contribui, ao inserir a complexidade na linguagem, para o desenvolvimento dessa “massa”, compreendida como altamente capaz de “evoluir” não só no gosto, mas na aceitação de produtos culturais mais sofisticados.

No mesmo ano de 1976, Leminski publica o intitulado “minifesto 2”[16]. Além da aproximação direta via título e forma deste com o texto anterior, há, no conteúdo, uma complementariedade visível, seja em termos de eixos de reflexão, seja em relação à proposta apresentada. Vejamos, então, o teor completo de “Minifesto 2” numa reprodução de sua primeira aparição, no suplemento Anexo, de 1976, ainda com o título ausente do numeral:

Figura 2 – Minifesto 2

Fonte: reprodução da autora (ANEXO, 1976, p.1).
Fonte: reprodução da autora (ANEXO, 1976, p.1).

Se no primeiro “minifesto” a “tomada de consciência do subdesenvolvimento”, expressão cunhada por Antonio Candido (1972), aparece apenas subentendida no jogo posto entre informação nova versus massa, aqui ela está clara e assumida como primeiro plano numa relação direta com a literatura. As “palavras de ordem”, típicas de todo manifesto, reforçam a defesa dos “repertórios mais sofisticados”, sobretudo quando se trata de literatura. Trata-se, nesse caso, de um imperativo que reconhece o espaço cultural de onde é oriundo: Brasil, país subdesenvolvimento, meados da década de 1970, quando a ditadura já defenestrou uma série de possibilidades culturais e se apoia numa massa semi-analfabeta para difundir seus ideais patriotas e popularescos.

O argumento que poderia, então, justificar a defesa de uma “literatura para as massas”, ou mesmo a defesa de uma literatura “mobralizante”, como o próprio Leminski afirma, cuja intenção é a de politizar as massas como pretendeu a poesia engajada, serve ao oposto. A percepção é a de que a “ação revolucionária”, via poesia, deve ser realizada no plano da linguagem. Por isso, o “minifesto”, num sentido amplo, postula um projeto experimental de vanguarda que, segundo Holanda (2004), é oposto ao projeto da arte engajada, embora para Bosi (2018) existam pontos de contato entre ambas, sobretudo na constatação da necessidade de novas formas poéticas. De certo modo, Leminski expõe a tensão entre as duas tendências de poesia da época, alinhando-se, ao menos teoricamente, a uma delas.

Por fim, o chamado “Minifesto III” é publicado na seção Tribuna Livre da Revista da Academia Paranaense de Letras, no n.23, de 1976/1977. Trata-se do mais extenso dentre eles, com onze tópicos em que aparece de modo mais direto o assunto “poesia” relacionado à concepção de “informação nova” e desaparecem as reflexões sobre público e massa. Pela extensão do texto, mostra-se mais apropriado reproduzir apenas alguns trechos entendidos como os mais significativos no tocante às concepções fundamentais. Vejamos o primeiro deles:

– 1 –
Poesia = linguagem.
Problema da poesia = problema de linguagem.
Diagramação da mensagem.
Projeto de comunicação.
O processo.
A informação nova, como horizonte.
Uma sensibilidade nova inventa novas formas para uma sensibilidade nova.
Linguagem do nosso tempo.
Consonância com a linguagem do
nosso tempo.
Sintonia com as linguagens vivas do nosso tempo: desenho industrial publicidade, jornalismo, etc.
A poesia deve se libertar da literatura. (LEMINSKI, 1976/1977, p.159).

A concepção, aqui, volta-se para o assunto da definição da natureza da poesia e de seu problema. Para o poeta, a questão é resumida numa fórmula de igualdade em que poesia é linguagem e, por isso, o “problema da poesia” é um “problema de linguagem”. A informação nova volta a ser colocada como horizonte, inserida, por sua vez, como parte um “projeto de comunicação” e “diagramação”, por isso voltada ao departamento da “comunicação”, do “desenho industrial”, da “publicidade”, do “jornalismo”. Tal concepção desencadeia, no final do tópico, uma espécie de “palavra de ordem”: “A poesia deve se libertar da literatura”.

Com essa peremptória afirmação, Leminski opera uma distinção que será retomada em outros momentos: a de que poesia não é literatura, concepção reforçada, por exemplo, em diversas cartas a Régis Bonvicino. Numa delas, a afirmação é a de que “nós”, referindo-se à sua própria poesia e à de sua geração, “[…] estamos depois da literatura/não é preciso mais combatê-la/ o que nós estamos fazendo já não é ela […]” (LEMINSKI; BONVICINO, 1999, p.33). Em momento posterior, apresenta a concepção de uma “post-literatura/anti-literatura” (LEMINSKI; BONVICINO, 1999, p.106) e reafirma: “[…] o importante é fugir da literatura” (LEMINSKI; BONVICINO, 1999, p.119). Num gesto mais radical, possível por se tratar de uma troca de confidências em carta pessoal a um amigo e poeta, Leminski chega a decretar: “Evito a literatura” (LEMINSKI; BONVICINO, 1999, p.193)[17].

O que esses três “minifestos” podem, portanto, sugerir em termos de reflexão a respeito de Paulo Leminski?

De modo geral, analisá-los, ainda que brevemente, apresenta-se como um exercício investigativo indispensável para a compreensão de um poeta que, se por um lado coaduna com as vozes liquefeitas da contemporaneidade, por outro tem em seu cerne uma diferença brutal e decisiva em relação à poética contemporânea: trata-se de um poeta que, antes de tudo, reflete criticamente sobre questões fundamentais, tais como a natureza e função social da poesia. O que, por si só, indica a busca, senão bem-sucedida, pelo menos empenhada de um projeto estético. Que é, então, poesia para Paulo Leminski? Para o poeta, definir a natureza da poesia é reverter o frequente “tabu do não” a fim de definir, primeiro, aquilo que ela não é: poesia não é Literatura. Se não é uma coisa deve ser, necessariamente, outra. Neste caso, sua natureza constitui-se como um “problema de linguagem” cuja função social defendida é a de ser portadora de gestos de radicalidade, de experimentação e de trabalho com repertórios sofisticados.

Vale ressaltar que não só os “minifestos” articulam questões como essas. Os ensaios publicados durante a década de 1970 e 1980, na imprensa em geral, e sobretudo a atuação como editor e poeta do suplemento literário curitibano intitulado Polo Cultural/Inventiva, confirmam o ímpeto de um poeta que tem, em sua medula, anseios muitos evidentes de formular tanto um projeto poético próprio quanto de investigar o quadro de dilemas da poesia de seu tempo.

Disso tudo, se não é possível afirmar peremptoriamente a execução a rigor do projeto do poeta paranaense no campo prático de sua própria poesia, mostra-se indispensável investigar esse outro labirinto leminskiano constituído tanto pelos textos dispersos (dos quais se incluem os “minifestos”) quanto pelos ensaios reunidos em Ensaios e anseios crípticos (Unicamp, 2012) a fim de buscar compreender esse organismo vivo, que é a obra de Leminski, por aquilo que tem de melhor: seu compromisso com o próprio campo da poesia brasileira.

 

Referências

AUGUSTO, Ronald. Uma análise da poesia de Leminski. Revista Sibila, 29 abr. 2013. Disponível em:

BOSI, Viviana; NUERNBERGER, Renan [org.]. Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970. São Paulo: Humanitas: FAPESP, 2018.

DOLHNIKOFF, Luis. Paulo Leminski, o Paulo Coelho da poesia. In. Digestivo Cultural, 12 de junho de 2013 em Digestivo Cultural. Disponível em:<http://www.digestivocultural.com/colu
nistas/coluna.asp?codigo=3776&titulo=Paulo_Leminski,_o_Paulo_Coelho_da_Poesia
>

CAMPOS, Haroldo. Entrevista ao programa Roda Viva, Tv Cultura, 1996. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=z7eyMRvd5Ag>. Último acesso em 16 out. 2019.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Subdesenvolvimento. In. MORENO, César Fernadez [Org.]. América Latina em sua literatura. Unesco, Editora Perspectiva: São Paulo, 1972, p. 343-362.

FERRAZ, Paulo. O caminho dos meios: a poética de Paulo Leminski e suas reflexões sobre a natureza comercial do poema. In. BOSI, Viviana; NUERNBERGER, Renan [Org.]. Neste instante: novos olhares sobre a poesia brasileira dos anos 1970. São Paulo: Humanitas: FAPESP, 2018. (p.279-318).

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.

NUERNBERGER, Renan. Inquietudo uma poética possível no Brasil dos anos 1970. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH. Dissertação, USP, 2014.

PELLEGRINI, Domingos. Minhas lembranças de Leminski. São Paulo: Geração Editorial, 2014.

FONTES

ACERVO DIGITAL PAULO LEMINSKI. Curitiba, 2014. [Cd-Rom].

 LEMINSKI, Paulo. Minifesto. Revista Qorpo Estranho, n.2, set. out. nov., 1976.

______. Minifesto 2. Muda n.1, São Paulo, 1977.

______. Minifesto III. Revista da Academia Paranaense de Letras, n.23, anos XIV e XV, de 1976/1977. p.159-161. Disponível em Centro de Documentação Casa da Memória, Curitiba-Pr, Arquivo Paulo Leminski.

______. Minifesto. Suplemento Literário Anexo do Diário do Paraná, 16 de dezembro de 1976. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/acervo-digital/diario-do-parana/761672.

_______. Minifesto. Maldoror, n.13. Montevidéu, 1977.

[1] O presente ensaio é parte da Tese em andamento intitulada “Anseios teóricos de um pensador selvagem: a função social da poesia em Ensaios e anseios crípticos de Paulo Leminski” realizada no Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (Unesp/Assis) com o financiamento da CAPES.

[2] Consonante a essa perspectiva, a edição de Toda Poesia (2013) realizada pela Companhia das Letras se, por um lado, fez do Leminski um dos poetas mais vendidos na história do mercado editorial, por outro, ao pretender abarcar uma poesia completa – incluindo aí poemas inéditos sem que tenham passado por uma avaliação crítica mais criteriosa -– restringiu sobremaneira o possível valor estético que há, por exemplo, em Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase (1980), primeiro livro publicado do poeta.

[3] Ensaio jamais reunido em livro e disponibilizado gentilmente, em finais de 2020, por Dico Kremer, responsável por guardar uma cópia entregue a ele pelo próprio Leminski. Na ocasião do ensaio, o poeta era redator publicitário da P.A.Z, agência onde Kremer também trabalhava como fotógrafo.

[4] No original, Leminski finaliza o ensaio assinando da seguinte forma: “p. Leminski/78 redator da PAZ”. Como se a afirmação se desse como fundamental para validar a crítica de um publicitário sobre o seu próprio campo de atuação.

[5] Pellegrini (2014), num misto de memória e ficção, apresenta onze facetas de Leminski, do noviço ao anarquista.

[6] “Zap”, aqui, refere-se à agência publicitária criada por Dico Kremer após saída de P.A.Z. O achado para o nome é, como explica Kremer, a simples inversão de P.A.Z. Vemos como a questão da publicidade, do lucro, dos dilemas ainda iniciais da cultura de massa nas “cidades ocidentais” é uma preocupação latente em Leminski.

[7] Para Ronald Augusto a “poesia para iniciantes” de Leminski atua como espécie de defeito crucial do poeta. Invertendo-se o sinal, penso ser possível tributar tal caráter como um valor em Paulo Leminski, sobretudo se analisado o conjunto de ensaios organizados pelo próprio poeta para ser publicado em duas edições distintas (o que só se concretizou na íntegra postumamente). De fato há, nesses ensaios, um poeta que anseia “ensinar alguns conceitos”, como o próprio Leminski afirma, tendo em vista um leitor iniciante e interessado no campo.

[8] Evidentemente, depois de investigada essa questão, resta um movimento complementar (e tão fundamental quanto) de verificar em que medida o poeta aplica tal concepção à sua própria poesia ou se tal poética serve apenas como formulação crítica que nada tem que ver (ou que pelo menos não é determinante) com o método do criador.

[9] Os poemas analisados são: Outubro, publicado no primeiro número da revista literária “Violão de Rua”; Bruxa, publicado em 23 de março 1963, no Correio da Manhã; O relógio, publicado no suplemento literário do Estado de S. Paulo, em 01 de junho de 1963; O homem e o objeto, publicado em 15 de junho de 1963 no mesmo suplemento literário; e Poema para Medgard Evers, publicado em 13 de julho de 1963.

[10] Leminski, a partir de então, irá se referir a Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari como “os patriarcas”, referência verificável nas cartas endereçadas a Régis Bonvicino (Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica, 1999).

[11] Em nota, o jornal Correio do Paraná de 5 de outubro de 1963 anuncia a palestra de Leminski. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=171395&pagfis=24034

[12] Kremer lembra que participaram da palestra alguns professores interessados em Literatura e ligados à ideologia de esquerda, um livreiro muito tradicional no meio acadêmico e alguns amigos de Leminski interessados em poesia, como o próprio Dico Kremer. Por se tratar de um público pequeno e majoritariamente ligado à concepção de uma literatura engajada, o clima de tensão se instala justamente pela defesa de uma espécie de “formalismo” e “experimentalismo” por parte de Leminski. Essas informações foram colhidas em um bate-papo realizado com Dico Kremer, em Curitiba, em 13 de janeiro de 2021.

[13] Revista de criação intersemiótica que sucede (numa espécie de transformação) a Revista Poesia em Greve, tendo apenas três números, de 1976 a 1982. Foi editada por Régis Bonvicino, Pedro Tavares e Júlio Plaza e segue, mais ou menos, a mesma proposta da Código, inserindo poemas visuais e traduções. Aparecem como colaboradores do número 1 da revista: Regina Silveira, Pedro Tavares de Lima, Paulo Portella Filho, Mário Noboru Ishikawa, Luiz Antônio de Figueiredo, ênio Aloisio Fonda, Omar Khouri, Lenora de Barros, Kikégis, Julio Plaza, José Augusto, Iberê, Haroldo de Campos, Fernando Pereira, Erthos Albino de Souza, Eduardo Milán, Décio Pignatari, Augusto de Campos. No número 2, aparece os seguintes colaboradores: Anna Bella Geiger, Antonio Risério, Augusto de Campos, Carlos Ávila, Erthos Albino de Souza, Federico Garcia Lorca, Haroldo de Campos, Hector Olea, João Alexandre Barbosa, Julio Plaza, Paulo Leminski, Marcello Nitsche, Oliverio Girondo, Omar Kihouri, Pedro Tavares de Lima, Regina Silveira, Régis Bonvicino, Vicente Huidobro, Vinícius Dantas e Ubirajara Ribeiro.

[14] O mesmo título será dado a um poema publicado em Distraído Venceremos (1987; 2013) que, ao contrário deste, traz em sua forma a alusão e desconstrução à uma prece, vejamos: “ave a raiva desta noite/a baita lasca fúria abrupta/louca besta vaca solta/raiva luz que contra o dia/tanto e tarde madrugaste//morra a calma desta tarde/morra em ouro//enfim, mais seda/a morte, essa fraude,/quando próspera//viva e morra sobretudo/este dia, metal vil,/surdo, cedo e mudo,/nele tudo foi e, se ser foi tudo,/ já nem tudo nem sei/se vai saber a primavera/ou se um dia saberei/que nem eu saber nem ser nem era (LEMINSKI, 2013, p. 178).

[15] Retomando o problema da acusação a Maiakóvski de ser o poeta russo “inacessível às massas”, um dos poetas basilares para a Teoria da Poesia Concreta (1975).

[16] Vale notar a genealogia deste texto. Foi publicado, pela primeira vez, no suplemento literário Anexo, no dia 16 de dezembro de 1976, com o título de “Minifesto”, idêntico ao anterior. Já em 1977, o mesmo texto é publicado na revista uruguaia Maldoror (n.13) e na revista Muda (n.1), então intitulado de “Minifesto 2”. Esse será o único organizado em publicação em Anseios e ensaios crípticos (1997) e em Ensaios e anseios crípticos (2012), tendo sido mantido o título “Minifesto 2”.

[17] Essa postura de “fuga da literatura” é comum aos poetas pós-68. É de Waly Salomão, por exemplo, a expressão “(…) sai da frente espelho opaco de literato”