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A cópia monótona da realidade em André Sant’Anna

Mané, jogador de futebol nascido em Ubatuba, delira em um quarto de hospital, mutilado pela bomba que, depois de prender à própria cintura, ele detonou, pouco antes do início de um jogo no Estádio Olímpico de Berlim. Enquanto sonha e, às vezes, balbucia, nas outras camas há dois pacientes: Mubarak – quem supostamente forneceu a bomba para Mané –, um terrorista amador que guarda certa semelhança com Bin Laden, e Tomé, músico brasileiro que, vivendo ilegalmente na Alemanha, recupera-se de uma overdose de heroína.

Tal cenário forma o núcleo de O Paraíso é bem bacana, de André Sant’Anna (Editora Cia. das Letras). Todas as vozes que, página a página, tecem a narrativa, preenchendo lacunas e elucidando fatos, se referem de algum modo a Mané: relatam seu passado – a infância miserável, a mãe alcoólatra, as sucessivas e variadas humilhações sofridas nas mãos de outros garotos –, analisam seu comportamento, seu estilo de jogar, e narram de que maneira interagiam com ele, jovem não somente tímido, indefeso, imaturo, ignorante e despreparado para a vida, mas de evidentes limites. Na verdade, quase um débil mental, incapaz de estabelecer qualquer diálogo que não exigisse dele apenas escassos monossílabos – mas de incrível habilidade para jogar futebol.

E por qual motivo Mané teria explodido a bomba suicida? Trata-se de um craque brasileiro convertido ao islamismo e transformado em homem-bomba? Mané apenas desejava experimentar o que jamais tivera: sexo. Pelo fato de nunca conseguir superar seus problemas psíquicos e manter relações sexuais, ele se tornou um fervoroso adepto do onanismo, passando horas fechado no banheiro ou na frente da tevê, excitando-se com delirantes fantasias. Mas ao ser informado acerca da religião muçulmana e das 72 virgens reservadas aos que morrem como mártires, ele não hesita em se entregar à imolação. Assim, inconsciente, na cama do hospital, tem a impressão de adentrar no paraíso, engolfando-se nas 72 virgens que cheiram a eucalipto e realizam todos os seus desejos, todas as suas fantasias.

Quando o livro se aproxima do final, no entanto, Mané lentamente emerge de sua inconsciência. E à medida que recupera um tênue contato com a realidade, também experimenta os primeiros sinais de dor, o que subverte as fantasias vivenciadas ao lado de suas 72 mulheres, transformando o mundo onírico, de puro prazer, em uma fantasia infernal – a repetição do inferno que sua estúpida existência foi até aquele momento.

Narradores e esquematismo

O romance – construído a partir de uma metáfora que, enquanto crítica ao universo futebolístico, guarda certo interesse – sugere que o leitor se questione a respeito do mundo no qual, com o apoio da mídia e das multinacionais, homens comuns são transformados em heróis ou semideuses, quando, na verdade, seus atributos se resumem a jogar bem futebol. O livro também almeja ser a radiografia parcial do Brasil indigente, onde esse esporte surge, no imaginário popular, como única tábua de salvação para aqueles pouquíssimos que conseguem se erguer acima da massa de miseráveis.

A narrativa, entretanto, não se sustenta. Uma barafunda de narradores se desdobra para apresentar diferentes momentos da vida de Mané – e assim compor o personagem cujo fluxo de consciência é o eixo da obra. Esses narradores manifestam-se numa reciprocidade quase que mecânica: um narrador justifica, complementa ou explica o que o anterior disse de maneira parcial ou imperfeita. Tal recurso se repete tanto, de maneira tão exaustiva, que o leitor passa a aguardar, antecipadamente, a complementação que o narrador seguinte oferecerá. Dessa maneira, a lógica por meio da qual uma voz necessariamente se refere àquela que a antecedeu acaba por adquirir um esquematismo empobrecedor.

Se a forma é repetitiva, o conteúdo assemelha-se a uma planície entediante. As falas dos narradores ou são estereotipadas ou preconceituosas. O único que demonstra alguma consciência crítica é Mnango, jogador nascido na República de Camarões. E não bastasse um dos narradores, que repete incansavelmente “mas não” e “filho-da-puta” – compondo uma oralidade absolutamente inverossímil –, todos os demais são, depois que se manifestam a primeira vez, previsíveis, enfadonhos. Contudo, não poderia ser diferente, pois eles se empenham em falar apenas de Mané, o mais obtuso dentre os narradores. Alguns, no entanto, chegam ao exagero de nada acrescentar ao frágil enredo. Talvez tenham sido criados com o objetivo de desvincular a narrativa da compulsão de falar sobre Mané, mas permanecem como ilhas sem sentido. É o caso, por exemplo, de Luca, reclamando de ter perdido sua posição no time para Mané, ou da mãe de Hassan, ou, ainda, a última fala de Laureano, melancólica, a despedida do velho torcedor, um dos raros personagens interessantes.

Alguns dos trechos elaborados com evidente sarcasmo – a transformação de Tomé em agente do serviço secreto alemão, por exemplo, e os diálogos com seus aliciadores – chegam a divertir, mas a deficiência mental de Mané é tão exagerada que acaba transformando todos os que tentaram ajudá-lo em um excêntrico bando de imbecis. E o próprio Mané não convence, principalmente ao migrar de um extremo a outro: das bacanais com suas 72 virgens aos insights filosóficos das últimas páginas, quando o jovem que somente se libertava da apatia ao se masturbar ou durante as partidas de futebol, passa a refletir sobre o Inferno, a alma e certa improvável consciência divina – ou a conceber seu próprio estado na forma de uma ausência de tempo em que a dor adquire caráter absoluto.

Falsidade e monotonia

Narradores cujos horizontes são estreitos produzem discursos estreitos, ainda que bem escritos. Até aí, nenhum problema, se lembrarmos, por exemplo, do longo primeiro capítulo de O som e a fúria, de William Faulkner. As dificuldades começam quando os escritores passam a acreditar que aquele primeiro capítulo basta a si mesmo; pode compor, sozinho, uma obra. Em O Paraíso é bem bacana, encontramos principalmente esses narradores cujos raciocínios são primários, rasteiros: um amontoado de Benjys. E eles nos fazem pensar que, na verdade, não é necessário ler a obra. Basta ligar a tevê e assistir a qualquer programa esportivo, prestando atenção aos lugares-comuns que os jogadores – esses Apolos da indústria do entretenimento – verbalizam.

O romance ajusta-se perfeitamente ao conceito de R.U.T. (Realismo Urbano Total), elaborado pelo tradutor e ensaísta português João Barrento: “O estilo do R.U.T. é ausência de estilo, é o horror ao estilo, é o não saber o que isso é. É a rasura total da literatura […]”[2]. De fato, o livro de André Sant’Anna apresenta uma questão que precisa ser ressaltada: quando o autor pretende retratar a banalidade da vida e escolhe fazê-lo por meio de uma linguagem igualmente banal, uma linguagem que é apenas o espelho da realidade, ele somente consegue criar algo mais banal que a própria realidade – uma cópia que não é somente falsa, pois toda literatura é falsa, mas de uma falsidade inconvincente e monótona.

 

 

[1] Rodrigo Gurgel é editor de “Palavra”, suplemento de literatura do Caderno Brasil do Le Monde Diplomatique (edição virtual) [http://diplo.uol.com.br/], escritor e crítico literário, colaborador do jornal Rascunho [http://rascunho.rpc.com.br/].

[2] “O R.U.T.”. In A escala do meu mundo. Assírio & Alvim Editora, Lisboa, 2006.