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A MPB no limbo

Cartola

Recebi edição especial da Bravo, patrocinada pela CPFL/Energia, com o ranking das cem canções “essenciais” da MPB. A Bravo é a única revista decente que se dedica à cultura e à indústria cultural no país. Ela é superior aos cadernos diários de alguns jornais, voltados exclusivamente para a indústria do entretenimento, sem qualquer visada ou mediação crítica.

A CPFL é a empresa que mais investe em cultura e supera – em muitos aspectos – o próprio Ministério da Cultura e as secretarias estaduais e municipais, que – como os diários – preocupam-se com eventos, quando o papel do Estado é o de criar redes e circuitos (infraestrutura) para que a produção inovadora possa aflorar. Outro dia, zapeando a tv, ouvi o ministro da cultura (não gravei seu nome) declarar-se interessado na promoção dos laços da cultura “íbero-americana”. Nem sequer sabe manejar o idioma, pois a primeira palavra não é proparoxítona, mas sim paroxítona.

Cartola

Falando em ministro “fraco”, Gilberto Gil foi incluído com algumas canções, entre elas duas tropicalistas e uma terceira: “Se eu quiser falar com Deus”, na qual o tema elevado esconde a peça adocicada, mediana no máximo. Gil é um compositor bastante desigual. No entanto, “Aquele abraço”, “Cultura e civilização”, “Expresso 2222” e “Maracatu atômico” não poderiam ser esquecidas. A Bravo buscou enobrecer sua seleta, o que leva à questão do kitsch, ou seja, daquilo que pretende parecer criação artística refinada, quando na verdade não o é.

Com exceção de Pixinguinha, Dorival Caymmi, João Gilberto, Ary Barroso, Noel Rosa, Lamartine Babo, Luiz Gonzaga, Cartola – um Muddy Waters das favelas cariocas, o único compositor realmente enigmático no bom sentido da tradição brasileira –, Lupiscínio Rodrigues, Ataulfo Alves, Assis Valente, Adelino Moreira, Adoniran Barbosa e Paulinho da Viola, todos os demais são pop – como os Beatles o foram num grau máximo de informação estética. É o mid e ou low brow forjando-se high brow. Traduzindo: é a descultura simulando-se cultura. Villa-Lobos – um compositor de alta cultura – procurou na “baixa” elementos para sua estética nacionalista. Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque são autores pops, que, no entanto, ao longo de suas longas carreiras manipularam bem esse jogo, forjando-se como “cultura” – não ultrapassam os limites do mid brow, embora com bons trabalhos, sobretudo, o primeiro.

Aliás, prefiro Tom Jobim sem seus arranjos melosos e sem seu nacionalismo villalobiano. Sua canção “Águas de março” é exemplo típico de processo utilizado por Villa-Lobos, sem ter a altura dele, como criador. É uma diluição enquanto processo. O leitor pode apreciar independentemente disso a canção. Anything goes! Qualquer coisa serve! Aliás, nacionalismo e arte se excluem: a arte erudita é sempre internacional. Tom Jobim é “populista” muitas vezes. Acerta mais quando está ao lado de Vinicius de Moraes em canções como “Eu sei que vou te amar” – obra-prima.

Manuel Bandeira, que era também violonista, talvez o poeta que mais investigou a tradição, para criar o novo, considerava o seguinte verso escrito por Orestes Barbosa, para “Chão de estrelas” (Silvio Caldas fez a música) um dos mais elaborados de toda a lírica luso-brasileira: “Tu pisavas nos astros distraída”. Há muitas peças chatas na área erudita. Ser high brow (ser alta cultura) não garante nada em si, como os temas não qualificam as obras – o que ocorre muitas vezes com a recepção de Chico Buarque.

África  BrasilÉ incrível que uma seleta dessas não indique uma canção de Jorge Ben. Ele é um dos maiores compositores brasileiros. Cito ao acaso: “Chove chuva”, “Taj Mahal”, “Por causa de você”, “Fio maravilha”, “Umbabarauma”, para não mencionar o clássico “Charles Anjo 45”, que antecipa a tópica da guerra e dominação do tráfico nos morros cariocas: “Charles Anjo 45/ Protetor dos fracos/ E dos oprimidos/ Robin Hood dos morros”. E para não falar do álbum África Brasil (1976).

A seleta confunde ainda canções marcantes com relevantes. Exemplo: a chatíssima “O bêbado e o equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, que, segundo a publicação, tornou-se “o hino dos exilados”. Ou também, dos mesmos autores, “Dois para lá, dois para cá” – ritmo de bolero e letras vagas, para parecerem profundas, tal qual “Como uma onda”, de Lulu Santos e Nelson Motta. Linhas como “A vida vem em ondas/ como o mar/ num indo e vindo infinitos” são medonhas! É um atentado à mente selecionar “Como os nossos pais”, do inexpressivo Belchior. É absurdo Rita Lee e Roberto de Carvalho constarem em qualquer ranking, como compositores: eles representam a indústria do entretenimento. É engraçado saber que “Cidade maravilhosa”, de André Santos, foi ungida. Prefiro Itamar Franco a Arrigo Barnabé, ambos incluídos: não vislumbro qualquer importância em “Clara Crocodilo” – um trabalho mid brow, feito por alguém que poderia fazer high brow. Essa “ópera” é mais artificial do que deveria sê-lo, muito afetada. .

Bravo não sobrevive sem o seu público e procura agradá-lo – o que não se condena, mas não se pode levar a sério sua “antologia”. Ela inclui o Chico Buarque óbvio e se esquece do que ele compôs de melhor. Exemplo: “As vitrines”: “Na galeria, cada clarão/ É como um dia depois de outro dia/ Abrindo um salão”, na qual sua tendência nostálgica encontra contraste nos “letreiros”, nas “vitrines”. “Construção” (influenciada pelo concretismo) deve ser a música de cabeceira de Roberto Schwarz!

Há um aspecto curioso nesse trabalho: ele evidencia que, exceto Cazuza, um dos maiores cantores e compositores brasileiros, nada aconteceu depois dos anos 1980. Até mesmo gigantes como Veloso declinaram e passaram a girar em torno de seu próprio repertório, em shows cada vez mais entediantes. Por quê? O assassinato da criação, daquela que afronta o gosto médio e a ordem pública, faz parte do jogo do capitalismo global, que exige disciplina. Daí terem surgido intérpretes de peso e nenhum compositor. Bob Dylan caiu, para dar um exemplo do mundo anglo-americano.

A fusão de arte e vida, tão bem produzida pelo rock and roll, leva a arte ou a canção para o campo da atitude individual, que, na verdade, reitera a força da máquina do show business, do capital. É tolice incluir “canção” dos Paralamas do Sucesso, como é tolice incluir qualquer coisa de Carlinhos Vergueiro. Raul Seixas deveria ser considerado com mais canções: é violento e original. Sinto falta também de “Sentado à beira do caminho”, de Erasmo Carlos, com seu tema à revelia, disfórico, num leito sempre vitorioso e “radiante”. Torquato Neto deveria ser mencionado como um dos maiores letristas do Brasil. É inacreditável que um tour de force como “Sossego”, de Tim Maia, não seja arrolado, ao menos como testemunha da mediocridade dos outros.

Estranho também uma coletânea não trazer Moreira da Silva – o inventor do samba de breque, um criador popular, de verve, e não populista. Estranhíssimo o silêncio sobre o samba sincopado de um Geraldo Pereira. Inaceitável que a inovadora “Cabeça”, de Walter Franco, não esteja na lista. No entanto, percebo que a MPB é ainda usada (mid brow fingindo-se high brow) para substituir a “poesia” e a “literatura”, num país que conta com poetas como Manuel Bandeira, João Cabral, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Leminski ou Augusto de Campos, e prosadores como Guimarães Rosa, Clarice Lispector ou o contemporâneo João Gilberto Noll. Verifico igualmente que Lamartine Babo e Noel Rosa são – até hoje – os mais inventivos letristas da MPB, muito superiores a Veloso ou a Buarque de Hollanda. A atenção dispersou-se, politicamente, no banal, no fácil. A canção está – há duas décadas – no limbo, repetindo-se. A ex-MPB nos consumiu demais!

 


Charles Anjo 45

Jorge Ben Jor

Ôba, ôba, ôba Charles

Como é que é

My friend Charles

Como vão as coisas Charles?

Charles, Anjo 45

Protetor dos fracos

E dos oprimidos

Robin Hood dos morros

Rei da malandragem

Um homem de verdade

Com muita coragem

Só porque um dia

Charles marcou bobeira

Foi sem querer tirar férias

Numa colônia penal…

Então os malandros otários

Deitaram na sopa

E uma tremenda bagunça

o nosso morro virou

Pois o morro que era do céu

Sem o nosso Charles

Um inferno virou…

Mas Deus é justo

E verdadeiro,

E antes de acabar as férias

Nosso Charles vai voltar

Paz alegria geral

Todo morro vai sambar

antecipando o carnaval

Vai ter batucada

Uma missa em ação de graças

Vai ter feijoada

Whisky com cerveja

E outras milongas mais…

Muitas queima de fogos

E saraivada de balas.

Pro ar,

Pra quando nosso Charles,

Voltar…

E o povo inteiro feliz

Assim vai cantar…

Ôba, ôba, ôba Charles

Como é que é

My friend Charles

Como vão as coisas Charles?


 

Chão de estrelas

Letra de Orestes Barbosa, Música de Silvio Caldas

Minha vida era um palco iluminado

Eu vivia vestido de “doirado”

Palhaço das perdidas ilusões

Cheio dos guizos falsos da alegria

Andei cantando a minha fantasia

Entre as palmas febris dos corações

Nosso barracão no morro do salgueiro

Tinha o cantar alegre de um viveiro

Foste a sonoridade que acabou

E hoje, quando do sol, a claridade

Forra o meu barracão, sinto saudade

Da mulher pomba-rola que voou

Nossas roupas comuns dependuradas

Na janela qual bandeiras agitadas

Pareciam um estranho festival

Festa dos nossos trapos coloridos

A mostrar que nos morros mal vestidos

É sempre feriado nacional

A porta do barraco era sem trinco

Mas a lua furando nosso zinco

Salpicava de estrelas nosso chão

Tu pisavas nos astros distraída

Sem saber que a ventura desta vida

É a cabrocha, o luar e o violão.


 

As vitrines

Chico Buarque

Eu te vejo sair por aí

Te avisei que a cidade era um vão

– Dá tua mão

– Olha pra mim

– Não faz assim

– Não vai lá não

Os letreiros a te colorir

Embaraçam a minha visão

Eu te vi suspirar de aflição

E sair da sessão, frouxa de rir

Já te vejo brincando, gostando de ser

Tua sombra a se multiplicar

Nos teus olhos também posso ver

As vitrines te vendo passar

Na galeria, cada clarão

É como um dia depois de outro dia

Abrindo um salão

Passas em exposição

Passas sem ver teu vigia

Catando a poesia

Que entornas no chão


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.