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Alex Polari: Inventário de Cicatrizes

Fato importante aconteceu, não só no circuito poético, com o lançamento de Inventário de cicatrizes, coletânea de poemas de Alex Polari de Alverga, que, como se sabe, foi preso em maio de 1971, aos vinte anos, por sua militância guerrilheira contra o regime militar brasileiro e, por isso, condenado pelos tribunais a 80 anos de prisão, o que não é, diga-se, nada mole. Há coisas significativas no livro de estreia desse poeta-guerrilheiro, que escreveu seus poemas na cadeia.

A primeira é que o produto de sua venda vai ser canalizado para o Comitê Brasileiro pela Anistia. A segunda é que a linguagem de Alex é colada, de modo inseparável, ao vivido e à vida. Nesse sentido, pode-se afirmar que Inventário de cicatrizes é um diário em transe e em trânsito, temperado com reflexões sobre o passado (atuação guerrilheira) e o presente (vida na cadeia, condição de preso político, torturas etc.). Nos melhores poemas de Alex, há o risco do instantâneo e o rápido do imediato. Em outras palavras, poeta botando a boca no mundo. E, nesses mesmos melhores momentos, há também influência clara das letras e poemas tropicalistas de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto e outros. Veja-se o seguinte exemplo:

Hora do rancho a bandeja passa na grade o rádio toca no bolso do sentinela calado ao lado do fosso onde devem ficar os cadáveres.

Poema articulado através de imagens (takes) diretas e rimas dissonantes (rancho/bolso/fosso), revelando, de modo cru, a hora do almoço na prisão. Verdadeiro fragmento de roteiro cinematográfico.

O título do volume tem, em si, um tom literário e até meio solene. Boa parte dos poemas (principalmente da metade para o fim do livro, em que o autor se aproxima, segundo a terminologia do professor Escobar no prefácio, da “retórica reformista”) é estruturada por subordinação gramatical, com sujeito, verbo e predicado, mas, no entanto, veja-se a seguinte inversão, que surpreende: “coração que arranha/ abjetos sentimentos”. Alex acaba ficando, no final das contas e nos melhores momentos, com a poesia. Uma poesia estritamente verbal, trabalhada com a palavra, sem grandes piques de invenção, mas despojada, coloquial, direta, sem eufemismos ou torneios explicativos, perpassada por uma ironia mordente e cortante, como em “Nova tática e velho instinto”:

Juro não tem autocrítica
que me tire as saudades de uns tiros

Uma das coisas que me chamou a atenção é que Alex, em seus voos mais altos, consegue, de certa maneira, reformular o lirismo. Ele não adere a um lirismo boca blanda, mas sim ao lirismo da garganta da história gritando, numa relação dialética entre o “eu” e o “nós”. O poeta rebelando-se contra a hipertrofia do Estado e do Poder, “males do século”, e a consequente atrofia do indivíduo.

Uma terceira coisa significativa é que, com Inventário, aflora toda uma temática até aqui proibida e interditada: a era de repressão total e brutal. E isso se torna relevante na medida em que o poeta deve escrever sobre e para o “hoje”, e não para o “futuro”. Se os modelos de consumo de agora são os modelos de produção de quarenta anos atrás, problema dos consumidores, e não dos produtores. Em contrapartida, há também coisas que não podem passar em branco, sem resposta, todas alinhavadas no prefácio do professor Escobar que, num esforço biônico, consegue botar no mesmo saco “Geração de 45”, Poesia Concreta e Poema Processo, chamando-os de estéreis e fascistas. Miopia é apelido.

Quanto à “Geração de 45”, nada a discordar. Mas quanto à Poesia Concreta, transcrevo trecho de Décio Pignatari sobre o que ela, ao menos, gostaria de significar:

Em resumo: os valores da classe dominante se fixam na linguagem dominante. A perturbação dessa linguagem constitui uma ação inquietante. Como não poderia deixar de ser, primeiro trabalhamos ao nível sintático, que é o nível da produção, pois como é que essa gente pensa que se cria uma nova linguagem ou uma nova indústria? E como uma linguagem desse tipo, inquietante, pode ser majoritária? (1965)

Maiakóvski, em intervenção num debate sobre método formal e sociológico, em 1925, dizia:

Uma obra não se torna revolucionária unicamente pela sua novidade formal. Uma série de fatos, o estudo de seu fundamento social, lhe imprime força. Mas, a par do estudo sociológico, existe o estudo do aspecto formal. Isso não contradiz o marxismo, mas sim a vulgarização do marxismo, e contra esta lutamos e lutaremos.

De acordo com a lógica biônica do professor Escobar, Maiakóvski seria experimental, formalista e fascista. Um livro de poemas deve justificar-se por si mesmo, sem prólogos que o expliquem ou o defendam, disse alguém. E esse é o maior erro de Inventário de cicatrizes.


Texto publicado originalmente no Diário de S. Paulo, em 30 de novembro de 1978. Acessível em regisbonvicino.com.

 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.