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Poesia guerrilheira: Os versos do Araguaia

Um fato raro e pouco conhecido na história da poesia brasileira recente foi a reunião e a publicação de poemas escritos por guerrilheiros do Araguaia durante a guerrilha. Os poemas dessa pequena seleção são surpreendentes, em vários aspectos. Antes de comentá-los brevemente é preciso, porém, comentar ainda mais brevemente a própria guerrilha.

A guerrilha na região do rio Araguaia, no Pará, durou entre fins da década de 1960 e 1974. Foi organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), de linha maoista, que pregava um caminho sino-cubano para chegar à Revolução no Brasil, somando a “via camponesa” de Mao Tsé-Tung (que contrariava o marxismo-leninismo “clássico”, centrado no proletariado urbano) ao vanguardismo guerrilheiro de Fidel e Guevara.

 

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Se esse foi o contexto ideológico da guerrilha do Araguaia e de seus participantes, os poemas ali surgidos escapam da cartilha.

Reunidos em um livreto datilografado e numerado (48 pp.), intitulado Primeiras cantigas do Araguaia, tiveram sua impressão a cargo do Centro Mineiro de Cultura Popular, no ano de 1980 (segundo a data repetida na “Apresentação” [pp. 4-5], assinada pelos “Familiares de mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia”, e no posfácio [p. 47], creditado ao Comitê Brasileiro pela Anistia [CBA]).

 

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Os poemas anônimos contidos no opúsculo foram, no entanto, escritos antes de 1974, ano do fim da guerrilha, segundo a data do prefácio “Cantar é preciso” (pp. 6-7), assinado por um pseudônimo de evidente caráter ideológico-coletivo: “Libério de Campos, fevereiro de 1974” (Libério de Campos: “liberdade do campo”).

Estas poesias foram feitas provavelmente pelos guerrilheiros do Araguaia. Sua primeira publicação parcial se deu em 1979 no jornal Resistência, do Pará. Segundo Luiz Maklouf, responsável por sua publicação, elas foram enviadas em 1976 ao jornal O Estado do Pará, onde trabalhava. Sabendo que jamais seriam publicados por esse jornal, ele guardou-as cuidadosamente, até que houvesse condições de editá-las (“Apresentação”, p. 4).

Seria de esperar que tanto a forma quanto os temas dessa poesia respeitassem as regras da “arte camponesa socialista”, ou seja, temas “socialistamente corretos”, de viés agrário, em modos popular-populistas, semelhantes aos adotados, à mesma época, pela produção dos Centros Populares de Cultura (CPCs) e outros grupos próximos. Para piorar, em tais circunstâncias específicas, deveriam reinar os chamados sectários, as convocações “à luta”, os apelos “à causa” etc. De fato, eles existem − mas não predominam.

Tampouco predominam as referências ao socialismo. A crer nesses poemas, a luta no Araguaia, à primeira leitura, parece ter um caráter messiânico, clamando e reclamando por uma “liberdade” algo abstrata. Pois tal “liberdade” não poderia ser simplesmente a liberdade advinda do fim da ditadura militar, que pressupunha, no contexto da Guerra Fria e das forças políticas brasileiras de então, a escolha entre dois diferentes sistemas político-ideológicos: a democracia representativa, “burguesa e capitalista”, ou a ditadura do proletariado. Mas como a guerrilha do Araguaia não era messiânica, na linha do movimento de Canudos, nem defendia a democracia burguesa, a “liberdade” referida nos poemas era mesmo, afinal, a do fim da ditadura − mas somente porque o fim dessa mesma liberdade, pelo subsequente advento da ditadura do proletariado, objetivo último do PC do B, não é aqui considerado (não era essa a “tarefa” do momento, para usar um termo da época): nas palavras do “Prefácio”, “Este trabalho é dedicado a todo o povo brasileiro, a todos os que, de alguma forma, se batem pela liberdade” (p. 7). E esta liberdade era, de fato, ao menos naquele momento, a do fim da ditadura.

Em todo caso, ao menos uma forma de liberdade nada tem aqui de abstrata: a da forma. Ela permite que os poemas fujam (se não na sua totalidade, em grande parte) dos meios e modos do popular-populismo e da arte engajada-panfletária para encontrá-la, por exemplo, em outra vanguarda rígida, na linguagem do concretismo. Assim, num giro paradoxal, esta reaparece longe da urbe e dentro da mata, distante das querelas literárias e próxima da luta política na sua forma mais dura. Irônica e imprevistamente, a vanguarda “burguesa” da “revolução” poética encontra a vanguarda esteticamente atrasada da Revolução política, e elas conseguem se entender.

 

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“Cidade grande” faz um sutil e preciso jogo semântico com os significados originais dos substantivos. Favela é um tipo de fava, vegetação comum na região do Arraial de Canudos, onde dava nome a um morro próximo. Os soldados da República para lá deslocados no final do século XIX montaram acampamento nesse “Morro da Favela”, e a denominação os acompanhou ao Rio de Janeiro quando, desmobilizados, acamparam nos morros em torno do Centro, à espera de títulos de propriedades prometidos pelo governo, que nunca vieram (seus acampamentos foram a origem das favelas cariocas). Daí a síntese polissêmica da primeira parte do poema: “à sombra / dos arranha-céus / plantam-se / as favelas”.

Em “Campo”, por um lado, o vocabulário está “errado”, pois um poema em tal linguagem não deveria falar de coisas campestres como “léguas” e “éguas”, como na segunda estrofe. Por outro lado, também está portanto “errado”, porque completamente acertado, o uso dessa linguagem, que na primeira estrofe é, ao mesmo tempo, metalinguístico, sintético e sofisticado, pela palavra composta de cunho gramatical “sempre-gerúndio”, pela rima rara com “latifúndio” e, por fim, pela aparição subsequente de um gerúndio, “escravizando”. Este pequeno curto-circuito poético, se conhecido antes, talvez tivesse tornado alguns fervorosos argumentos e contra-argumentos crítico-poéticos ociosos.

 

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Na primeira parte de “Vida vivida” (“Jogo de contrários”), somam-se de modo convincente (ainda que algo ingênuo) a conhecida sintaxe nominal e a seca precisão vocabular, palavra a palavra, sem nada de arbitrário (mas necessário) ou de “formalista”, apesar da consciência da forma.

 

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Na segunda parte, “Tempo”, a segunda estrofe faz um jogo semântico irônico com a expressão “boca do fuzil” e o “diálogo” das armas, ou seja, o combate. A terceira estrofe utiliza o recurso da montagem para ir de “mês a mês” e “usura” até a palavra-valise (no contexto do texto) “desmesurada”.

Mas eis que, algumas páginas à frente, em “Aos nativos”, afinal aparece, numa convivência tranquila, o perfeito popular-populismo de quadras rimadas em redondilha maior (com direito a “violeiro do sertão”), na segunda pessoa do singular e com vocabulário obreiro-agrário, evocando o povo e a luta:

 

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Tornou-se um verdadeiro vício da crítica contemporânea de poesia achar aspectos “à Drummond” ou “à Cabral” em todos e quaisquer poetas e neopoetas. Mas em Primeiras cantigas do Araguaia há ao menos um poema (“Palafitose”) que não desmerece inteiramente o adjetivo de cabralino, sem que esse qualificativo o esmigalhe por completo ao peso da evocação. Ele é cabralino, naturalmente, não porque à altura de Cabral, mas por ter conseguido absorver algumas de suas lições (como a sintaxe seca, as rimas toantes, as metáforas substantivas) sem pretender emular, inútil e pretensiosamente, o modelo:

 

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Apesar de nada revolucionária, há nessa poesia guerrilheira, ou nesses poemas de guerrilheiros, muito mais variações de formas (num verdadeiro catálogo ecumênico ou democrático das sintaxes poéticas dominantes no período) do que havia matizes de ideias no movimento, considerando sua conhecida rigidez ideológica. E como a forma é uma forma de conteúdo, a poesia se revela aqui um sutil desfazedor, senão de ideias, de frases feitas. Esses guerrilheiros, em suas vozes poéticas, não falam, felizmente, com a dureza totalitarista dos donos da razão histórica e do futuro. Os comissários políticos do partido, na seara estética das lutas do Araguaia, não parecem ter feito um bom trabalho. O dos poetas armados, ainda que relativamente, foi bem melhor.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).