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Armando Freitas Filho: onde a poesia não mora


Lar
: eis o título, em sua completa banalidade pequeno-burguesa, do último e recém-lançado livro do poeta carioca Armando Freitas Filho (São Paulo, Cia das Letras, 2009). Ou talvez não, pois o título do livro é, na verdade, “espertamente” “estranhado” por uma vírgula: Lar,.

O problema é que a tímida e “esperta” aposição meramente gráfica não é suficiente para determinar a leitura explícita de “lar vírgula” – forma sutil de dizer “lar uma ova”. Trata-se mesmo de “lar”. Um “lar” onde, naturalmente, certas coisas acontecem, ou melhor, aconteceram – pois o livro tem um viés memorialístico –, o que será portanto narrado depois da vírgula, isto é, dentro do livro. Pena que “tudo” o que ali aconteceu não inclua sequer a sombra de uma poesia vigorosa.

Comecemos pelo prefácio (Vagner Camilo, “Lar, a autobiografia de uma poética”, pp. 9-15). O melhor que dele se pode dizer é ser completamente ocioso. Ao lado do inevitável procedimento que hoje impera na crítica brasileira de poesia, a paráfrase do verso anteposta ao próprio verso parafraseado, aqui se acrescentam doses generosas de paráfrase pura: o prefácio, portanto, em sua maior parte nos diz o que dizem os poemas:

Além da escola, o livro explora outros topoi e experiências recorrentes no gênero, igualmente decisivos para essa constituição identitária: a evocação meio proustiana do primeiro quarto de dormir; a reconstituição da casa paterna, com sua sala de visitas fria e sem vida (em contraste com a vida intensa de sua réplica reduzida, a casa dos empregados, pela faina doméstica e pelas vivências proibidas do eu adolescente em horário de trabalho roubado); o despertar da sexualidade e a descoberta do corpo como pura alteridade. Ou ainda o confronto com a austeridade da religião repressora, seja na experiência do eu no confessionário, pronto para a penitência […] arranhado / pela pureza áspera do padre / diante da aridez de Deus, seja na primeira comunhão do menino de alma ainda pura… (p. 12)

Pergunto-me, portanto, por que ler tudo isso. Não há esoterismos, cifragens, idiossincrasias ou complexidades nesses poemas que, como o título indica e o próprio prefácio assim explicita, versam sobre temas enfadonhamente familiares, em mais de um sentido. Logo, para que um prefácio a fim de antedizer o óbvio desses temas que então os poemas em seguida redirão? Para testar a paciência do leitor? Por que a poesia, condenada à sua irrelevância cultural e ao seu paroquialismo grupalista, pode se dar ao luxo de ser completamente tediosa, assim como seus prefácios? Ou será, quiçá, um golpe de suprema e amarga ironia, visando denunciar e condenar a irrelevância e o paroquialismo pela via paradoxal do intenso aborrecimento do leitor, que seria então uma forma de provocá-lo? O problema é que, neste caso, não apenas prefaciador e poeta teriam de ser igualmente eficientes ao gerar o enfado, como teriam de fazê-lo de caso pensado e combinado, o que os tornaria uma dupla inverossimelmente lúcida nestes tempos de generalizada turvação crítica.

Os versos acima interpolados à extensa paráfrase, em todo caso, servem para introduzir uma das características da poesia de Lar. Trata-se do fracasso capaz. Hoje, o que predomina na poesia brasileira é o simples fracasso incapaz, o fracasso imperito e inepto, de poetas que o são somente pela capacidade de juntar palavras em frases mais ou menos gramaticais e por saber usar a tecla enter, com a qual mudam abrupta e aleatoriamente de linha ao digitar seus ditos poemas, assim os “estruturando”. Freitas Filho sabe bem mais do que juntar palavras em frases gramaticais e do que usar a tecla enter. Por exemplo, entre os versos acima citados, “pela pureza áspera do padre” é um perfeito decassílabo heróico, acentuado na sexta e na décima sílabas, além de vertebrado por uma sequência integral de aliterações em p, que são por sua vez preenchidas pelo mesmo par vocálico e-a. Coisa de quem sabe. E no entanto, o resultado não vibra. Um “pós-modernista” entusiasmado pelas próprias certezas diria que não vibra justamente pela eficiência técnica, pois a poesia, desde os modernismos, já não está nem pode mais estar no rigor da linguagem propriamente poética, mas em qualquer outro lugar. Non sense. A poesia, sem o rigor e o vigor da linguagem propriamente poética, está apenas na pretensão do poeta de que esteja em suas páginas, assim como na complacência da crítica em concordar “democraticamente” com tudo que o poeta pretenda. Prova incontornável disso é a própria “poética” da tecla enter hoje dominante. Resta, portanto, saber por que a poesia eventualmente capaz de Freitas Filho é sempre incapaz de vibrar.

Não se trata de falta de “sinceridade”. Sinceridade nada tem a ver com arte, mas com a amizade e os testemunhos juramentados. A arte trata da eficiência da forma. Se um poema tem um tema triste, e o realiza, por exemplo, em versos longos e lentamente ritmados, com uma clara predominância de vogais graves, pouco importa se o poeta estava de fato triste, pois isso não o isenta de ter assim de fingir pessoanamente (isto é, de mimetizar poeticamente) a tristeza que deveras sente. Nunca é demasiado citar o exemplo modernamente fundador de Edgar Allan Poe em “O corvo”, ao criar o mais “romântico” dos poemas da forma mais racional e controlada possível, como descreve detalhadamente em A filosofia da composição”. Os poemas de Lar, mesmo quando mais poeticamente bem realizados, não vibram: trata-se, ao fim e ao cabo, de uma constatação, de um resultado. Bons poemas são mais do que a mera soma de suas partes. Ou seja, são tais que a soma de suas partes poeticamente bem realizadas levam o resultado para muito além de sua realização eficaz. Poemas imperitos são feitos de partes poeticamente mal realizadas, ourealizadas pobremente. Os poemas de Lar são tão-somente a soma de suas partes poeticamente bem realizadas. Isso quando o são. Pois outra das características de Lar é serem muitos poemas, ou muitas passagens de muitos poemas, apenas fragmentos de prosa mal disfarçados pelo recorte aleatório e pelo margeamento à esquerda (sim, trata-se da própria “poética” da tecla enter). Eis, portanto, como começam as duas partes do poema “Duas casas”(p. 65):

No corpo da casa, a sala de visitas que poucos visitavam tinha um cheiro diferente de todos os outros. Cheiro de mar parado, que não entrava, que ficou na vidraça da janela, nas entranhas dos estofados.

[…]

Na casa dos empregados, réplica reduzida ao básico da casa grande, o cheiro era a soma de todos os que acompanhavam a vida nos quartos, salas, escritórios e banheiros.

Naturalmente, tais fragmentos de prosa não estão assim diagramados no livro, mas sim em recortes arbitrários margeados à esquerda.

No corpo da casa, a sala de visitas
que poucos visitavam tinha um cheiro
diferente de todos os outros. Cheiro de mar
parado, que não entrava, que ficou na vidraça
da janela, nas entranhas dos estofados.

[…]

Na casa dos empregados, réplica reduzida
ao básico da casa grande, o cheiro era
a soma de todos os que acompanhavam a vida
nos quartos, salas, escritórios e banheiros.

Não por acaso, um verso como “diferente de todos os outros. Cheiro de mar” tem nada menos que 14 sílabas, o que é aritmeticamente prosaico. A questão, de qualquer forma, é de sintaxe. A sintaxe estritamente prosaica dessas frases, aliada à sua tessitura sonora pobre ou nulamente recorrente, determina que sua dimensão poética possa estar apenas em sua disposição gráfica. Ou seja, numa caricatura de um poema. Para piorar, tanto referências explícitas do prefácio (p. 10) quanto o título (“Duas casas”) quanto a divisão do poema em duas partes complementares e dialogantes lembram procedimentos facilmente identificáveis com Cabral (“Dois parlamentos” etc.). Ocorre que em Cabral essa divisão dialogante serve a um propósito contrapontístico, no qual, entre outras coisas, versos ou partes de versos são retomados através de permutações (procedimento depois popularizado por Chico Buarque em letras como “Construção”). A lembrança de Cabral, assim, presta-se aqui apenas para condenar ainda mais cabalmente os pobres resultados de Freitas Filho.

O mesmo vale para a evocação, no prefácio (p. 9) como nos poemas, do Drummond memorialista de Boitempo e do famoso “menino antigo”. Junta-se, então, ao enfado o patético. Pois evocar Drummond, assim como Cabral, somente pode acentuar a distância cosmológica que medeia entre a poesia de Freitas Filho e a de tais poetas mais do que capazes.

Acrescento uma nota histórico-pessoal. O tema do peso e da sombra de uma educação católica, que percorre vários poemas da primeira parte (“Primeira série” – as demais são “Formação” e “Numeral”), é um tema do século XIX, ou, no máximo, do início do século XX. Mas se ainda aparece, por exemplo, em um livro como o Ulysses, de 1922, já então o faz de forma irônica, como o atesta de saída a primeira página, em que Buck Mulligan faz uma caricatura explicitamente ridícula do ritualismo católico, recitando a frase da missa “Introibo ad altare Dei” [“Entrarei no altar de Deus”] enquanto ergue solenemente uma tigela com espuma de sabão, sobre a qual uma navalha e o cabo de um espelho de mão formam a cruz. O contrassimbolismo é poderoso: a espuma de sabão que ele ergue e exibe (ou seja, que afirma) é a vida prosaica, a navalha, a morte, o espelho, a realidade do prosaísmo e da morte prosaica que determinam a condição “espuma de sabão” do homem (em vez do “nobre” “pó da terra” bíblico). No caso dos poemas da meninice católica de Freitas Filho, porém, não há ironia (muito menos complexidade). Apesar de toda a iconoclastia do século XX, e a despeito de pertencer à mesma geração de John Lennon e Paulo Leminski, Freitas Filho acredita que ainda podemos levar a sério seus antigos problemas de confessionários sombrios e de punhetas culpadas.

Vestido desde o amanhecer, espero
em jejum, dentro da roupa vincada
com o rigor da fé, o desmaio da comunhão.
(pp. 19-20)

Confesso.
Diante da cara mascarada
Por treliça e sombra.
(p. 21)

O sinal preto da minha sombra.
Corpo suspeito sem escapatória
conjura contra si próprio, contra
mim, no espelho adverso
banhado de suor e corrosão.

Sob minhas vistas, a verruga…
(p. 23)

“Verruga” porque, salvo engano determinado por minha ignorância de tal subcultura católica, bater punheta, entre outras coisas, fazia nascer verrugas nas mãos.

Isso quanto ao aspecto histórico. Quanto ao aspecto pessoal, como, justamente, não sou católico, não posso recorrer a qualquer experiência propriamente pessoal para informar a leitura de tais poemas (por exemplo, tenho enorme dificuldade para entender do que afinal se trata essa tão famosa “comunhão” – e seu “desmaio” –, além de um vazio gesto ritual), cujo pathos, portanto, tem de ser transmitido inteiramente pelos próprios poemas, ou não sê-lo absolutamente E no meu caso em particular, absolutamente não se transmite. Resta o fardo do meu enfado contemporâneo, maior, acredito, do que a de qualquer meninice católica na segunda metade do século XX.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).