Mais do que uma visita freqüente, Beckett foi por muito tempo o braço direito de James Joyce: pesquisava temas que interessavam ao autor de Ulisses; foi um dos doze ensaístas escolhidos por Joyce para falar sobre sua nova obra, Finnegans Wake, nessa época intitulada Work in Progress; além disso, como lembra Richard Ellmann, “uma ou duas vezes ele [Joyce] ditou fragmentos de Finnegans Wake a Beckett, embora não gostasse de ditados; no meio de uma dessas sessões bateram à porta e Beckett não ouviu. Joyce disse, ‘entre’ e Beckett escreveu isso. Quando Joyce depois leu o que Beckett havia escrito, disse: ‘O que é esse ‘entre’?’ ‘Sim, você disse isso’, afirmou Beckett. Joyce refletiu um momento e disse: ‘Deixe ficar’. Tinha muita disposição de aceitar o acaso como seu colaborador. Beckett estava fascinado e frustrado com o método singular de Joyce”.
Esse método, no entanto, aos poucos foi se incorporando à escritura de Beckett. Segundo o filósofo francês Alain Badiou: “pouco a pouco, não sem hesitações nem arrependimentos, a obra de Beckett se abre para o acaso, para os incidentes e, portanto, para a idéia de sorte. A última palavra de Mal vu mal dit é justamente: ‘Conhecer a sorte’”. Em O Inominável (1949), lemos: “ninguém me obriga, não há ninguém, é um acidente, é um fato”.
Entre o último Joyce, o de Finnegans Wake (1939), e Beckett, podemos perceber, no entanto, outros aspectos comuns, que serão tratados aqui e que vão de encontro à opinião de muitos estudiosos que lêem as suas respectivas obras a partir das diferenças, apontadas, aliás, pelo próprio Beckett.
O estudioso italiano Aldo Tagliaferri afirma que os leitores irão detectar em Beckett “traços de idéias ou temas já incorporados na obra de Joyce”. O mesmo Tagliaferri opina, entretanto, que o escritor mais jovem se rebelou contra o mais velho, desejando subverter sua estética, “pelo fato de Beckett agastar-se cada vez mais com a consciência de que Joyce, seu ancestral literário mais próximo, tendia, de fato, a oprimi-lo fortemente, não é de surpreender que a poética do Finnegans Wake tenha representado o alvo central dessa subversão”.
Independente da tentativa de Beckett de subverter os métodos de Joyce, a meu ver, ambos compartilham uma mesma desconfiança para com a linguagem, como se verá à frente. Sendo que essa linguagem, da qual se origina uma fala incessante, tende a gerar, na obra de ambos, personagens obscurecidos pela voz, ou seja, personagens sem corpo, à beira da morte, quase inconscientes. Esses personagens, feitos de linguagem, acentuam e traduzem a atmosfera de sonho, de devaneio de suas obras.
As primeiras linhas de Molloy (1951), de Samuel Beckett, exemplificam o que se disse acima: “Estou no quarto de minha mãe. Sou eu que moro lá agora. Não sei como cheguei lá. Numa ambulância talvez, num veículo qualquer certamente. Me ajudaram. Sozinho não teria chegado (…). Eu, eu gostaria agora de falar das coisas que me restam, me despedir, terminar de morrer”.
Finnegans Wake, como afirmava Joyce, era o relato de um sonho do gigante Finn MacCool, um dos mais célebres heróis da mitologia irlandesa, que, deitado moribundo à margem do Liffey – rio que corta a cidade de Dublin e estende-se para fora dela -, observa a história da Irlanda e do mundo, seu passado e futuro. Segundo uma das versões desse mito, Finn, que significa “justo”, dorme enquanto aguarda um chamado da Irlanda para socorrê-la numa hora de perigo.
Para descrever essa atmosfera noturna, Joyce se valeu de uma linguagem não convencional, criou um idioma próprio (um dialeto joyciano), “capaz” de traduzir o inconsciente da mente durante o sono: “Botei a linguagem para dormir”, Joyce declarou certa vez a August Suter. E, para outro amigo, Max Eastman, explicou mais tarde: “escrevendo sobre a noite eu realmente não pude, senti que não podia, usar palavras em suas ligações habituais. Usadas dessa maneira elas não expressam como são as coisas à noite, nos diferentes estágios – consciente, depois semiconsciente, depois inconsciente. Achei que isso não poderia ser feito com palavras em suas relações e conexões comuns. Quando a manhã chegar naturalmente tudo ficará claro outra vez.”
O fato é que, em Finnegans Wake, Joyce levou às últimas conseqüências a sua experimentação com a língua e a palavra. Escreveu o romance utilizando a mescla de palavras de mais de sessenta e cinco idiomas diferentes e ainda distorceu e “disfarçou” muitas desses vocábulos, criando, assim, um enorme “quebra-cabeças cheio de adivinhações e jogos de palavras”. Tomemos como exemplo a seguinte sentença de Wake: “Are we speachin d’anglas landage or are you sprakin sea Djoytsch?” (Estamos parlando anglês ou você está sprechando-se em Djoycenamarquês?) (FW485). Nesta única frase, Joyce usa o francês (‘d’anglais), o alemão (‘sprechen Sie Deutsch?’), o inglês e, poderia-se dizer, o “joyce”, ou “Djoytsch”, uma vez que muitas dessas palavras na verdade foram construídas por ele próprio.
Em Finnegans Wake, além disso, uma única palavra pode concentrar dois ou mais significados, sendo que essa acumulação semântica se realiza através de associações fônicas, morfológicas e gráficas. Para obter tal acumulação, Joyce utilizou principalmente dois recursos estilísticos, o trocadilho e a palavra-valise.
O trocadilho é um jogo de palavras semelhantes no som, mas com significados diferentes, como, por exemplo, os seguintes, extraídos de Finnegans Wake: “Maria full of grease” (Maria cheia de graxa), que toma o lugar da expressão “Maria full of grace” (Maria cheia de graça); “Talk save” (Fala me livre), expressão usada reiteradas vezes no livro, que toma o lugar da frase “God save” (Deus me livre); ou, ainda, a expressão “making loof” (fazendo rumor, tradução possível), no lugar de “making love” (fazendo amor).
Quanto à palavra-valise, ela é uma palavra formada a partir da junção de pelo menos duas outras. Em Finnegans Wake temos, por exemplo, as seguintes palavras-valise: “laughtears”, que conjuga duas outras palavras, “laught” (riso, risada) e “tears” (lágrimas); “chaosmos”, originada a partir das palavras “chaos” (caos) e “cosmos” (cosmo); “funferall”, construída a partir das palavras “funeral” (funeral) e “fun for all” (divertimento para todos); “finneagain”, composta de uma palavra latina “finne” (fim) e de uma palavra inglesa “again” (novamente); “dredgerous”, formada por três palavras, “dangerous” (perigoso), “treacherous” (traiçoeiro, enganoso), “dredging” (dragagem, tradução possível); “djoytsch”, que contém “Deutsch” (alemão) e “Joyce”, ou “joy” (alegria).
Esses dois recursos reforçam a ambigüidade latente da língua e a impossibilidade de se escolher entre os inúmeros significados de uma palavra, “deixando o leitor oscilando indefinidamente no espaço semântico”.
Em razão dessa experimentação lingüística, muitos estudiosos afirmam que Finnegans Wake “não é sobre ninguém, nenhum lugar, nenhuma época”, que o romance nada mais é do que “um sonho sobre a linguagem”, ou que “o verdadeiro romance se passa entre Joyce e a linguagem”.
Antes mesmo de Finnegans Wake estar concluído, Samuel Beckett opinou que Wake não era um livro “sobre alguma coisa”, era “a coisa em si”.
Se, por um lado, o último romance de Joyce constitui um esforço para se entender a natureza da língua num momento de sonho ou, diria, de vigília do seu escritor, por outro lado, parece-me também que o livro suscita uma reflexão sobre a linguagem e a literatura como possibilidades de revelação da “verdade”, verdade essa, segundo o escritor e ensaísta francês Maurice Blanchot, inatingível: “a linguagem só começa com o vazio; nenhuma plenitude, nenhuma certeza, fala; para quem se expressa falta algo essencial. A negação está ligada à linguagem. No ponto de partida, eu não falo para dizer algo; é um nada que pede para falar, nada fala, nada encontra seu ser na palavra, e o ser da palavra não é nada. Essa fórmula explica por que o ideal da literatura pôde ser este: nada dizer, falar para dizer nada”.
Em Finnegans Wake, deparamo-nos com a seguinte sentença, na tradução de Donaldo Schüler: “… pois vê-se em todas as páginas que o autor foi sempre constitucionalmente incapaz da apropriação indevida de palavras faladas por outros. Lockalmmente há outra questão a ser kantionada”. [FW 108] O termo kantionada, nessa passagem, é uma referência ao filósolo alemão Immanuel Kant. A propósito, as famosas “questões” de Kant – “O que eu posso conhecer? O que eu posso fazer? O que eu posso esperar?” — são retomadas e reformuladas por Beckett em Textes pour rien (“Onde eu iria se eu pudesse ir/ O que eu seria se eu pudesse ser? O que eu diria se eu tivesse uma voz?”).
Retomando a desconfiança de Joyce com relação à linguagem, enquanto revelação de uma verdade, podemos dizer que a mesma desconfiança aparece em Samuel Beckett. Ou seja, assim como o autor de Finnegans Wake, Beckett também não acreditava que a linguagem pudesse revelar alguma verdade. Em O Inominável, lemos: “… não se deve acreditar no que digo, não sei o que digo, faço como sempre o fiz, …”.
Sobre Beckett, Alain Badiou afirma que ele é “um escritor do absurdo, do desespero, do vazio, da incomunicabilidade e da eterna solidão, em suma, um existencialista. Mas também um escritor ‘moderno’, no que diz respeito ao destino da escritura, à ligação entre a repetição da linguagem e o silêncio original, à função simultaneamente sublime e irrisória das palavras, tudo isso teria sido capturado pela prosa, muito aquém de toda intenção realista ou representativa, a ficção sendo ao mesmo tempo a aparência de uma narração e a realidade de uma reflexão sobre o trabalho do escritor, sua miséria e sua grandeza”.
Nesse sentido, sabe-se que o grande tema de Finnegans Wake é uma carta encontrada por uma galinha num monte de lixo, metáfora, quem sabe, da “miséria” do escritor, como fala Badiou. A carta é analisada à exaustão ao longo de todo romance, sem que se consiga chegar a uma conclusão a respeito de seu conteúdo, ou mesmo de seu real autor. Escritor e escritura são postos à prova e poder-se-ia dizer que, assim como em Beckett, sua “miséria e grandeza” se revelam: “Diga, barão iluminadoor, quem diabo escreveu esta maldita coisa de modo algum?” [FW107; 108]
Segundo Donaldo Schüler, “o texto da carta, revestido por outros textos, estende-se em processo de revelação ao longo de Finnegans Wake, trabalho sempre retomado e nunca concluído. Fala e traço fundamentam a escrita”.
Aldo Tagliaferri opina, entretanto, que a diferença entre Beckett e Joyce está na crença do autor de Ulisses na linguagem (numa leitura que vai de encontro a que proponho neste ensaio): “Finnegans Wake podia concluir-se como uma arca satisfeita com as mil fechaduras e encerrando um revirado e todavia mimético aleph, nada mais do cosmos externo, ausência, vazio não levado seriamente em consideração, satisfeito de possuir em si mesmo as próprias chaves, ‘The keys to. Given!’ (‘As chaves para. Dadas!’)[FW628]. Já a trilogia beckettiana [Molloy, Malone Morre, O Inominável] rejeita as chaves da auto-identificação mimética como inúteis (…) as portas e as cancelas encontram-se sem fechaduras (…). A obra [de Beckett] é progressivamente reabsorvida, fascinada pela hipótese da própria ausência”.
Numa entrevista, Beckett afirmou que a diferença entre ele e Joyce consistia no fato de Joyce ser “um supremo manipulador do material – talvez o maior. Fazia as palavras trabalharem ao máximo. Não há sílaba que seja supérflua. Numa obra como a minha, não sou o senhor do meu material. Quanto mais Joyce sabia, tanto mais ele podia. Ele tendia para a onisciência e a onipotência enquanto artista. Eu lido com a impotência, a ignorância. Não acho que a impotência tenha sido explorada no passado”.
Podemos pensar, no entanto, indo de encontro à afirmação de Tagliaferri e Beckett, respectivamente, que, em Finnegans Wake, Joyce até poderia ter as “chaves” da sua linguagem, mas não sabemos a quem elas são úteis. A frase do romance é clara: “the keys to.” (“as chaves para.”). “To whom?” (para quem?), pergunto-me. Para o leitor, essas chaves, ao meu ver, abrem salões destruídos pela manipulação excessiva da língua, que explode cada palavra, cada vocábulo e nos encaminha para vazio linguagem. Parece-me, portanto, que, quanto mais Joyce sabia, tanto mais estava consciente da impossibilidade da linguagem enquanto possibilidade de comunicação, por isso talvez a necessidade de recorrer às experimentações lingüísticas, às reinvenções de fábulas, às citações. Mas nada disso é suficiente em Wake: “This is nat language at any sinse of the world” (“Isso não língua em nenhum lugar do mundo”. [FW 83]
Uma frase do protagonista de O Inominável serviria para analisar Finnegans Wake: “tudo cede, tudo se abre, anda à deriva”.
Parece-me que o excesso da linguagem em Finnegans Wake e a aridez da linguagem em Beckett resultam numa língua cansada, que submete o sujeito da voz a uma “tortura intolerável”, como afirma Badiou. De fato, tanto em Beackett quanto no último Joyce, os personagens são feitos de palavras. Em O Inominável lemos: “sou de palavras, sou feito de palavras, das palavras dos outros, que outros, e o lugar também, o ar também, as paredes, o chão, o tecto, palavras, o universo está todo aqui, comigo, sou o ar, as paredes, o emparedado, tudo cede, tudo se abre, anda à deriva (…)”. Mas “o universo está todo aqui, comigo”, talvez esteja aí a onipotência e a onisciência de Joyce e também de Beckett.
A respeito dos personagens de Beckett, Badiou afirma: “a escritura, esse lugar da experimentação, vai anular as outras funções primitivas da humanidade: o movimento, a relação com o outro. Tudo se reduz à voz. Plantado num jarro ou cravado numa cama de hospital, o corpo, cativo, mutilado, agonizante, é apenas o suporte quase perdido de uma fala”.
Em Finnegans Wake, a linguagem também “reduz” os personagens à voz. Em Wake, os personagens já não têm mais contornos fixos nem definidos, estão em constante metamorfose. Certo é que os personagens do romance joyceano não são seres esquematizados, mas uma pluralidade indefinida de máscaras, de fragmentos de personalidades distintas e sobrepostas, como poderia ocorrer, por exemplo, num retrato cubista, que oferece simultaneamente todos os aspectos de um mesmo objeto, vistos de ângulos diferentes. Nos fragmentos do romance que cito abaixo, o personagem que nos fala pode ser Anna Livia, Issy, um rio, uma árvore, etc., o que importa aqui é a voz, a fala infinita:
Sim, me vou indo. Oh amargo fim! Eu me escapulirei antes que eles acordem. Eles não hão de me ver. Nem saber. Nem sentir minha falta. E é velha e velha é triste e velha é triste e em tédio que eu volto a ti, frio pai, meu frio frenético pai, meu frio frenético feerível pai, até que a pura vista da mera aforma dele, as láguas e láguas dele, lamamentando, me façam maremal lamasal e eu me lance, oh único, em teus braços. Ei-los que se levantam! Salva-me de seus terrípertos tridentes! Dois mais. Umdois morhomens mais. Assim. Avelaval. Minhas folhas se foram.Todas. Uma resta. Arrasto-a comigo. Para lembrar-me de. Lff! Tão maviosa manhã a nossa. Sim. Leva-me contigo, paisinho, como daquela vez na feira de brinquedos! Se eu o vir desabar sobre mim agora, asas branquiabertas, como se viesse de Arkanjos, eu pênsil que decairei a seus pés, Humil Dumilde, só para lauvá-los. Sim, fim. É lá. Primeiro. Passamos pela grama psst trás do arbusto para. Psquiz! Gaivota, uma. Gaivotas. Longe gritos. Vindo, longe! Fim aqui. Nós após. Finn équem! Toma. Bosculaveati, mememormim! Ati mimlênios fim. Lps. As chaves para. Dadas! A via a uma a uma a mém a mor a lém a [FW 627, 628]. (Tradução de Haroldo de Campos..)
Nãouço com as agitadas águas de. As sussurrantes águas de. Alvoroçados morcegos, rumor farfalhado de ratos do campo. Ei! Não foste embora? Que Thom Aflora? Nãouço com o farfalhar dos morcegos, todas as liffyerrantes águas de. Ah, rumor nos livre! Moss pés criam limo. Me sinto tão velha como aquele olmo além. Um conto contado de Shaun e Shem? Todas as filhas e filhos de Livia. Falcões da noite escutem-nos. Noite! Noite! Toda minha cabececoa. Me sinto tão pesada quanto aquela pedra lá no chão. Me falas de John ou Shaun? Quem são Shem e Shaun os filhos ou filhas viventes de? Noite já! Me conta, me conta, olmo, me conta! Noite noite! Contaumconto de raiz ou rocha. Junto às ribeirinhas águas de, as correntesrecorrentes águas de. Noite! [FW 215, 216]. (Tradução minha.)
Portanto, se entendemos o personagem de ficção, como quer o crítico Antonio Candido, como “seres humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla medida transparentes, vivendo situações exemplares de um modelo exemplar (exemplar também no sentido negativo)”, então devemos renunciar a chamar as figuras que povoam Finnegans Wake e Beckett de personagens.
Por fim, num ensaio intitulado “Onde agora? Quem agora?”, Maurice Blanchot fala dos personagens da obra de Beckett, os quais se tornam obscuros diante de uma língua que não quer calar. Diz Blanchot: “quem fala nos livros de Samuel Beckett? Quem é esse ‘Eu’ incansável, que aparentemente diz sempre a mesma coisa? Aonde ele quer chegar? O que espera esse autor, que, afinal, deve estar em algum lugar? O que esperamos nós que lemos? Ou então ele entrou num círculo onde gira obscuramente arrastado pela fala errante, não privada de sentido mas privada de centro, fala que não começa nem acaba, mas é ávida, exigente, que nunca termina e cujo fim não suportaríamos, pois então teríamos de fazer a descoberta terrível de que, quando se cala, continua falando, quando cessa, persevera, não silenciosamente, pois nela o silêncio se fala eternamente”.
Em Fim de Partida, por exemplo, o personagem Hamm fica enfurecido com a conversa infinita entre Nagg e Nell.
“Hamm: (exasperado): Vocês não acabaram? Não vão acabar nunca? (Subitamente furioso) Isso não vai acabar nunca! (Nagg se enfia no latão, fecha a tampa. Nell não se move) Mas do que eles falam? De que se pode ainda falar? (Fora de si) Meu reino por um lixeiro. (Apita. Entra Clov) Leve daqui esses restos! Atire-os no mar!”As questões levantadas por Blanchot em relação à obra de Beckett poderiam servir a um leitor de Finnegans Wake.
Segundo Donaldo Schüler, tradutor da obra para o português: “em Finnegans Wake tudo fala, todos falam. Somos perturbados pela abundância. Habituados que éramos a ser conduzidos, somos intimados a decidir.” Schüler então conclui: “fala-nos alguém que ainda não despertou de todo. Quem relata não entende o que divulga. Busca alucinadamente socorro em teorias e obras de natureza diversa. O que poderia ser enfadonha ostentação de erudição mostra-se insaciável carência.” A fala, em Finnegans Wake, é literalmente sem fim: o final do romance nos remete ao seu início, num círculo vicioso do qual não podemos escapar: “…by its corrosive sublimation one continuous present tense integument slowly unfolded all marryvoising moodmoulded cyclewhelling history” (“…por sua sublimação corrosiva desdobrou-se lentamente no integumento do presente contínuo a esplêndida escrita da história ciclogiratória”) [FW 185/186]
Segundo Blanchot, numa referência a Malone Morre, mas que pode servir a outras narrativas de Beckett, e talvez também ao próprio Finnegans Wake, o conflito entre o silêncio e a impossibilidade de calar acontece “(…) por angústia diante do tempo vazio que vai tornar-se o tempo infinito da morte; para não deixar falar esse tempo vazio, e o único modo de o fazer calar é obrigá-lo a dizer, custe o que custar, alguma coisa, alguma história (…) o entrechoque de artifícios em que a experiência se perde, pois as histórias continuam sendo histórias (…).” O que resulta daí é uma “fala neutra que fala sozinha”. E nela, como lemos em O Inominável, “o sujeito pouco importa, não há sujeito …”.
Uma outra semelhança entre Joyce e Beckett é a musicalidade de suas narrativas. Segundo Beckett, em Finnegans Wake, “forma é conteúdo, e conteúdo é forma.” Esse isomorfismo é tão evidente no romance joyceano que, para dar só um exemplo, “se o entrecho é fluvial, nomes de rios se imbricam nos vocábulos, criando um circuito reversível de reflexos do nível temático ao nível formal.”
Segundo Alain Badiou: “Freqüentemente se disse que para Beckett, bem como para outros escritores depois de Flaubert, somente a música interessava. E que ele foi um inventor de ritmos e pontuações”. Segundo Ana Helena Souza, estudiosa e tradutora de Beckett e tradutora, Como é tem um “ritmo peculiar, formado em grande parte de dois ou três acentos por unidade melódica ou grupo fônico – segmentos de frase que se apóiam em um acento tônico principal – compreendidos entre duas pausas, sejam elas lógicas, expressivas ou respiratórias. A recorrência do padrão rítmico é decisiva para o leitor fazer agrupamentos frasais significativos e guiar-se através de um texto que prescinde de pontuação e maiúsculas. Em Como é, os acentos funcionam como pontos de luz na escuridão”.
Por fim, não poderia deixar de relacionar os monólogos de Beckett com o grande monólogo que pode ser Finnegans Wake, uma vez que alguns estudiosos acreditam que esse romance seja ele todo narrado por uma só pessoa, e mesmo quando há diálogos, estes sairiam todos da imaginação de um só personagem.
A esse respeito, num ensaio sobre o narrador do romance moderno, Michel Butor afirma: “na narrativa em primeira pessoa, o narrador conta o que ele sabe de si mesmo, e unicamente aquilo que ele sabe. No monólogo interior, isso se restringe ainda mais, já que ele só pode contar aquilo que sabe no instante mesmo. Encontramo-nos, por conseguinte, diante de uma consciência fechada. A leitura se apresenta então como uma ‘violentação’, à qual a realidade se recusaria constantemente.”
No último Joyce, essa “consciência fechada” de que fala Butor talvez seja a consciência de uma pessoa, como falei acima, mas também pode ser a consciência da humanidade, ou do homem (um Adão mítico) que a representa. Em Beckett, por vezes, nos deparamos com essa mesma dúvida: “Nós, quem? Não falem todos ao mesmo tempo, também não serve de nada. Tudo se resolverá, já noite avançada, não haverá ninguém, o silêncio voltará a reinar”[O Inominável].
Conforme vimos até aqui, em Finnegans Wake, mesmo as questões mais básicas, como, por exemplo, quem são seus personagens, ou quem é seu narrador, ficam sem resposta definitiva. É óbvio que isso acentua o caráter onírico do livro, que, tal como os sonhos, não oferece certezas conclusivas. O próprio Joyce afirmava: “É natural que as coisas não sejam tão claras durante a noite, não é mesmo?” Assim, o romance incorpora a relatividade mais absoluta, nele nada é o que parece ser e tudo se funde ao mesmo tempo.
Quanto a Beckett, Ana Helena Souza afirma que “Samuel Beckett se definia como um escritor que trabalhava com a falha, a subtração, a precariedade. Colocava-se no pólo oposto ao de James Joyce que alcançara, segundo expressão do próprio Beckett, a ‘apoteose da palavra’. Por outro lado, era consciente de que seu work in regress (referia-se assim a Como é) tendia a se encontrar em algum ponto com o modo de composição joyceano do work in progress, que incluía constantes acréscimos às provas do texto. Esta tendência à adição só surge em Beckett como a proliferação de algo mínimo e a partir de situações aparentemente sem saída. É o que se vê na última parte desse livro, quando o narrador, abandonado por Pim e já se admitindo no fim de suas forças criativas (‘tudo isso quase branco nada a sair disso quase nada nada a introduzir eis o mais triste a imaginação em declínio tendo atingido o fundo’, p.116), inventa uma multidão de seres iguais a ele, engendrando uma procissão infinita de repetição e ignorância”.