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Arte: do xeque ao cheque

Tudo isso me fez lembrar de C. P. Snow, que apontou como um dos grandes males da cultura contemporânea o divórcio sombrio entre as ciências naturais e as ciências humanas. Os motivos são muitos, mas há um principal: incomunicabilidade. Uma incomunicabilidade não necessária nem inevitável, mas real, cuja causa original, em meio a um mar de causas coadjuvantes, é a ignorância da linguagem matemática pelos humanistas. Com isso, as ciências não falam a mesma língua. Ao não falarem a mesma língua, deixam de ser um república para se tornarem duas regiões mais ou menos separatistas. Lembrei de Snow não por causa dos falsos flocos de neve, mas porque sua metáfora do divórcio dentro da ciência contemporânea me parece perfeitamente aplicável ao divórcio entre as artes e os cidadãos pensantes.

Uso a expressão cidadãos pensantes para me referir ao que, antigamente, eram as camadas cultivadas, hoje substituídas por classes e letras (A e B), que se referem tão-somente ao poder aquisitivo. Não obstante, sabe-se, empiricamente, que os cidadãos pensantes existem. E que, igualmente, existe um divórcio radical entre eles e as artes contemporâneas em geral, incluídas a poesia, a música e as artes plásticas.

Esse divórcio é no mínimo tão importante quanto o descrito por Snow. Pois se o divórcio entre as ciências humanas e naturais enfraquece a ambas, e portanto, o conjunto das ciências, logo, a cultura contemporânea, de que as ciências são elementos centrais, o divórcio entre as artes e os cidadãos pensantes tem um resultado semelhante. Sem as artes, os cidadãos pensantes perdem a principal fonte do pensamento esteticamente motivado, enquanto as artes, sem os cidadãos pensantes, mergulham em problemas insanáveis de todo tipo.

Por exemplo, se a poesia não se comunica com e não é comunicada por o mundo maior dos melhores falantes da língua, resta-lhe o insulamento e a comunicação paroquial. A poesia, então, migra do continente da língua para a ilha de seus próprios praticantes, destino turístico principal da crítica especializada.

Se isso, a longo prazo, pode acarretar um empobrecimento da própria língua e de sua cultura, como acredita Eliot, a curto prazo, creio eu, acarreta o empobrecimento da poesia. Porque o paroquialismo é um modo de proteger os vícios, muito mais do que de separar os vícios e as virtudes, o que exige a luz do sol.

Ao mesmo tempo, como a endogamia enfraquece os genes pela não eliminação dos recessivos, o ensimesmamento enfraquece os músculos da vontade pela perda do sentido da ação. Para que, afinal, tanta dedicação a tudo isso? Apenas para ser lido pelo poeta X, o crítico Y e o professor Z?

Uma das causas principais do divórcio entre os cidadãos pensantes e as artes contemporâneas está no fim dos cânones pelos vários modernismos, criando confusão estética e conceitual. O caso mais radical é talvez o da música, que desde a emergência do atonalismo, no início do século XX, parece habitar um planeta particular e distante, de onde, eventualmente, chegam uns poucos ecos. O motivo, porém, foi não apenas nobre como inevitável. As artes estavam em transformação. O problema é que, findo o período principal de transformação e renovação, as artes contemporâneas e os cidadãos pensantes jamais voltaram a se tornar íntimos. De fato, eles pouco se frequentam.

Mas se as artes não estão mais em efervescência, por que a distância se mantém? De início, foi o público que se afastou, porque ativamente afastado. Dadaístas, surrealistas e modernistas em geral pretendiam, explicitamente, épater, espantar. Conseguiram. O público se espantou e, desde então, manteve-se espantado, ainda que apenas no sentido de afastado. Movido agora, não por qualquer surpresa, mas pela indiferença. Indiferença que os artistas, afinal, substituíram pela atenção endógena. A indiferença dos cidadãos pensantes e a concentração paroquial dos artistas em si próprios são, então, as duas forças paralelas que perpetuam a situação.

As artes plásticas vivem, neste sentido, uma situação geral muito semelhante à da poesia e da música contemporâneas. Mas, ao mesmo tempo, muito diferente.

A semelhança está no mesmo divórcio entre elas e os cidadãos pensantes, e no mesmo consequente paroquialismo. Mas as consequências internas para os músculos da vontade parecem ser distintas. E isto porque as artes plásticas substituíram a razão cultural de sua produção pela razão comercial.

Damien Hirst, com seus cubos cheios de formol contendo unicórnios e tubarões, emerge então como um caso emblemático. Ele é hoje o artista plástico mais valorizado. Mas valorizado como? Valorizado por quê? E valorizado por quem?

Não pelos cidadãos pensantes, mas apenas pelos cidadãos pagantes. No meio de cultura original da arte moderna, a Renascença, os cidadãos pensantes e os cidadãos pagantes eram os mesmos. Hoje, porém, a maior parte dos cidadãos pensantes integra a classe média, e não, como naquela época, a alta burguesia. Daí as artes plásticas terem, atualmente, um valor financeiro sempre mais evidente (nos dois sentidos) do que seu valor estético-cultural.

Assim, ao mesmo tempo em que Hirst alcançava o topo do “mais valorizado” – pelos cidadãos pagantes –, nada acontecia na vida dos cidadãos pensantes. Como estes são em sua maioria de classe média, as obras de Hirst não adentrarão as suas casas, em função de seus custos; e como eles são, por definição, pensantes, as obras de Hirst não frequentam seus interesses, em função de sua irrelevância estética.

Daí porque o leilão que o consagrou, se foi notícia em todo o mundo, não o foi porque esse mesmo mundo fora posto à frente de uma grande conquista estética, e sim porque se tratou de uma enorme conquista financeira. Mais especificamente, as notícias sobre o famoso leilão privilegiaram o fato, artisticamente nulo, de que Hirst afastou seu galerista para levar as peças diretamente à Sotheby´s, aumentando ainda mais seus ganhos. As peças em si mereceram muito menos atenção.

Um grande tubarão-tigre com as mandíbulas abertas e todos os dentes à mostra flutua no tanque de formol de 2,14 metros por 1,40 metro. À esquerda dele, em outro tanque, um pônei com chifre para fazer as vezes de unicórnio, também em formol. Sentados diante dessas obras de arte, investidores e milionários do mundo todo lotaram uma das casas de leilões mais tradicionais do mundo, a Sotheby’s, em Londres. A última martelada do lote de 223 peças alçou o inglês Damien Hirst, de 43 anos, ao posto de artista plástico contemporâneo mais rico do mundo e da história da arte. Em dois dias de leilão, realizado na segunda e terça-feira, foram arrecadados cerca de US$ 200 milhões. Hirst embolsou US$ 90 milhões limpos. Doou US$ 6,3 milhões à caridade. Não bastassem as altas cifras […], ao leiloar suas peças Hirst dá outro choque no mercado das artes. Ele aproxima o artista dos compradores, eliminando agentes, galeristas e outros intermediários – que costumam reter cerca de 70% do valor das obras. […] O inglês tem cerca de 200 pessoas trabalhando para criar um volume sem precedentes de obras. Além disso, vende uma linha de pijamas, um modelo de jeans da Levi’s com uma caveira incrustada de cristais que custa US$ 4 mil (“Damien Hirst ensina a arte das cifras”, revistaepoca.globo.com/revista/epoca/0,emi1284815220,00damien+hirst+ensina+a+arte+das+cifras.html)

Faz portanto todo sentido as peças receberem menos atenção, pois são esteticamente irrelevantes. A mais famosa é esse tubarão (um tubarão verdadeiro) em formol. Título: “O império”. O pônei com um chifre colado no meio da testa tem por título “O sonho”. Uma terceira obra, a cabeça de outro pônei, desta vez cortada, mas com o mesmo chifre colado na testa, chama-se “Paraíso perdido”. Tudo não passa, portanto, de uma forma explícita, gritante e kitsch de ilustrar uma metáfora unívoca e lugar-comum.

Isso quanto aos seus mecanismos internos. Em termos históricos, trata-se da contrafacção da contrafacção, ao baratear-se ao último grau a arte conceitual, em si um barateamento linguístico da arte, em nome da predominância do “conceito” (pessoalmente, quando estou preocupado com conceitos, procuro filósofos, não artistas plásticos; do mesmo modo, não espero encontrar estética visual em livros de filosofia).

Daí a minha frase inicial: é mesmo difícil imaginar um charlatão tão cabal na poesia, porque ninguém escapa de ter de escrever alguma coisa. Enquanto, no caso de Hirst, há apenas a exposição de gatos em lugar de lebres. Ou de pôneis em lugar de unicórnios.

Nada disso, porém, parece acarretar os problemas criativos que angustiam os poetas. Venho há tempos me referindo a certa irrelevância da poesia contemporânea. Essa situação, porém, não é confortável para parte importante dos poetas – ainda que a angústia em si não tenha, infelizmente, o poder de resolver nada. Para que mesmo tanta dedicação a tudo isso? Resposta de Damien Hirst: por 200 milhões de dólares.

A poesia e também música contemporânea, porém, não acharam a saída do mercado não porque são mais puras, mas porque não puderam. O mercado de artes plásticas manipula objetos, coisas, posses. Mas como possuir um poema? Comprando um livro. Porém um livro não é um poema. Não há mercado para a poesia porque o mercado da poesia é absorvido pelo mercado do livro, que é, na verdade, um mercado de reproduções. E é absorvido porque não há um verdadeiro original. E não há porque a poesia não está na sua impressão na página, seja manuscrita ou industrial, mas nas relações estabelecidas entre as palavras. Daí poder-se recitar um poema. Mas como separar uma escultura de seu substrato? Ela é o seu substrato. Uma escultura, portanto, pode ser de fato possuída, possuída em si mesma, ao contrário de um poema. Daí não haver ou ter havido um Damien Hirst na poesia – mas haver incontáveis Damien Hirst nas artes plásticas.

Daí o equivalente aos Damien Hirst na literatura não serem os poetas, mas os autores de best sellers. Damien Hirst está para as artes plásticas como Paulo Coelho para as linguagens verbais. Mas como Damien Hirst vende originais, enquanto Paulo Coelho vende reproduções, isto explica a diferença de mercados. Um vendedor de reproduções como Coelho, para ganhar muito dinheiro, precisa de um mercado de massas, a fim de poder vender suas reproduções em massa. Um vendedor de originais como Hirst não precisa de um mercado de massas, mas ao contrário.

Daí a literatura best seller se afastar da arte para se aproximar do entretenimento – do que a poesia é incapaz –, enquanto as artes plásticas inseminadas pelos cidadãos pagantes se afastam da arte para se aproximar do investimento – daí aparecerem ao lado de imóveis, carros e jóias.

Naturalmente, nem todo artista plástico contemporâneo alcança os preços de Hirst. Na verdade, nenhum. Daí ele ser o número 1. Mas seu caso é apenas o mais exuberante. O fenômeno geral é verdadeiro: as artes plásticas encontraram a resposta para a indiferença dos cidadãos pensantes no interesse dos cidadãos pagantes.

O fato torna-se ainda mais claro em uma perspectiva histórica. Desde a Renascença, fez-se necessária a presença da burguesia, sem a qual sequer existiria a arte moderna. No entanto, a princípio isso nada tinha a ver com a comercialização de uma obra, e sim com as condições de sua criação, que era o significado do mecenato – neste sentido mais próximo dos ateliês de ofícios do que das galerias.

A diferença fica evidente por haver, no caso do mecenato, uma relação de causa e efeito direta e fundamental: sem o apoio dos Médici, ou não haveria a obra de Michelangelo ou ela seria diferente, e com certeza, não para melhor. O mesmo não vale para a comercialização – ainda que muitos artistas plásticos pretendam hoje que sim. Mas ninguém precisa de centenas de milhões de dólares como condição para continuar a enfiar animais mortos em tanques com formol.

O mercado, na verdade, não viabiliza a criação, mas sim o sentido social da criação. E esse sentido social, ao fim e ao cabo, limita-se, hoje, à própria inserção mercadológica. Não são, portanto, os Damien Hirst que criam o mercado. O mercado cria os Damien Hirst. Assim, um tardo-diluidor (daí provavelmente usar formol) da arte conceitual como ele existe, ou seja, é selecionado para crescer e se multiplicar, porque é preciso alimentar todo um mercado estabelecido (o verdadeiro significado de establishment), que inclui das galerias e casas de leilão à mídia e serve, ao fim e ao cabo, para suprir os cidadãos pagantes, que querem um investimento de status. Como o mercado é, a um só tempo, proteico e insaciável (um mercado saciado é um mercado extinto), não só aceita tudo como precisa de novos tudos todo o tempo, ou deixaria de existir. É por precisar de novos tudos todo o tempo que, na verdade, aceita tudo, incluindo cadáveres de tubarão em formol.

Mas por que, afinal, Damien Hirst? Por nenhum motivo em especial. Daí, mais uma vez, sua arte ser irrelevante. Daí poder ser, mudando apenas o número de zeros à direita (a depender, entre muitas variáveis, da intensidade da presença do artista na mídia, de seu poder de “controvérsia”, de seu país de origem etc.), um “pop naif” (!) como Romero Brito (darling de inúmeras “celebridades” norte-americanas) ou um estetizador do kitsch como Vik Muniz.

Se Andy Warhol pintou fotos de Marylin Monroe, integrando cinema e pintura, pop e arte formal (= “contemporaneidade”), ao mesmo tempo pretendendo dizer que Marylin era a nova Mona Lisa, Muniz “redesenhou” uma foto de Elizabeth Taylor com diamantes. Muniz, pequenino Damien Hirst ascendente do mercado nacional, manipula várias referências, de Warhol a Archimbold, passando pelo maneirismo e a assamblage, sempre (e somente) através da estetização e da diluição. Tudo que pudesse ter alguma força na origem, em suas mãos vira “estética”. Enfim, um liquidificador dentro de uma butique. O que não é, apesar das aparências, muito diferente de um tubarão dentro de um tanque de formol.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).