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O primeiro capítulo Introito impessoal do novo livro de Marcelo Tápia (Ascenções e descensos – Ed. Madamu, 2025), que reúne cinco poemas no subtítulo de HARMONIA, tem o poema ACORDE como sinal dos tempos:
ACORDE
O dia estava tão vívido
que não os desolaria
saber que era o derradeiro:
sol soberbo, céu cerúleo.
Da sola dos pés aos olhos
voltados ao infinito,
sem mirar em seu futuro,
os corpos vibravam notas
livradas de seus conflitos.
Talvez por seu espírito, ACORDE lembrou-me o poema O ANJO que o poeta russo Lermontov (1814-1841) escreveu quando tinha 17 anos e que, com razão, foi considerado, como este de Tápia, uma obra brilhante. Fala de um anjo que à meia noite, cantando uma música celeste, desce à terra carregando nos braços uma nova vida. No mundo de lágrimas e dor ela nunca esquecerá essa melodia e não a trocará por nada.
O ANJO
Mikhail Iúrevitch Lérmontov
No céu da meia-noite o anjo voava
e um canto silente cantava,
E nuvens e estrelas e o claro luar
ouviam-lhe esse santo cantar.
Da glória cantava das almas sinceras
sob tufos de níveos canteiros,
Do deus poderoso cantava e suas loas
fingidas não eram, ou à toa.
Levava nos braços uma alma pequena
ao mundo de mágoa e de pena.
E o som de seu canto jamais se perdeu –
na alma, sem fala, viveu.
Por muito no mundo a alma penou
mas cheia de desejo ficou,
Mudar não puderam os vis sons terrestres
o prodígio dos cantos celestes.
(1831)
Ангел
По небу полуночи ангел летел
И тихую песню он пел;
И месяц, и звезды, и тучи толпой
Внимали той песне святой.
Он пел о блаженстве безгрешных духов
Под кущами райских садов;
О боге великом он пел, и хвала
Его непритворна была.
Он душу младую в объятиях нес
Для мира печали и слез,
И звук его песни в душе молодой
Остался, – без слез, но живой.
И долго на свете томилась она,
Желанием чудным полна;
И звуков небес заменить не могли
Ей скучные песни земли.
(poemas cedidos pela Editora Kalinka)
De fato, não apenas o ACORDE , mas o livro inteiro de Tápia é um balanço da existência terrestre de uma vida que de nova se torna velha, em suas ascensões e descensos, admiravelmente descrita em ritmos que vão das redondilhas maiores aos decassílabos heroicos e aos versos rimados da narrativa fabular minuciosa (ekphrastikós), existência essa que o leitor acompanha na sequência anunciada pelo título, confirmada pelas corujas de olhos verde-amarelos – um dos emblemas do livro – e reiterada em todos os poemas.
Vou seguir aqui a lição de Marjorie Perloff, nessa resenha que também é uma homenagem póstuma a ela: para se entender um texto poético – dizia ela –, é preciso acompanhá-lo intimamente, linha por linha, com pequenos trechos – amostras de sua arte – que se encaixarão no mosaico final, em que o leitor poderá fruir em anteprima – se quiser – as promessas que se cumprirão depois, na leitura final da obra.
Em primeiro lugar, vejamos como o livro é organizado. Ele divide-se em quatro capítulos, cada um com subcapítulos: Introito impessoal, Terceira Pessoa, Segunda Pessoa, Primeira Pessoa. Aqui vai o índice, lembrando que cada subcapítulo abrange vários poemas, alguns dos quais iremos comentar:
SUMÁRIO
Introito impessoal
HARMONIA
SOLIDÕES
Terceira pessoa
TRÍADE TERRENA
CLARO-ESCURO
OLHOS DE CORUJA
TRIO DE VOZES
DIVAGAÇÃO – PALINODISSEIA EM CANTO ÚNICO
Segunda pessoa
TU ÉS TUDO – SÚPLICA AOS ELEMENTOS
IMPROPÉRIOS
Primeira pessoa
À CATA DO CANTO
LAVRA EMULATIVA
LANCE DE SOMBRAS
BAÚ DE PERDIDOS – VERSOS DO AFETO INFANTE
SENTENÇAS DOS SETENT’ANOS
Posfácio de Leonardo Antunes
No Introito impessoal, depois do poema ACORDE que já foi visto, aparece UVAIAS, a iwa’ya indígena, com seu fruto agridoce, lembrança da infância, que gente indiferente acha que não serve para comer, isolada da velha casinha onde, entre quarto e cozinha, transitam os espectros.
Em seguida vem PEDRA DURA:
…
Amálgama do alto e do baixo,
testemunha as miríades de aves
pelas seculares passagens
aladas entre sorte e acaso.
e
ALEGORIA DA LINHA, onde
…
A linha ora se afrouxa,
ora se estica ao máximo,
entre o extremo de baixo
e o limite do alto.
Conforme pode ser visto, nos poemas, começa a notar-se a grande tensão vida-morte expressa em diferentes polaridades: baixo-alto, sorte-acaso, pessoa-espectro…
Mas, findo o Introito Pessoal, o que haverá na TRÍADE TERRENA da Terceira Pessoa?
Nesse subcapítulo – que alude à estrutura triádica da Divina comédia, de Dante – aparece um terceiro elemento da escala, talvez o mediador:
Na entrada da Sé, no cume da escada, a Ascensão, no plano da escada, o Purgatório, e abaixo, o Tártaro claro de indizível tristeza.
Até que, em CLARO-ESCURO, surge uma luz tênue: a personagem empunha o lápis … e afasta os fantasmas!
LUZES:
…
Súbito um papel
torna-se luz tênue
sobre a escrivaninha inerte,
e ela relembra, de cor,
o escrito na tela
do computador
…
Não mais se exporia
nas redes antissociais,
a crueldade humana
não a tornaria mais,
essa vida insana,
sua alma jazia
num corpo apagado.
Mas aquele papel claro
com sua luz tão pouca
a fez empunhar o lápis
e traçar o sol
de um aberto páramo,
vasta aparição que expulsou fantasmas.
Mas eis que em OLHOS DE CORUJA aparece, pela transgressão, o improvável, o misterioso, o imprevisto, o impróprio… “revérberos do universo” nas vistas do poeta:
ATHENE NOCTUA:
O improvável aproveitou-se,
e aconteceu o que se conta:
certa noite ele, num espeto,
transpassou trôpega coruja
…
Desde que comera a ave escura,
seus olhos tornaram-se glaucos.
…
Não mais pôde apagar dos olhos
poderosos o intenso brilho,
nem manter-se longe da mântica,
ignorar cochichos e pistas,
os fados que se abrem aos mochos;
sem sossego sofria, triste,
a pena por provar o impróprio:
o espantoso alcance das vistas.
Segue-se um BREVE FABULÁRIO DE VIDA E MORTE em que comparecem, como Moralidades (as francesas “Moralités”: Bientôt , mystères et miracles furent abandonnés por les moralités, les soties et les farses…” Henri Lavoix 1846-1897), pequenas alegorias com mensagem final, como o de O BRILHO DA GALINHA, em que um viandante faminto escolhe a mais vistosa, A TROCA DA MINHOCA, em que a infeliz não hesita em trocar sua vida longa em terra árida por um dia no humus úmido onde vai ser comida e, finalmente, a FUSÃO DE CORES, em que as duas corujas, a de olhos esverdeados e a de olhos amarelos, uma esperta, outra menos, mas “de destinos enlaçados” pois, “quando chegar nosso dia” querem ir juntas, fundindo as duas cores, fundindo suas diferenças:
…
E não é que a noite funda
deu-lhes chance de se unirem
chegado o dia do fim?
Olhos nos olhos, se viram
refletidas no diverso,
e as imagens do trajeto:
toda a sua lida num filme
projetado entre suas vistas,
fundidas no furta-cor
de uma saudade sublime;
os tons se uniram sem dor
na difusão de suas vidas,
revérberos no universo.
Em TRIO DE VOZES, sempre em poemas narrativos no espírito das Moralidades, é que começa a intensificar-se o apego que Tápia (formado em língua e literatura gregas) tem pelos temas gregos de que ELPENOR, ANTICLEIA e TIRÉSIAS são exemplos (evocados como vozes que falariam ao ouvinte de hoje), mas o mais conspícuo e o que o posfaciador Leonardo Antunes (também formado em grego) considera o mais brilhante dos poemas do livro é a saga que vem a seguir, composta em terza rima impecável: a DIVAGAÇÃO: PALINODISSEIA EM CANTO ÚNICO. Trata-se de uma adaptação contemporânea da Odisseia na qual os protagonistas com nomes monossilábicos (Di, Ti, Pê, Lê …) se referem às personagens da obra de Homero (Odisseu, Tirésias, Penélope, Telêmaco…). Não há guerreiros entre os protagonistas, mas pessoas simples, mesmo paupérrimas, que conservam, no entanto, traços admiráveis de humanidade.
Chega-se assim, na Segunda Pessoa, à SÚPLICA AOS ELEMENTOS, fogo, ar, terra e água, capazes de destruir o mundo, compostos como hinos, com epígrafes que vão dos grandes gregos Empédocles, Aécio, Homero, aos nossos Antonio Carlos Jobim, João Cabral de Melo Neto e Gregório de Matos:
…
Na confusão do mais horrendo dia,
painel da noite em tempestade brava,
o fogo com o ar se embaraçava
da terra e água o ser se confundia…
Os IMPROPÉRIOS são o último subcapítulo da Segunda Pessoa.
Escrito à maneira da poesia jâmbica, é caracterizado pela invectiva, mas sempre contemplando a ascensão e o descenso (aqui o alto e o baixo), o fator construtivo do livro:
REVESES
(palpite cordial)
A vida dá voltas, dizem
aqueles que estão embaixo;
a vida é mesmo assim, dizem
esses que em cima se acham.
Dessa regra não se escapa:
se estar em cima lhe calha,
é melhor não ser canalha,
pra que, se embaixo, lhe caiba
certa consideração:
mas não pense em ter consigo
ninguém, salvo algum amigo,
um leal em um milhão.
Se ascender de novo ao alto,
pode vingar-se no ato
de não jogar o vil jogo:
seja o mesmo o tempo todo.
Se permanecer embaixo,
finja não saber do jogo,
só se fazendo de tonto
sem se tornar cabisbaixo.
Com o último capítulo, chegamos à velhice. Deixo aqui a palavra a Leonardo Antunes, o emérito posfaciador. “Primeira pessoa por sua vez, completará o rol de gêneros abordados pelo autor, incluindo poemas de filiação elegíaca, lírica de pendor grego arcaico e até uma cantiga caipira. Nessa seção, o tema principal, que perpassa a maioria dos poemas, é o da velhice, um topos caro à poesia da Grécia Arcaica. Não à toa vê-se ali menção a Anacreonte, um poeta que, segundo a lenda, viveu até os 80 anos, tendo sempre se mantido ativo na dança, no canto e no amor, mas não sem reclamar da velhice e de seus efeitos, como era comum à poética da época.”
CABELOS ALVOS SÃO O ALVO
Minhas cãs já são mais alvas
que as do grego Anacreonte;
busco não temer, como ele,
a descida ao escuro Tártaro,
querendo o hoje mais que o ontem.
Mas por mais que me concentre
em não me dar por vencido
nem deixar a chã chuteira,
terá sempre quem me lembre,
com ironia ou ar fingido,
de estar perto a derradeira
mão do longo jogo efêmero,
que parece ser bem curto.
Mesmo à beira da partida
culminante no descenso,
ainda enceno algum futuro,
vendo nos cheios de vida
que pelas cãs têm desprezo
um reverso e fundo espelho
refletindo o meu começo.
Concluindo, com o prefaciador: “A variedade de gêneros, formas e temas encontrados em Ascensões e descensos é apenas um dos índices mais evidentes do primor poético de Marcelo Tápia”, alcançado nesse seu novo livro.
Obra poética
Primitipo. São Paulo: Massao Ohno / M. Lydia Pires e Albuquerque Editores, 1982.
O bagatelista. São Paulo: Edições Timbre, 1985.
Rótulo. São Paulo: Editora Olavobrás, 1990.
Pedra volátil. São Paulo: Editora Olavobrás, 1996.
Valor de uso. São Paulo: selo [E] editorial, Annablume Editora, 2009.
Refusões – poesia 2017-1982. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017.
Týkhe – uma quarentena de poemas. São Paulo: Dobradura Editorial / Editora Olavobrás, 2020.
Desviações. São Paulo: Editora Olavobrás, 2021.
Enjoycíada (microépica anímica). São Paulo: Editora Olavobrás, 2022 (edição celebrativa do 35° Bloomsday em São Paulo).