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Assassinato e tortura na era Vargas

Assassinatos com motivação política não foram raros durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945).1 O caso mais gritante foi o fuzilamento de oito participantes do assalto ao Palácio Guanabara em 1938, organizado por militares e militantes da Ação Integralista Brasileira. Os oito tinham sido capturados e desarmados quando foram mortos nos fundos do palácio, como admitiu em suas memórias o general Góis Monteiro (1889-1956). Não houve qualquer investigação sobre o crime. Há referências a assassinatos nas revoltas comunistas de Natal e Recife em 1935 e nas delegacias de polícia, sobretudo na sede da Polícia Central, na Rua da Relação, na então capital da República, e nas casas de Detenção e Correção. Um médico da Polícia Militar, Nilo Rodrigues, por exemplo, disse ao jornalista Vítor do Espírito Santo ter presenciado fatos de alarmar: “espancamentos horrorosos, vários assassinatos dentro da Polícia Especial”. Mas, devido à censura à imprensa, poucos desses crimes vieram a conhecimento público. Quase todos foram abafados nos porões das delegacias.

A tortura de presos foi investigada e descrita pelo jornalista David Nasser (1917-1980), inicialmente em seis reportagens publicadas na revista O Cruzeiro – a primeira delas em 29 de outubro de 1946 – e, depois, em livro de 1947. As publicações foram intituladas “Falta alguém em Nuremberg”. Esse alguém era o capitão do Exército Filinto Müller (1900-1973), chefe de Polícia da capital de 1933 a 1942. Os principais instrumentos de tortura, mencionados em depoimentos no Congresso e registrados por David Nasser, eram: o maçarico, que queimava e arrancava pedaços de carne; os “adelfis”, estiletes de madeira que eram enfiados por baixo das unhas; os “anjinhos”, espécie de alicate para apertar e esmagar testículos e pontas de seios; a “cadeira americana”, que não permitia que o preso dormisse; e a máscara de couro.

Era também prática comum queimar os presos com pontas de cigarros ou de charutos e espancá-los com canos de borracha. Em alguns casos, o requinte era maior. O ex-sargento José Alves dos Santos, por exemplo, teve um arame enfiado na uretra ficando uma ponta de fora, que foi, a seguir, aquecida com um maçarico. Para que os gritos dos torturados não fossem ouvidos fora do prédio da Polícia Especial, um rádio era ligado a todo o volume. Poucos torturados resistiam. Houve quem se suicidasse pulando do terceiro andar da sede da Polícia Central; outros enlouqueciam, como foi o caso de Harry Berger, membro do Partido Comunista Alemão, torturado durante anos juntamente com sua mulher, Sabo. Quase todos guardavam sequelas para o resto da vida no corpo e na mente.

Os acusados eram processados e julgados pelo Tribunal de Segurança Nacional, criado logo depois do levante comunista de 1935, ainda antes do Estado Novo. Após a revolta integralista de 1938, já no regime de exceção, o regulamento do Tribunal foi alterado para apressar os julgamentos e reduzi-los quase a rito sumário, ou seja, sem processo formal. Recebido o inquérito, o juiz dava imediatamente vista ao procurador e citava o réu. O procurador tinha 24 horas para a denúncia. Findo o prazo, era marcada audiência para instrução e julgamento dentro de 24 horas, tempo que tinha também a defesa para se preparar. Em cinco dias, tudo se resolvia. Recurso só era admitido para o próprio Tribunal pleno, cuja sentença era irrecorrível. O Tribunal processou mais de 10 mil pessoas e condenou 4.099.

Apesar da anistia concedida por Vargas em 1945, houve na Constituinte de 1946 tentativas de investigar e punir os crimes cometidos pela polícia política do Estado Novo. O esforço foi liderado pelo general Euclides de Oliveira Figueiredo (1883-1963), deputado eleito pela União Democrática Nacional (UDN) do Distrito Federal e pai do futuro presidente João Batista de Oliveira Figueiredo (1918-1999). Quando coronel, Euclides fora acusado de participação nos planos do fracassado assalto ao Palácio Guanabara em 1938. Julgado pelo Tribunal de Segurança Nacional, foi condenado a cinco anos e quatro meses de prisão, pena reduzida posteriormente para quatro anos e quatro meses.

O general apresentou, em 30 de abril de 1946, um requerimento em que pedia “profundas e severas” investigações no então Departamento de Segurança Pública para “conhecer e denunciar à Nação os responsáveis pelo tratamento dado a presos políticos”. O requerimento foi aprovado, e em maio foi criada a “Comissão encarregada de examinar os serviços do Departamento Federal de Segurança Pública”, presidida pelo senador Dario Cardoso (1899-1987). O general não foi incluído entre seus membros, provavelmente por ser incômodo aos que tinham alguma vinculação com o regime deposto.

A Comissão deu em nada. Raramente havia quórum para as reuniões. As denúncias de crimes foram parar no arquivo da Casa. A Constituinte encerrou as atividades em setembro de 1946 sem que chegasse a conclusões concretas. Em 7 de novembro, já em sessão ordinária da Câmara, o general, inconformado, requereu a instalação de nova comissão. Argumentou, segundo os Anais da Câmara, que a matéria não era “daquelas que podem ser esquecidas. Trata-se de fazer justiça, descobrir e apontar os responsáveis por crimes inomináveis, praticados com a responsabilidade do governo”. Acrescentou ainda: “As grandes nações democráticas que fizeram a guerra ao totalitarismo já julgaram e executaram os responsáveis pelos horrendos crimes contra a humanidade. Nós também tivemos criminosos, não de guerra, mas de paz, de plena paz, e contra brasileiros. Talvez fossem eles os precursores dos nazistas. Convém não perdoá-los [sic] de plano. Importa, igualmente, que os julguemos. Para julgá-los, importa conhecê-los”. Euclides mencionou a reportagem de Nasser publicada na revista O Cruzeiro. Terminou o discurso com um apelo aos deputados: “Ao menos se conheçam os responsáveis pelas barbaridades […] a fim de que outros, que possam vir mais tarde, tenham receio de ver ao menos seus nomes citados, como desejo que sejam conhecidos os daqueles bárbaros que tanto maltrataram o povo do Rio de Janeiro, da capital da República, de todo o Brasil!”.

Jornal do Brasil noticiando o golpe de 1937
Jornal do Brasil noticiando o golpe de 1937

Foi instalada a nova comissão, agora chamada “Comissão de inquérito sobre os atos delituosos da ditadura”, presidida pelo deputado Plínio Barreto (1882-1958). Novamente, Euclides Figueiredo não foi indicado para integrá-la. Mas, tendo desistido o deputado Aliomar Baleeiro (1905-1978), passou a fazer parte dela e foi um de seus membros mais atuantes. As atas atestam sua assiduidade nas reuniões. Várias pessoas foram chamadas a depor, umas como vítimas de tortura–como o então senador Luiz Carlos Prestes (1898-1990) e o próprio David Nasser–, outras por terem sido acusadas de torturadoras. Quase todas as denúncias se referiam a maus-tratos sofridos na Polícia Central, na Polícia Especial, na Delegacia de Ordem Política e Social e na Casa de Detenção. Os principais acusados eram Serafim Braga, chefe da Dops, o tenente Emílio Romano, chefe do Departamento de Segurança Pública, o tenente Euzébio de Queiroz, chefe da Polícia Especial, e o policial Alencar Filho, da Seção de Explosivos da polícia.

Um dos depoimentos mais dramáticos foi o de Carlos Marighela (1911-1969), deputado pela Bahia do Partido Comunista do Brasil, dado em 25 de agosto de 1947. Ele descreveu várias torturas que sofreu ou que presenciou. Entre elas, espancamento com canos de borracha, aplicado na sola dos pés e nos rins, queimaduras com pontas de cigarro, introdução de alfinetes por baixo das unhas, arrancamento das solas dos pés ou de pedaços das nádegas com maçaricos. Em se tratando de presas, costumava-se introduzir esponjas embebidas em mostarda em suas vaginas. O general Figueiredo, que fora companheiro de prisão de Marighela, considerou a declaração o ponto culminante dos trabalhos da Comissão. Em seu depoimento, o jornalista Vítor do Espírito Santo disse ter ouvido do médico Nilo Rodrigues que nunca tinha visto “tanta resistência a maus-tratos e tanta bravura” como as demonstradas por Marighela.

Aos poucos, esta segunda Comissão também começou a ratear. O fenômeno acentuou-se após o depoimento do capitão Emílio Romano, em junho de 1948. A partir dessa data, não há mais referência a suas reuniões no DiáriodoCongresso. Em 24 de setembro, ela deixa de ser relacionada. Aparentemente, encerrou as atividades sem apresentar relatório. Uma das razões para o fato pode ter sido o depoimento do jornalista Vítor do Espírito Santo. Segundo ele, o médico Nilo Rodrigues dissera-lhe que não faria denúncias porque “as pessoas que se encontram no poder são as mesmas que praticaram as mencionadas violências”. Ao que o general Euclides Figueiredo acrescentou: “E as que fazem parte da Polícia Especial também ainda são as mesmas”.

Artigo republicado com autorização da Revista de História.

Julgamento do Tribunal de Segurança Nacional em 1937
Julgamento do Tribunal de Segurança Nacional em 1937

O TSN foi um tribunal de exceção criado em 1936 por Getúlio Vargas, com o objetivo de julgar os partícipes da Intentona Comunista e membros da ALN. Segundo informe da FGV, 1.420 pessoas foram sentenciadas pelo TSN de setembro de 1936 a dezembro de 1937. Com o novo golpe aplicado por Getúlio em 1937, o TSN tornou-se órgão permanente, desvinculado do Superior Tribunal Militar, e passou a ter jurisdição autônoma, passando a julgar todos os que se opunham ao governo de Vargas. Possivelmente essa foto é do meio do ano de 1937. Arquivo Andre Decourt.

Notas

  1. Carlos Drummond de Andrade foi durante onze anos chefe de gabinete de Gustavo Capanema, de 1937 a 1945.

Bibliografia

  • Anais da Constituinte e da Câmara dos Deputados, 1946.
  • Diário do Congresso, 1947.
  • CAMPOS, Reynaldo Pompeu de. Repressão judicial no Estado Novo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.
  • NASSER, David. Falta alguém em Nuremberg. Torturas da polícia de Filinto. Rio de Janeiro: J.Ozon, s/d.

 Sobre José Murilo de Carvalho

É professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Forças Armadas e política no Brasil (Jorge Zahar, 2005).