Se existe um destino histórico na poesia que se escreve na América Latina hoje, esse destino é o da transformação. Pode-se, entretanto, argumentar com o contrário: o destino da poesia latino-americana é o da conservação. A primeira proposta sustenta-se no convencimento de que a característica da poesia moderna é a transformação, a mobilidade, a mudança de aspecto frente a uma presença histórica que a conclama para que “esteja à altura do tempo”. Essa é uma condicionante histórica, para a poesia. A contra-argumentação encontra sua justificativa básica na crença de que a poesia é uma entidade estável, essencialmente estável. Apenas um argumento comprovado é válido para justificar o início de uma reflexão sobre a poesia latino-americana atual nesses termos: a coexistência de diversos modos de produção poética que coabitam sem explicação, e aparentemente sem perturbação, em nossa poesia. Será que essa vizinhança fraterna é verdadeira? Não seria ela sintoma de algo como uma tolerância formal que esquece toda discórdia surgida, por diferenças tão somente de “apresentação” dos objetos poéticos? O que ilustraria esta postura “sem discussão” sobre os fenômenos poéticos “de fato”? Não se trata, obviamente, de negar o que existe para impor uma possibilidade alternativa, uma possibilidade outra que não parece estar em circulação, mas que existe em algum lugar; alguma coisa que, de modo formal e conceptual, pudesse rebater o fenômeno de fato a partir de uma espécie de utopia em conserva,não enquanto resíduo, mas enquanto continuidade paralela daquilo que foi pensado outrora – e que não aparece porque não aparece, tendo portanto seu ocultamento uma ressonância, por assim dizer, de mistério – e já não tão escondido, mas que ainda não chegou a seu momento de aparecer. Pessoalmente não creio que esta jubilosa oportunidade de banimento expectante exista realmente. Não em nossa época: um momento histórico em que o que pode aparecer aparece sem reservas, sem deixar nada para depois, e gasta seu capital não em voo: no vazio do voo de uma borboleta que passa, que agita o ar. Tratar-se-ia, ao contrário – e é nisso que estou pensando, neste texto – de repropor certas problemáticas fundamentais para uma mais justa percepção de nossa poesia, aquela capaz de reconhecer, nesse momento histórico-poético, certo desajuste em relação a seu próprio devir, ou – de forma menos arrogante –, algumas razões que expliquem o rebaixamento do nível estético dos produtos poéticos que se escrevem já faz uns vinte anos; “rebaixamento” – assim é considerado o conceito que diz respeito à produção poética latino-americana empreendida desde o início da década de 1980.Algumas das referidas problemáticas seriam: 1) – a negação e o repúdio, por parte de amplos setores da poesia latino-americana, de motivos e práticas relacionados com tudo aquilo que se denomine ou se considere estar sob o peso histórico-estético da ideia de vanguarda; 2) – a negação – na prática – desse momento essencial da arte do século XX, sem o qual é impossível a formulação de uma discussão mais ou menos séria sobre a arte e seus gêneros, discussão essa que ganha maior peso em seu próximo passo: a reabsorção de um passado poético que não representa um conflito nem para a arte, nem para a poesia, mas sim uma tábua-de-salvação diante da “ruína da arte”; 3) – a assimilação desse movimento duplo (negativo e de reabsorção) a certos parâmetros mais amplos de questionamento da ideia da modernidade estética, enquanto necessidade de uma arte modificadora, em relação à tradição, questão particularmente difícil de ser colocada, uma vez que remete a discussão ao terreno hegeliano-ocidental do pertencimento da arte, ou mais especificamente, da morte da arte, considerada do ponto de vista de sua inoperância moderna; 4) – a consideração, no meu entender muito necessária, de uma década de virada, na metade do século XX – a dos anos 50 – como a década da redistribuição das energias poéticas, em jogo na primeira parte do século, mas também nas outras.
1. Significado de uma rejeição
A ideia de vanguarda artística não é uma ideia isolada. Ela comporta uma ideia maior, que a abarca: a ideia de mudança, de transformação social. A arte de vanguarda, na medida em que não ocorrem no social as transformações que deram origem a ela, cai em contradição: é uma arte nova para um tempo “velho”, uma arte revolucionária para um homem sem mudança revolucionária. Poder-se-ia discutir aqui o tema da arte de vanguarda soviética nos primeiros anos da revolução de Outubro. Porém, com o advento de Stálin, qualquer discussão é cancelada. A contradição mencionada soma-se ao paradoxo representado por esses repertórios artísticos que voltam [segundo os que rejeitam a vanguarda] à ordem da arte tradicional. São formas que surgem de uma transfusão niilista-finalista do século XIX, a partir da demanda da “verdade” da arte, demanda essa que só possui explicação a partir da existência do Iluminismo europeu. A arte de vanguarda leva ao limite a noção da arte moderna, que mantinha um pé na tradição. Se uma arte nova, que se ajusta ao presente pela negação de uma arte anterior, tradicional ou “velha”, é capaz de coexistir com essa arte a qual nega, só pode fazê-lo no âmbito de um museu ou de uma instituição colocada acima da própria arte, que reificará a totalidade artística sob o mesmo signo. Ou então, no seio de uma sociedade ocidental que tenha deixado de lado a ideia de definir-se pela arte que vive, produz e consome, como na modernidade do século XIX. Ou, finalmente, como possibilidade pouco provável, abandonando a noção do “novo” como pedra de toque para a articulação da modernidade e seus devires. Em sendo assim, a arte de vanguarda sofre o fechamento simbólico do ciclo vanguardista por volta de 1930, uma rejeição de intensidade semelhante, mas de sinal oposto, tanto de seus antigos acólitos quanto de seus inimigos tradicionais. Os primeiros, por um desencanto em relação ao que a prática vanguardista carrega consigo, como o esgotamento de processos criativos de busca. Não apenas os processos: os léxicos, a ideologia, o destino dessa arte e sua posição frente ao social entram em crise.
Do lado da recepção não é difícil encontrar os lugares onde triunfa a auréola do renegado. O lugar da frente é ocupado pela “confirmação” da vanguarda como “mau momento” da arte ocidental, espécie de aval conservador da tradição pré-vanguardista – negando ou mesmo aceitando a ideia de modernidade na arte, coisa que não deve ser confundida com a prática da vanguarda, que enfrenta, em seu momento climático crítico, a ideologia moderna, e a enfrenta pelo impulso teórico que tenta dissolver o conceito de arte como entidade aurática para o consumo de certos grupos sociais, ou seja, aquilo que Burger chama de “ dissolução da arte na práxis social”.
Do lado da poesia, a verificação de que a revolução formal da vanguarda sem revolução social acaba em algo sem sentido coloca uma pergunta devastadora quanto à pertinência das diferentes transformações na sintaxe, na temática, no gênero, e chega a seu coroamento com a ideia de que a vanguarda literária põe a perder o que ganhou em séculos de construção formal – digamos, a partir da Renascença. O mais forte, porém, é aquilo que ataca o nível do sentido. Descobre-se nas perguntas formuladas: para quê uma poesia que rompa com uma ideia de trascendência? Para quê uma poesia que aceite o imprevisível? Para quê uma poesia que privilegie a forma do que transmite? Esses são argumentos de rejeição disfarçados de perguntas. Porém, o que realmente se rechaça é algo mais drástico e profundo: rechaça-se a negação de sentido que a vanguarda realiza – especialmente no Dadá – tomando o sentido como base da sujeição do indivíduo e de grupos de individuos à órbita de uma prática de poder enquanto domínio. O dizer poético posto em dúvida pela vanguarda é inaceitável aos olhos dos oficiantes da rejeição. É inaceitável porque a poesia, sucedânea secularizada de uma designação religiosa, é, para a consequência da rejeição, uma afirmação tout court. Ainda vivemos espaços de certeza quanto ao que não apenas a poesia é, mas ao que deve ser. Este “quê” não varia muito com o tempo histórico: para esta posição a poesia sempre é igual a si mesma. E a contradição colocada é a seguinte: a poesia permanece sempre idêntica a si própria, mesmo que sua forma mude. Como viram Jorge Luis Borges e José Angel Valente, a definição estável do que a poesia resulta ser, na prática, é aquele aforisma de Angelus Silesius: “(A rosa) não tem porquê. Floresce porque floresce”.1 A identidade em si mesmo do signo poético ocupa o lugar da Criação de Deus. Apareça onde for e sob a forma que for. Aprofundar este tema nos levaria à problemática que propõe o romatismo alemão e que se cifra na pergunta de Hölderlin: “Para quê poesia em tempo de miséria”?. Ou em uma sua outra vertente: “E para quê poesia em um tempo sem deuses?”. A pergunta de Hölderlin certifica, em sua forma e em seu conteúdo, a passagem da poesia como afirmação à poesia como dúvida, instabilidade e com sentido aleatório.
2. Mito do passado aurático
A rejeição à poesia de vanguarda tem formas distintas. Do ponto de vista da poesia tradicional, Trilce (1922) de Vallejo, livro fundamentral da primeira vanguarda latino-americana, pode ser rejeitado como articulação poética do texto, ou seja, como aquilo que está acontecendo ali, no livro: rejeição àquilo que ali mesmo se chama “poesia”. Não implica rejeição à concepção poética subjacente no texto. O que se recusa é a práxis poética momentânea deste falante que arma o texto, não necessariamente a teoria. Não se rejeita necessariamente César Vallejo, nem tampouco o Vallejo desse momento, que se restabelecerá aos olhos do leitor, mais adiante, com Poemas humanos (1939). Não implica rejeitar a concepção teórica porque a arte, do ponto de vista do receptor, é rejeitada ou aceita “em objeto”, ou seja, enquanto “coisa que está ali” e não enquanto significado teórico ou concepção artística que represente. Isso é importante porque marca uma contracorrente vital para a questão que nos ocupa: o problema teórico que a vanguarda sustenta, e sem o qual nada é possível enquanto debate sério, é uma prática insistente da modernidade pós-iluminista e consiste no fato de contar com o discurso teórico como recurso de inteligibilidade da obra de arte. Não é uma prática consubstancial à arte clássica, nem à renascentista, por exemplo. O discurso teórico, obviamente, não melhora a obra. No caso das obras que se apoiam num discurso teórico para sobreviver, não demora muito vê-las caírem fora da noção de obra como mundo fechado, como representação autoabastecida. O conceito de obra aberta de Umberto Eco2 pode prever um lugar para o discurso em sua própria abertura. Porém, implica uma noção oposta à de obra: tratar-se-ia de uma inconclusão da obra cujo final seria impredizível, ou – ao menos – não único: em geral, as obras abertas propõem vários finais. O que se põe como problema nessa noção próxima a uma “anti-obra”, que a obra aberta propõe, é o conceito de arbitrariedade da arte, ou seja, a desconstrução da ideia de obra como algo planejado (designado), único objeto possível em um universo de possibilidades, nenhuma das quais se ajusta ou se adapta à verdadeira forma que é a que se escolheu. Esta fatalidade da forma justa é o que subjaz, ideologicamente, atrás das colocações de rejeição à arte de vanguarda – arbitrária, paradoxal, não unívoca em sua formalização, com finalidade duvidosa e destino incerto – e é algo ideológico, ou seja, aplicado como verdadeiro a uma realidade falsa, uma vez que implica uma noção que retoma ciclicamente sua aura no Ocidente, a noção de tempo, e logo em seguida, no meio dela, a grande aurática da queda das certezas do porvir: o passado. Esse viés ideológico que a rejeição histórica das vanguardas possuía – daí a tentativa de encerrar seu ciclo nos anos 1930 –, que se produz quase imediatamente junto com sua operatividade eufórica e à medida que [as vanguardas] declina[m], ficará rubricado como apoteose da verdadeira queda, não da arte, mas da “grande promessa” do socialismo soviético que, para alguns, trai a ideia de utopia encarnada naquela realidade.
A tensão para o futuro não se dobra (não se retrai) exatamente sobre sua própria intensidade de inversão. Basta que se dilate o tempo que se apostou como sendo o do futuro. Num efeito concêntrico, o espaço adjacente se alarga e a quebra da seta do futuro se converte na habilitação de todos os espaços, na criação de um mesmo âmbito de convergência. Esta fantasia de intemporalidade, de “está tudo aqui” se produz graças ao confronto entre um imaginário desejante de uma “consolação” diante do fracasso desse futuro auspicioso de transformação (combatendo contra a qual muitos dos desconsolados podem haver perdido o melhor de sua vida) e a realidade de um presente que não oferece muitas perspectivas reais, nem para aqueles que aprendem a viver o tempo caótico do presente sem alternativa. A ruptura do equilíbrio bipolar não elimina um polo: concentra seus efeitos – como contradição – no polo que sobrou, que deverá dar um jeito de integrá-la como parte de sua engrenagem e como parte constitutiva de seu próprio devir. O passado, então, esse passado aurático que atrai a poesia aurática que foi buscada pelo desconsolo da perda do futuro, adquire uma dimensão fictícia e ilusória. Pretende-se revivê-lo através de uma revalorização (culposa, por sinal, na medida em que o pacote da tradição entrava em questionamento no momento climático moderno) de sua produção simbólica (é a arte, ou melhor, a visão estética do passado que o recarrega de energia) que vem a jogar como força estabilizadora do presente frio, que entrega a vivência de um mundo sem esperança de transformação. Apenas a estetização do pasado torna possível compreender como a rejeição de uma arte – ou de uma antiarte – a arte de vanguarda, que se está (des)construindo diante do receptor, conduza à revalorização de uma arte já vivida.
Essa arte já vivida – a arte clássica, o barroco, a arte moderna até sua crise – se torna “a arte verdadeira” (verdadeira em relação à arte do presente, em estado convulso) porque, nessa volta, adquiriu (ou readquiriu) a dimensão dos dois ou três valores-chave da arte tradicional: a duração no tempo, a capacidade de trascendência, a simbologia que obtivera de um diálogo entre o homem e a eternidade, três vetores de um idealismo filosófico que volta à cena com sua figura consentida: o mito. Chegados a este ponto, caberia perguntar: como é possível esse retorno todo do mito? E a resposta não está no discurso, mas nas livrarias, abarrotadas de uma multiprodução de livros sobre o mito. Deve ser notado que a nostalgia do mito, revivida como se pode (ou seja: mediante uma hiperprodução de discursos e objetos relativos ao mito), comporta o mesmo desejo de verdade da poesia que ficou na soleira do século XX, um momento antes da vanguarda e de seu convite à dissolução. Sem dúvida, o que constitui a arte de vanguarda enquanto projeto de transformação, começa – precisamente – com o pedido de “verdade” da arte e na arte. O mito não admite que se peça pela verdade. O mito admite apenas sua aceitação enquanto discurso. Sua capacidade de sobrevivência atua sob o imperativo da positividade. Alain Badiou explica essa precipitação característica do século XX, precisamente por aquilo que ele chama de “paixão do real”.3 A “ paixão do real” é – para Badiou – a necessidade que tem o homem do século XX, de extremar sua relação com a própria matéria do acontecimento, como se o que fora vivido no século XIX o tivesse levado a uma situação de ansiar por extremos, de ansiar pelo acontecimento e pela matéria, uma necessidade de tornar concreto o que foi pensado e imaginado no século anterior, até o limite. A vontade de remitologização e a estetização do passado que se produzem quando cai a projeção futura de uma mudança na ordem social representariam, por sua vez, um afastar-se desse desejo de limite do homem do século XX, uma fuga do extremo, um apagar dessa “paixão do real”. O que levaria à suspeita de que ambas as remissões – mito e passado estetizado – não estariam respondendo a uma saturação produzida no homem por seu contato demasiado próximo com a verdade e com a realidade. Mito e estetização são mediações. O que teria havido desde o século XIX e que alcançou maior profundidade no século XX é a ausência de figuras de mediação, um vazio de mediações. A necessidade de carregar o passado de uma nova aura – operação certamente muito improvável –, aliada a um presente que não pode abrir mão de seu destino de novidade, configuraria a operação geradora de uma nova mediação.
3. Como a rejeição à vanguarda questiona a modernidade artística
A colocação em crise – ou contradição, ou ruptura –, realizada pelas vanguardas estético-históricas, provém de um devir artístico-estético propriamente moderno, em seu modo de articulação. A poesia do século XIX, muito especialmente certo romantismo – o alemão, sem dúvida, e o inglês –, e os poetas simbolistas são a pedra de toque de uma dinâmica de rupturas sucessivas que não se deterão. Para não chover no molhado e evitar o risco de cansar, podemos limitar-nos a dizer que o horizonte de consumo do século XIX está em xeque – o horizonte burguês consumidor de arte, para sermos precisos –, porque onde os movimentos operários estão em plena articulação a burguesia ocupa, sem dúvida, o domínio dos espaços de produção e de exercício do poder institucional. Ela ocupa também o espaço de demanda e de consumo de arte. Qualquer que seja a forma escolhida para suas obras, os poetas românticos têm também como objetivo permanente a crítica ao pensamento e ao modo de vida burgueses. Hölderlin pode, ao mesmo tempo, ser um revolucionário (isto é, alguém que assume os ideais jacobinos da Revolução Francesa), um idealista pró-clássico, defensor de um novo reino mitológico, e um antiburguês. Para continuar, há alguns anéis da cadeia que mudam o registro funcional da arte e que permitem falar de seu fim. A arte era criada para a consciência e os cinco sentidos da burguesia, e a crise da arte se produz no momento em que o artista recusa esse vínculo. E no momento em que recusa esse vínculo, sua arte o ressente em toda sua forma e conteúdo. Nesse ressentimento a arte esgota sua possibilidade última. Em um mundo europeu em que o niilismo se potencia (lembramos que Hölderlin o havia sintetizado na seguinte pergunta de sua elegia “Pão e vinho”: “e para quê poesia, em um tempo sem deuses?”),4 em plena euforia industrial, com os movimentos operários ajustando a mira contra a burguesía e com a consciência infeliz dos artistas – Rimbaud e Mallarmé levam, nitidamente, a crise da consciência pessoal de uma classe à crise da consciência poética de toda uma época – fala-se em “fim” ou “morte da arte”. Nesse conceito nodal da estética do século XIX se conjuga a problemática estética da modernidade pós-iluminista e se abre o horizonte para o surgimento das vanguardas estético-históricas das primeiras décadas do século XX. Este é um conceito suficientemente amplo para abarcar alcances mais gerais do que os propriamente artísticos.
O conceito de “morte da arte” não pode ter outra possibilidade efetiva de operatividade a não ser a de uma revolução na produção social e na consciência humana. O homem – o homem moderno, para sermos claros – não pode deixar de reconhecer-se em sua própria produção simbólica. A arte é sua garantia de humanidade. A metáfora dessa garantia, dessa identidade, alcançaria sua dimensão efetiva numa grande transformação social. “Dissolver a arte na práxis social”,5 a grande tese dos movimentos de vanguarda estético-históricos, segundo Burger, quer dizer o seguinte: a possibilidade articulada em uma transformação radical de viver a arte na dinâmica social e já não criar arte para o consumo à parte da consciência individual. De modo que a concepção de um “fim da arte” é o começo de uma nova era, o despontar de um novo homem. A análise dessa responsabilidade contraída em relação ao futuro por grande parte da arte e do pensamento ocidentais é algo que pode lançar alguma luz sobre a situação em que se encontra sobrevivendo a arte atual. Se o último grande relato filosófico total, o idealismo alemão hegeliano, marca uma arte que toca seu fim, apenas um pragmatismo sem destino, como o que vive a humanidade atual, pode fazer ouvidos moucos a essa advertência – que, mais do que uma aniquilação da ideia de arte no Ocidente, parece ser a demanda de sua colocação em crise, e do reconhecimento dessa crise por parte da própria arte – e habilitar a existência múltipla de repertórios artísticos com o mesmo valor e o mesmo sentido. A multiplicidade de repertórios que interagem cria a ilusão de um estado de saúde artística difícilmente melhorável. Essa mesma multiplicidade atua como antídoto contra essa “morte da arte” que é, igualmente, utilizada como álibi para a hiperprodução. Com efeito, não apenas é comprovável a quantidade de repertórios habilitados para a produção da arte, como também é notável a quantidade de obras produzidas. A explicação da coexistência formal que existe na arte atual deve ser procurada na necessidade de um mercado voraz, de uma oferta devastadora de material artístico e da geração da necessidade de consumo indiscriminada e acrítica. O mundo que se deleita com a arte o faz como se estivesse se deleitando com o fim do mundo. O olvido produzido na consciência das multidões atuais não permite sequer certa palpitação nostálgica. E os discursos sociais alternativos, no que se refere ao estado do mundo atual, reenviam o discurso filosófico hegeliano-idealista do século XIX – uma das origens teóricas das vanguardas, via o conceito de “morte da arte” – a uma simples colocação geográfico-civilizatória: o fato de se assinalar o discurso crítico da arte como “eurocêntrico”, ou seja, “dominante”, longe de aclarar o problema ou contribuir para sua melhor compreensão, não permite mais do que virar uma página da problemática estético-artística de uma civilização. A pergunta que pesa sobre a cabeça de toda obra de arte atual é: pode a arte viver sem a memória de seu próprio devir?
A poesia pareceria escapar da pergunta pelo fato de a palavra estar comprometida com a memória, à margem de seu estatuto criativo enquanto linguagem. Cria-se, então, um paradoxo, no simples fato de se escrever poesia, que oficia como ato de suficiência ética e estética; a palavra torna a repor, uma vez e outra, a memória excluída e a beleza do mundo. Como se aqui nada se tivesse passado. Quando, na realidade, passou-se – e continua se passando – de tudo. Não se escapa da mentalidade totalitária dos começos do século XX traduzindo, no início do século XXI, totalidade por multiplicidade. Sobretudo quando, na prática sistematicamente bélica e na ideologia dominante do sistema atual, a ameaça das guerras totais latentes se individualiza em casos concretos, para voltar, logo em seguida, à ameaça da totalidade em guerra. De modo muito semelhante atua a arte; cada obra concreta se autolegitima pelo fato de saber-se protegida por uma única legitimação geral. A ação da multiplicidade como dinâmica não excludente é o álibi para desabilitar qualquer ação crítica, tanto particular – em cada obra –, como geral, na concepção de arte que está em jogo.
4. Homenagem à metade do século XX
Poemas y antipoemas de Nicanor Parra, o movimento da Poesia Concreta do Brasil, La insurrecciónsolitaria de Carlos Martínez Rivas, En la masmédula de Oliverio Girondo; aí estão quatro acontecimentos produzidos na década de 1950, que permitem que se fale numa redistribuição da energia poética na América Latina.
Tive ocasião de escrever em outros lugares sobre esses quatro acontecimentos poéticos da metade do século XX, na América Latina. Sobre a experiência de Nicanor Parra, é suficiente precisar que nenhum outro acontecimento tem, no âmbito hispânico de língua castelhana, a relevância da antipoesia. Isso, por uma simples razão: a antipoesia de Parra joga em duas pontas ou em uma contradição poética. Por um lado, questiona profundamente o legado das vanguardas estético-históricas, por considerá-lo despreeendido de seu destinatário natural – deveria dizer-se social e individual – da arte e da poesia: o homem comum, o habitual “homem que anda por aí”. Por outro lado, ataca o mesmo inimigo das vanguardas – ou seja, participa do mesmo alvo crítico das vanguardas estético-históricas –: o burguês, o homem que cultiva a arte como aposta sublime e transcendente, que o afasta da realidade e que, por isso mesmo, requer da arte uma espécie de consolo, uma metáfora, uma substitução que lhe outorgue um plus auratizado de existência em outro lugar simbólico, um lugar simbólico-ideal. A crítica de Parra, tal como a crítica das vanguardas, está, para a arte e sua recepção, como cúmplice de um processo conjunto de alienação. Trata-se da alienação vivida como instância contrária, salvadora, que impede a consciência da própria alienação e a possibilidade de superá-la. Tanto as vanguardas como Parra acompanham as ressonâncias do discurso hegeliano: a arte, tal como a concebemos, é uma aposta esgotada e esgotadora que já deu tudo de si. Já não cumpre com sua função desalienante, mas, ao contrario, contribui para que o consumidor e o artista se ensimesmem, ambos separados do processo civilizatório ao qual a arte sempre se destinou. Em La insurrección solitaria, Carlos Martínez Rivas, referindo-se a essa busca alienante do consumidor de arte, chama-a “holocausto de si próprio”. A resposta do poeta, para Martinez Rivas, é a rejeição da obra, a recusa em entregar o produto artístico que propicia esse gozo de arte de que o consumidor precisa (nesse caso, o leitor de poesia). Esse tipo de atitude pode ainda guardar traços do século XIX: há ali ecos do Baudelaire de “Leitor, hipócrita”, um considerar a recepção como nunca havia sido notada pela poesia ocidental, proposta – a essa altura – sem complacências e com absoluta dureza. A “hipocrisia”, aludida por Baudelaire, é a mesma disfunção aludida por Hegel para diagnosticar “o fim da arte”: a sua inoperância é um ritual que não cumpre com sua funcionalidade, ao mesmo tempo libertadora e avalizadora de uma prática necessária para o espírito. E, mesmo que a contradição em ato de Martinez – a recusa de fazer a obra e, ao recusar o ato, o realiza – já indique uma duração polêmica ou que deveria ser polêmica e não obstante não o foi (não o é): por qual motivo a duração atual da prática poética não é uma continuidade? –, muito diferente é a proposta de Nicanor Parra: não voltar a parte alguma, mas fazer emergir a linguagem do homem comum para construir uma poesia afim a este mesmo homem, que lhe proporcione elementos necessários para sua própria vida. Para tanto deve ser feita uma operação dura de deslastre: atirar pelas amuradas toda essa poesia aleijada, tanto na linguagem quanto na concreção da realidade que se vive e que, em lugar de libertar o homem, o aliena naquilo que não existe. Deve ser notado aqui que, em razão de outro paradoxo, a rejeição de Parra é uma poesia do século XIX, cuja frieza simbólica a conduziu à criação dos “paraísos artificiais”, fora de qualquer possibilidade de realidade, porém que – e aqui deve-se pensar em Mallarmé – por sua própria necessidade de sobrevivência deve “purificar as palabras da tribo”, um gesto que, no próprio afã inconcludente de sua busca, coletiviza a proposta: o desejo é de pureza, mas de uma pureza coletiva, tribal. Toda a linguagem deve ser purificada, quer dizer, todo o sentido deve ser posto à prova, uma prova que passa por seu estar em crise, a não ser em uma transformação radical como a que fora proposta pelos românticos ingleses e alemães. A linguagem da poesia ocidental havia-se tornado o eco da própria decadência espiritual de seu semblante, esse “homem que declina” com o crepúsculo do século XIX, ou então se prepara para renascer. O renascimento do homem passará, para as vanguardas, pela dissolução da arte na prática social. Para Parra, mediante o ato de falar de novo,coisa que não implica falar tudo de novo ou começar do zero, mas simplesmente (e difícilmente) mudar a forma de falar.
Lançado em um infinito pré-, José Angel Valente, em sua última etapa, buscava uma palavra anterior, sempre anterior, a nenhum acontecimento ou sucesso histórico preciso, mas sempre anterior, situada no ato da anterioridade, nucleada ali, des-tentada de ser rodeada por fonte clara, pré-pios, proto-pássaros, ou árvores-começo: a “antepalavra”. O conceito havia sido encontrado por Valente, na experiencia da fala dos místicos, essas crianças loucas, derrubadoras de certezas sem fingimento possível. A “antepalavra” não foi encontrada – isto é, nunca foi localizada, razão de sua sobrevivência e de nossa procura, sempre latente.
A Poesia Concreta brasileira propõe um objeto poético criado com base na síntese – no desalojamento do adjetivo e do advérbio – da linguagem: um poema descarnado, sem sentimento, porém com a inteligência depurada para suportar sua ausência, principalmente quando o sentimento deixa de ser afeto para transformar-se em um derramamento autovitimário de pranto pelo ritual fracassado, o ritual coletivo e o individual. Segue a linha hegeliana da sobreconsciência da linguagem, uma linguagem poética que não é que negue, mas não aceita sua dimensão gráfica e sonora tal como seu ser semântico, privilegiado pela razão ocidental quando interfere na poesia. Não é Dadá – o não sentido devastador do Dadá que não deixa de jogar e põe o dedo na chaga do jogo – mas é sobre o Dadá, meta-Dadá, o grande objeto que se faz, mais do que por agregação, por subtração. Não apenas sobra à arte, mas sobra arte (em poesia, em geral): e tem que sobrar. Não há dúvida de que o procedimento é resto, não uma poética do resto. Não se trabalha com sobras – que é a assunção daquilo que restou, o pudor e o respeito por aquilo que há, diante de tanta carência – mas, sim, trabalha-se com invenção, o destino trágico de uma humanidade em que a modernidade encontra seu destino no novo, ou então nada tem sentido. A Poesia Concreta quer o novo poema como o quis, até o fim de sua vida, Vicente Huidobro, que escreve a Juan Larrea: “O novo ser nascerá, aparecerá a nova poesia, soprará um vento forte e aí se verá quão morto estava o morto”. As imagens climato-anímicas próprias de um messianismo apocalíptico não abandonam Huidobro, que em Altazor prognosticou a realidade sem religião do novo homem. Na década de 1950 se reaquecem os motores do novo. Ensinamento sem réplica racional: o poema é linguagem. Aquilo que a Poesia Concreta não diz é quanta subjetividade contém esse objeto de palavras, que não renuncia – como as vanguardas da primeira parte do século XX – ao “objeto de arte”, mas que o reduz à sua essência. Novamente coloca-se o problema entre originalidade – criação, inovação – e aquilo que possa (que tenha podido) permanecer. Com tanta intensidade quanto o poema desejado por Parra, em seu regresso à fala comum, o poema concreto retorna à invenção, a que não desdenha o consumo midiático de uma civilização mediatizada. Acerto de contas com a História, com maiúscula, com a história (minúscula) da poesia e com a Técnica – e com a técnica desse poema-objeto-artefato –, o poema concreto é a grande contradição vanguardista no seio da vanguarda. O nada do Dadá adquire, aqui, um ritmo dialético: positiviza-se, reconhece o mundo da tecnología de ponta como o único mundo existente, só trabalha para uma utopia tecnologicamente apta. A rejeição foi da medida dessa aspiração: a poesia de ancoragem tradicional vê na Poesia Concreta o verdadeiro “fim da poesia”. Ou seja: Hegel cumprido, cerrando-se o círculo. Sem nenhuma razão utópica, Oliverio Girondo realiza o enfoque restritivo dessas vanguardas históricas, na metade do século XX. Em lugar de dar um salto, como no caso Concreto, para um mundo tecnologicamente aberto e inserir, nesse âmbito, um poema capaz de sustentar uma funcionalidade clara e confiável, e que, ao mesmo tempo, recorde tão somente pelo desígnio do “makeitnew” poundiano, o glorioso passado poético ocidental que, tal como o adjetivo (quando não dá vida, ou seja: aplastra), Oliverio Girondo salta dentro do poema. En lamasmédula é um desafio à vanguarda, na medida em que comporta uma interiorização do poema, uma viagem ao centro de si mesmo. Entretanto: se a vanguarda é, em alguns casos, a “morte” da interioridade”,6 En la másmédula clarifica esssa morte, na linha do Altazor de Huidobro,como um re-nascer do poema em contato com sua essência, indicada por seu nome: mas médula é medula a mais, é outra volta – quem sabe, a última – da medula que já não teme a dissolução do corpo. Girondo gira a chave e abre o poema até dentro, quando o poema de vanguarda pretendia abrir o mundo através do poema –elpoema-afuera – em uma ambiciosa e falida operação de “objetividade” suspeita – salvo em casos como o do próprio Pound de The Cantos, ou de boa parte da poesia de William Carlos Williams, na subsequente pragmática da vanguarda, encarnada na visão poética norte-americana.
Dos quatro exemplos que designei como “acontecimentos” da poesia latino-americana da década de 1950 partem linhas de força que serão guias, até o presente momento, para toda a investigação poética que não reluta diante da invenção, mas sim diante do regresso culposo a uma ideia de tradição enquanto repetição de repertórios e parálisis de consciência crítica. Não são as únicas – sobretudo não o são quando se ativa o chocalho poético do presente e se verificam as outras origens das variáveis da redundância que oficiam, hoje, como novidade de forma poética –, mas são, para mim, as mais importantes, as que implicam uma meditação profunda sobre a realidade da poesia latino-americana de agora.
… E O AGORA QUE CONTA
Entrecruzam-se, no presente, diferentes relatos sobre o significado do poético e do artístico latino-americano, sobre suas poéticas, sobre seu passado. Há pouco vaticínio futuro, porque a questão, em si, se considera, em geral, pouco mais que impertinente. Esse é o triunfo do dado de fato sobre a consciência do fato. Triunfo, também, da produção sobre a crítica da produção. O conformismo consiste no seguinte: deve-se saber melhor, na pluralidade, o que, na perturbação, se ameaçava excluir.
Salvo exceções ou erro no presente texto – como quando, na bifurcação temporal, em lugar de se seguir pelo camino do monte, segue-se pelo camino do mar, que dissolve tudo – a prática poética de agora é uma prática que se conforma com o estado de coisas poético que reage com estranho pudor diante do estado de coisas do mundo.
É interessante comprovar como – apesar das diversas negações dos feitos que se encarregam de praticar tanto os poetas canonizados como os recém-saídos à luz do dia – a dependência da poesia de hoje da realidade do presente histórico é tão determinante.
Como se a realidade do mundo se houvesse ajustado, pela primeira vez em quase um século – nenhuma analogia é válida entre o momento da realidade atual e os anos da Primeira e da Segunda Guerras mundiais –, à necessidade da poesia e como se o mundo poético houvesse entrado em um impasse interminável e altamente produtivo. Um rasgo (traço) inequívoco que contraria os pressupostos de responsabilidade com que o mundo atual manipula direitos e obrigações – e disso, ao menos, se gabam alguns pensadores europeus não muito fortes como Lipovetsky, Bruchner ou Glucksmann –, traço esse que comporta todo tipo de pressupostos, mas um deles é fundamental: o ético. Nele, a ética figura como uma espécie de chantagem altamente “comovedora”, que nos relaciona, ao mesmo tempo, com a realidade do terrorismo e com o desaparecimento do urso polar, e não parece afetar a produção intelectual latino-americana e, dentro dela, a práxis poética que – como nos velhos tempos de Paul Verlaine – vacila entre estar dentro ou fora da literatura. Esta ética, que substitui naqueles pensadores uma opção ideológica, como nos “velhos tempos” de cinquenta anos atrás, a queda do muro de Berlim nos colocou num presente de livre circulação aparente e de falsa e indignante realidade, mas, sem dúvida, afastou o tempo histórico de certos acontecimentos com a velocidade de um pesadelo que se afasta diante da iminência de um raio que vai vir pela janela – na América Latina brilha por sua ausência. Esta é uma figura: o esplendor daquilo que não está, o grilo que foi embora e deixou em seu lugar a fosforescência de sua passagem, o momento anterior cheio de sol da tartaruga, o teto que abriga muitas espáduas, é uma figura que brilha tipicamente na América Latina, onde a ausência é a rainha da superpopulação. A que nos adaptamos? A um caos de quarto ou quinto grau, com a promessa de alcançar, um dia, o primeiro.
Disso advém que o pensamento, em um passe de pudor mágico onde some a carpa do circo e some o público inteiro, deixa de atuar, sub-reptícia e cautelosamente. Não há nenhum mal em fazer antologias que cheguem o mais perto possível das produções poéticas de autores menores de trinta anos. Depende de quem faz o trabalho e do quanto joga de si próprio na aventura. Nesse “primeiro plano” temporal da antologia, nessa aproximação, quase, à gênese de uma vocação, momento em que o poema duvida entre nascer e não nascer, porém que – ainda nessa incerta articulação – já se pergunta para quê, não há uma busca da precocidade que dê garantía de legitimidade à espécie. Não há Rimbaud. E isso é definitivo. O que há são levantamentos de área para comprovar dados de fato. O que se esconde ali é uma obscura esperança e não uma clara espera: a de que o nível da produção evidencie uma qualidade de realização que faça valer a pena a viagem de recenseamento. Uma qualidade de realização média. É a média o que indica que estamos no presente, pela mesma posição do tempo. É o que me parece o ponto nodal para uma consideração da poesia que se escreve hoje: qual é sua relação com essa média,que o que faz é alargar o âmbito de tolerância e de espaço para seus produtos, como se todo desbordamento, toda transgressão fossem questão de espaço: há ou não há lugar para o esbanjamento, para o gasto, para as novas dores e para a confissãoque – agora sim – tirará a última casca de tabu do piso. Trata-se de um problema de ubicação, de localização, não de um problema de valor, nem – muito menos – de um problema de legitimidade. Isso explica a “tolerância” singular – que nada mais é do que um laissez faire com vista a uma maior possibilidade de mercado de produtos culturais – com que circulam as distintas e opostas poéticas na arte latino-americana. Na poesia nunca fica claro – como ficava nas produções dos poetas nascidos na década de 1950 ou de 1960 – quais são as diferenças de propostas, de atitude, diante da poesia e da construção do poema. E não fica claro porque, do mesmo modo que há presente, não há horizonte para essas produções. Se o nível poético de autores jovens como Luis Felipe Fabre, Antonio Ochoa, Hugo García Manríquez ou Nicolás Alberte significa na poesia recente da América Latina, não é pelo fato de haver certa regularidade de juízo estético que se lhes aplica. Sua articulação os autoriza a ocupar um espaço indiferençado junto a outros. E a razão erra novamente: não é porque circulam bem ou porque há lugar para todos os que têm uma posição especial e significante na poesia atual, mas porque são propositivos e porque não fazem poesia de acompanhamento industrial. Não estão aqui para justificar pressupostos, nem inversões de produção. A obra de um poeta não justifica nada, nem a obra de um artista. A falha não corresponde aos poetas – na medida em que não podem ser avaliados pelo que não fazem – a falha é responsabilidade de uma crítica corrupta que medra com seus instrumentos colocados a serviço de uma ordem imóvel – imóvel porque as alternativas ao poder possuem a mesma noção cultural da ordem dominante – uma crítica cuja degradação a tornou paradoxal: uma crítica que não é crítica. A situação não é igual em toda a América Latina. No México este desgaste é notavelmente marcado, não assim na Argentina ou no Brasil, para dar exemplos claros. O que preocupa não é o colapso conjuntural do pensamento. Há quem auspicie, Steiner, por exemplo, momentos piores para esse velho hábito que, em vários momentos históricos, dignificou o homem, em uma geografía humana chagada de ameaças, carências e atrasos como a latino-americana. O que desarticula é ver a poesia latino-americana, que se escreve já há umas duas décadas, circular sem avaliação crítica, e em mãos de um leitor que confunde uma escritura com outra, porque já havia confundido, em um outro momento muito distante, um pensamento com outro pensamento. Não é o azar que definiu situações: há intereses – que na prática são desinteresses – para que nada mude de lugar, em termos culturais. Nossas culturas – e faz muitos anos que a poesia, na América Latina, entrou nesse jogo – se herdam na eternidade, porém não se discutem no presente. As obras se escrevem no presente e esperam – outra vez o mesmo – ser julgadas pela eternidade.
Tradução: Aurora Bernardini
Notas
- ANGELUS SILESIUS: Peregrino querubínico; Barcelona, Olañeta editor, 1985.
- UMBERTO ECO: Obra abierta; Barcelona, Ariel, 1979.
- ALAIN BADIOU, El siglo. Buenos Aires: Manantial, 2003.
- FRIEDRICH HOLDERLIN, Las grandes elegías. Traducción de Jenaro Talens. Madrid: Hiperión, 1980.
- PETER BURGER, Teoría de la vanguardia. Barcelona: Península, 1987.
- LAURENT JENNY, El fin de la interioridad, Teoría de la expresión e invención estéticaen las vanguardias francesas (1885-1935). Valencia: Cátedra-Universitat de Valéncia, 2003.
Revista de la Biblioteca Nacional de Uruguay, época 3, ano I, n. 142, 2008; recolhido em: Eduardo Milán, Cosas de ensayo veredes. Caracas: Monte Avila, 2009.