No Tiers-Temps
Paris, 25 de julho de 1989
Ela está morta. Preciso me lembrar o tempo todo. Suzanne não está no quarto, ela não está comigo, não está mais. Ela está… enterrada. No entanto essa manhã, embaixo do meu velho cobertor, é como se ela estivesse aqui – não enterrada, nem mesmo morta – aqui, embaixo do cobertor, aconchegada a seu velho Sam. Aliás, é porque está aqui, apoiada em meus velhos ossos, deitada perto de minha pobre carcaça, que sei que não estou enterrado.
Ainda tenho um pouco de frio. Sou muito magro. Minha mãe sempre me dizia isso. Quando eu era criança, corria sem parar, pelas ruas, pelos campos, corria para não ficar com frio porque era muito magro. Corria para não ouvir May dizer que eu era muito magro. Eu corria. Um dia, corri por tanto tempo que parti para sempre. Parti pelo mar. Parti para bem longe de May.
Essa é a abertura de Tempo final, primeiro romance da escritora francesa Maylis Besserie (1982), publicado este ano pela Editora Nós e traduzido por mim. A obra rendeu à escritora o prestigiado Prêmio Goncourt 2020 para romance de estreia. Seu protagonista é ninguém mais, ninguém menos que Samuel Beckett (1906-1989), célebre dramaturgo e escritor irlandês, Nobel de Literatura em 1969. Besserie transforma-o em personagem para imaginar seus últimos dias de vida, brincando com as fronteiras entre fato e ficção, pois parte de uma circunstância real da vida do escritor — sua internação, em 1988, na casa de repouso Tiers-Temps, existente até hoje em Paris. Ali, o autor será transformado em uma espécie de Malone, um de seus famosos personagens — com a mobilidade reduzida, o corpo em frangalhos e a mente a todo vapor.
Dividido em três partes, ou três tempos, acompanhamos os pensamentos de Beckett até o momento de sua morte. Assim como muitos protagonistas de sua obra, o corpo padece, mas a mente não para de pensar, criar, argumentar. A força do romance está justamente em sua capacidade de transformar Beckett em uma de suas criações, com uma linguagem ora cínica, ora ferina, ora poética, ora engraçada. O livro mescla a narração do protagonista com os relatórios médicos acerca de sua condição e as regras da casa de repouso. Besserie também recria relatórios policiais ao tratar do episódio em que Beckett foi esfaqueado em Paris.
A escolha pela narração em primeira pessoa nos remete ao estilo da trilogia beckettiana do pós-guerra composta pelos romances Molloy, Malone morre e O inominável. Nesses livros, sobretudo no segundo, temos protagonistas às voltas com suas tentativas de narrar ao mesmo tempo em que o corpo começa a falhar. A mesma situação é vivida pelo Senhor Beckett, protagonista de Tempo final: dificuldade para escrever, se locomover, comer, tomar banho, caminhar. As atividades são descritas em meio às reflexões ácidas sobre a velhice e os velhos, seguidas por um movimento de rememoração. Cada ação remete o personagem a uma lembrança fundindo presente e passado na narrativa. Dessa forma, o leitor é levado à Irlanda e suas paisagens, à Paris das caminhadas com Joyce, à estreia de Esperando Godot, e também à França durante a Segunda Guerra.
Beckett foi um escritor bilíngue, abandonando a Irlanda pela França. O inglês era seu idioma materno, mas o escritor adotou o francês como língua literária no período do pós-guerra, quando se estabeleceu definitivamente em Paris, tendo escrito a trilogia romanesca e Esperando Godot em francês. Besserie explora o bilinguismo trazendo uma série de trechos em inglês e comentários sobre expressões nas duas línguas, além de reflexões linguísticas, algo muito característico da obra beckettiana. Citações de outros escritores também vêm à mente do protagonista que, o tempo todo, relaciona o que vive à literatura. Alguns exemplos são as menções a Ronsard, Proust, Melville, Corneille, Breton, Molière, Yeats, Shakespeare, Victor Hugo. E é claro, James Joyce.
Em suas recordações, três figuras se sobressaem: James Joyce, May, mãe de Beckett, e Suzanne, esposa do escritor. Joyce é presença maior no “Primeiro tempo” do romance como o grande autor admirado por Beckett, o conterrâneo que abriu as portas de sua casa em Paris e o acolheu quando jovem: “A voz de Joyce. It warms my heart”. A amizade dos dois irlandeses tem bastante destaque na obra. Para May ficam as farpas. É sabida a relação conflituosa que Beckett tinha com sua mãe e o romance aborda a questão frontalmente: “A escuridão de May que havia alimentado a minha, que havia semeado as flores doentias. Amamentado até a última gota de bile, fiquei por muito tempo deitado em seu leito de tristeza”. Suzanne, além de companheira, surge como a metade corajosa que faltava ao escritor, já que foi ela a responsável por bater de porta em porta tentando emplacar seus escritos: “Suzanne pegou o touro pelos chifres. Ignorando aqueles que cresceram em sua cabeça. Ela teve a coragem que me faltava. Sinto falta de Suzanne. Da coragem também”.
O romance traz uma constelação de pessoas significativas na trajetória de Beckett, como Jérôme Lindon, famoso editor da Les Éditions de Minuit e responsável pela publicação da trilogia romanesca; o ator e diretor Roger Blin, que decide encenar Esperando Godot pela primeira vez; e funcionários e amigos do escritor, tanto de Paris, como de Ussy e Roussillon.
Maylis Besserie é uma grande conhecedora da obra e da biografia de Beckett. Produtora na rádio France Culture, também realizou diversos documentários sobre literatura irlandesa, além de ter uma história pessoal de afeto com a ilha. Em um comentário ao final do livro, a escritora ressalta que sua intenção não foi biográfica. Besserie quis compor um romance em que Beckett torna-se personagem de si mesmo. Com este objetivo, a obra funde os pensamentos do personagem Beckett à sua própria obra. Um bom exemplo é o trecho em que, em uma sessão de fisioterapia, a peça Não Eu é evocada através de um pesadelo do protagonista com uma boca que o suga: “A boca úmida era um mar calmo que me lavava com sua língua – áspera, na medida certa – para que eu me entregasse. Eu me entregava sempre. Até tudo tremer. Até que uma névoa espessa tomasse conta dos meus pensamentos”.
Em outros momentos, há referências explícitas à prosa beckettiana com menções a “Sobressaltos”, último texto escrito por Beckett, aos romances Molloy e O inominável, aos inclassificáveis Mal visto mal dito e Companhia, e também às peças Esperando Godot e Todos os que caem. Tais associações surgem através de expressões, cenas, temas, reflexões do narrador ou mesmo através da linguagem do romance que, em diversos trechos, procura reproduzir o fluxo do discurso beckettiano e sua poesia.
O “Terceiro tempo” do romance, momento em que o narrador se aproxima da morte, é inteiramente escrito com alusões a cenas de Film, curta-metragem roteirizado por Beckett e protagonizado por Buster Keaton. Em Film, um idoso, personagem de Keaton, tenta fugir de qualquer olhar que o observe, isolando-se em seu apartamento. Ali, abre uma pasta e passa a rasgar fotografias que parecem remetê-lo a etapas marcantes de sua vida. O curta-metragem funciona para que Besserie relacione o que ocorre a Keaton ao fim do próprio Beckett — mais um exemplo bastante explícito de como a autora contrapõe vida e obra. No entanto, isso não quer dizer que o leitor dependa de um conhecimento prévio da obra beckettiana para apreciar o romance. As temáticas da rememoração, da passagem do tempo, do sentido que atribuímos à nossa história quando a morte se aproxima e a própria rotina de um idoso confinado a uma casa de repouso falam por si só. Vale ressaltar, contudo, que Besserie mobiliza todo o universo do escritor ao transformá-lo em uma de suas criações e as experiências de leitura dessa obra serão bastante matizadas dependendo das noções do leitor sobre a obra de Beckett, sobretudo porque a escritora explora bastante o estilo de escrita do irlandês. Besserie faz uma aposta alta, mas não decepciona, produzindo um híbrido de biografia e ficção ao mergulhar na vida de um dos maiores autores do século XX.