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DEZ POETAS CUBANOS *

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A poesia cubana tem uma rica história que a coloca entre as mais potentes da América Latina. Seu vigor incomum não reside apenas em ter poetas de alcance universal, como José Martí, Nicolás Guillén, Dulce María Loynaz ou José Lezama Lima, além de outras figuras igualmente essenciais, embora menos conhecidas fora de Cuba (Julián del Casal, Virgilio Piñera, Gastão Baquero etc.); mas também em certas características únicas da sua tradição que, em certa medida, a diferenciam do resto do continente.

Uma dessas características é a tensão mantida entre poesia e história, que continua até hoje, muitas vezes não isenta de traumas que têm seu ponto de partida no próprio início do processo literário cubano. Ler a história como poesia, ocultando sua extrema violência, e a poesia como se fossem premonições históricas, têm sido uma constante em um país cuja “identidade nacional” só se estabelece aos saltos e no qual o problema tem sido, muitas vezes, a própria falta de identidade.

Quando sua literatura decola por volta de 1825, Cuba carecia do legado de uma sociedade crioula assentada, pois a falta de ouro e o extermínio da cultura nativa a tornaram, durante séculos, apenas um local de passagem para as frotas; como não havia mais indígenas, não foi necessário construir grandes templos para dominá-los. Por outro lado, como o domínio espanhol se estendeu por quase todo o século XIX – foi a última colônia da América –, seguiu-se um período fatídico para seus escritores e intelectuais, de quase sete décadas de exílio e despotismo interno. Assim, a poesia tem de realizar, por conta própria, e na ausência de outros gêneros consolidados, a nacionalização de sua literatura: de certa forma, uma invenção ex nihilo marcada pela dor e pela distância, pelo desprendimento do passado e pelo pathos da liberdade, bem como por um sentimento de insularidade – isto é, de insulamento tanto geográfico quanto histórico – que acompanha a elaboração da chamada “paisagem interior da pátria”.

Trata-se de um processo que incluiu figuras da estatura de José María Heredia e Juan Clemente Zenea – ambos exilados – e que culminou na obra de José Martí, o último romântico e o primeiro modernista da América Latina e, para muitos, o melhor prosador em língua espanhola após o Siglo de Oro. Martí, que sofreu um longo exílio e cuja poesia nem sempre reflete suas projeções nacionalistas e americanistas (não é um escritor programático, mas um forjador de estilos diversos e mesmo díspares, embora, de qualquer forma, notável, com influências que vão de Santa Teresa e Quevedo a Whitman e Emerson), foi, além disso, o principal pensador político da Ilha e o promotor de sua última guerra contra a Espanha.

Sua morte rápida em combate, vivida como um trauma, especialmente após a emergência, em 1902, de uma República dependente dos Estados Unidos, que arruinou seus ideais de liberdade plena, serviu não apenas para consolidar o nacionalismo político cubano, mas também literário. Essa convergência na mesma pessoa dos pontos mais altos da história e da poesia, essa dupla consagração em uma nação que se vê incompleta – a República nasce doente, é o axioma da hora – e está obcecada com o episódio que sua perda, terá enormes consequências, já que quase toda reescrita da tradição poética cubana passará doravante por certa subordinação do cânone literário ao político – isto é, pelo labirinto nunca resolvido de tais tensões –, bem como pela impossibilidade muitas vezes dolorosa de deslindar entre escritura e ontologia, entre experiência literária e mitos nacionais.

Um dos maiores efeitos da centralidade de Martí será lançar uma sombra sobre outro grande modernista, Julián del Casal. Influenciado pelo decadentismo francês, Casal é o primeiro poeta a romper com a retórica espanhola e com a idealização da pátria, e também o primeiro a tentar alcançar dentro de Cuba – onde morreu de tuberculose aos 29 anos, em 1893 – um sentido de autonomia para o escritor, pelo qual seus contemporâneos o criticam, imbuídos da tarefa de independência ou da espessura moral da crítica positivista. Sombrio e irônico e com pouco fervor patriótico, Casal torna-se tudo o que não é Martí, antítese que a crítica literária exagera ao ponto da distorção, passando por cima de semelhanças e desconsiderando o brilho de quem é, talvez, o poeta com seguidores na Ilha. A seu respeito, o crítico mais destacado da época, Enrique José Varona, escreveu: “Em Cuba você pode ser poeta, mas não viver como poeta”.

O poeta rolando Sanchez Mejías
O poeta rolando Sanchez Mejías

 

A oposição Martí/Casal se expressa de diferentes maneiras ao longo do século XX. Assim, enquanto os poetas da primeira geração republicana continuam o caminho casaliano, voltando aos temas do decadentismo e tentando sustentar certa autonomia literária, a vanguarda dos anos 1930 é mais forte na política do que na literatura, inscrevendo-se em um projeto civil que implicou a recuperação do ideário político (mais que o literário) de José Martí. Um caso exemplar é o de Rubén Martínez Villena, poeta comunista que deixa de escrever para se dedicar à luta contra a ditadura de Machado. No entanto, mesmo quando a vanguarda não mostrava em Cuba (exceto na música), do ponto de vista estético, seu radicalismo habitual, tampouco faltaram experiências renovadoras de grande valor, como a chamada poesía pura – representada por Mariano Brull e Eugenio Florit – e a poesía negrista.

A última teve em Nicolás Guillén sua figura capital. Com Guillén irrompem o sincretismo e a transculturação: um novo sujeito encarnado no homem mestiço, com suas heranças africana e espanhola. Guillén rompia assim com o legado dualista do século XIX. Trouxe o son e a dança para a poesia, ou seja, os ritmos até então marginalizados da música afro-cubana, que usou com talento para embuti-los em um estilo ágil, de ressonâncias lorquianas.

Embora o negrismo logo tenha esgotado seu registro, permitiu a introdução de questões sociais, que teriam no próprio Guillén seu artífice mais talentoso (West Indies Ltd, 1934). No entanto, a maior parte da poesia mestiça e social escrita em Cuba era de baixa qualidade e não teve, a partir de então, descendentes importantes. Quase não houve experimentalismo verdadeiramente vanguardista, que se resolveria ao nível do texto, na incorporação de referências urbanas ou na assimilação surrealista.

Contra a afrocubanía e as questões sociais e, sobretudo, como resposta ao vácuo ético e espiritual da República, surgiu a geração Orígenes, ancorada em torno da revista de mesmo nome (1944-1956) – segundo Octavio Paz, a melhor revista literária do idioma – e integrada por figuras brilhantes como José Lezama Lima, Eliseo Diego, Gastón Baquero, Cintio Vitier e Fina García Marruz. Inspirador por excelência do originismo e talvez o maior poeta cubano de todos os tempos, Lezama não só criou um estilo “barroco” único, que se baseia nas mais diversas experiências (Góngora, Quevedo, San Juan, Mallarmé, Valéry, Claudel), e um sistema poético em que a imagem é ao mesmo tempo a substância da criação e uma forma de conhecimento, mas também propõe vincular o cubano ao universal, a partir de uma perspectiva católica (órfica no melhor sentido) segundo a qual a Ilha – indistinta no cosmos , como diz seu credo “insularista” – transcenderia seu tradicional sentimento de solidão.

Trata-se de um esforço louvável e eficaz, que deu complexidade e sentido à tradição poética cubana, amplamente reinventada por ele, mas que demonstra um marcante essencialismo, sobretudo ao colocar Martí (“encarnação do espírito na História”) e certo legado oitocentista onde se apreende a essência de lo cubano.

O drama de Orígenes foi talvez o de que a poesia poderia salvar a história; e às vezes isso atingia um alcance descomedido, como no esforçado estudo de Cintio Vitier, Lo cubano en la poesía. Como poetas, legaram obras significativas, entre elas En la calzada de Jesús del Monte, de Eliseo Diego, e Las miradas perdidas, de Fina García Marruz, além de todo corpus de Lezama. Outra de suas virtudes: tentaram viver como homens de letras e conseguiram; assim, na contramão da realidade política, recuperaram certo status para o escritor.

Mas em Orígenes também havia excesso de ensimesmamento e de “catoliquismo”, contra o qual Virgilio Piñera reagiu. Inicialmente membro do grupo, logo se torna seu herege. Na realidade, o que Piñera contrapõe a seus contemporâneos é seu senso crítico da literatura, desvinculado de ingredientes morais e religiosos. Decididamente moderno, não precisa impor-se a redenção da história através da poesia. Em seu emblemático poema La isla en peso (1943), o drama da insularidade pulsa, mas em versão negativa (“la maldita circunstancia del agua por todas partes”), reflexo de uma ilha dominada pelo sexo e pela violência, uma Antilha qualquer em que não se verifica outra origem senão a sua falta, isto é, o vazio de uma identidade.

Marcado por Sade, Baudelaire e Kafka, Piñera lapida ao longo do tempo um estilo sóbrio e irônico, às vezes sórdido e até mesmo cômico. Em seus últimos anos, concebe uma poesia discretamente civil, algo como uma “poética do medo” a partir da qual demonstra o horror a que uma sociedade dominada por práticas totalitárias é conduzida, submetida à ficção criminosa do Estado.

Em 1954, o próprio Piñera fundou a revista Ciclón, em torno da qual se agrupa grande parte da chamada Generación del 50, geralmente poetas e escritores muito jovens à época, que pouco depois – após o triunfo da revolução castrista – agrupam-se em torno da revista Lunes de Revolución. Alguns desses poetas realizam obras valiosas, como nos casos de Roberto Fernández Retamar, Heberto Padilla, Fayad Jamís e Manuel Díaz Martínez. É, em sentido amplo, uma “vanguarda” que tenta combinar liberdade de criação com compromisso social – comprometida com a Revolução, mas não com sua projeção stalinista –, e que explodirá em pedaços em 1961, quando Fidel Castro faz seu famoso discurso Palabras a los intelectuales, onde lança o conhecido slogan “Dentro da Revolução, tudo; fora da Revolução, nada”. Esta primeira intervenção do Estado na cultura marcou o fim de uma breve mas rica etapa de confronto entre as diferentes tendências da época (novas vanguardas, Orígenes e velhos poetas comunistas) e o início da imposição do “compromisso social” como única norma estética.

Consequentemente, ao longo da década de 1960, a cena literária se fragmentou, não deixando espaço senão para o exílio, o retraimento interior e a fidelidade ao regime. Para exílio partem Cabrera Infante, Severo Sarduy e Calvert Casey, entre os jovens, e Gastón Baquero, Ángel Gaztelu e Lorenzo García Vega, entre os antigos origenistas; Lezama e Piñera, que continuam a escrever dentro de um mundo literário cada vez mais institucionalizado, começam a experimentar o ataque da censura; enquanto os poetas comunistas (Nicolás Guillén, Manuel Navarro Luna e Mirta Aguirre) são erigidos em modelo, secundados por Fernández Retamar e Fayad Jamís, duas das vozes mais sólidas do conversacionalismo, uma estética coletiva ainda rica em nuances e nem sempre comprometida in extremis, mas que logo degenera, assumindo uma posição militante que reduz a poesia a mero testemunho acrítico da realidade.

A prisão em 1971 do poeta Heberto Padilla marcará o fim de uma era de epifania e apoio dos intelectuais europeus à Revolução. Forçado a retratar-se e a denunciar publicamente outros poetas, a quem tem de acusar de contrarrevolucionários, o único crime de Padilla foi escrever uma coletânea de poemas nada apologéticos. Em Fuera del juego a história é retomada em sentido crítico. O autor zomba da Revolução, inscrevendo-a alegoricamente, mas também claramente dentro da experiência comunista totalitária inaugurada por Lênin na União Soviética. Claro, o que foi julgado então não foram apenas fatos, mas ideias. O livro foi retirado de circulação e tanto seu autor quanto os demais escritores envolvidos no processo foram expulsos de seus empregos e perseguidos por anos.

Após o “caso Padilla” adveio um período de controle absoluto do Estado da literatura cubana. Convertidos previamente em cadáveres de civis, José Lezama Lima e Virgilio Piñera morreram nessa década sem poder publicar seus últimos livros, viajar ou mostrar a cabeça em espaços públicos; enquanto isso, o jovem romancista Reinaldo Arenas e outros autores menos conhecidos são censurados e encarcerados. Entre os poetas oficialmente representativos da década de 1970, destacam-se Luis Rogelio Nogueras e Guillermo Rodríguez Rivera, que evitam a epopeia e a complacência, mas apenas as substituem por um formalismo engenhoso e timidamente antiburocrático. Por sua vez, Fernández Retamar torna-se o ideólogo cultural do momento, propagando uma leitura da história em que um Martí mais revolucionário que nacionalista e menos escritor que político, em todo caso um “homem de ação”, vigia a maltratada cidade literária.

 

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Somente a partir da década de 1980 a poesia cubana começa a recuperar seu vigor, libertando-se do peso da ideologia e dos lugares-comuns da poesia social-cotidiana, versão menor (para chamá-la de alguma forma) em que havia decaído o kitsch revolucionário. De fato, o objetivo desta antologia é mostrar alguns dos melhores poetas cubanos que surgiram por volta de 1970 e depois: ou seja, ao longo da evolução totalitária da Revolução; poetas que emergem, justamente, em tensão, oposição ou franco desvio em relação ao fechamento histórico que ocorre a partir daquele ano. Embora neste mesmo período Lezama e Piñera escrevam suas últimas coletâneas de poemas, publicadas postumamente (Fragmentos a su imán e Una broma colossal, respectivamente), e Severo Sarduy conceba sua extraordinária poesia neobarroca, eles não estão incluídos nesta seleção, pelo fato de pertencerem a gerações anteriores; o que vale também para o resto dos poetas da Generación del 50.

Trata-se, aqui, de uma amostra enxuta daqueles que constituem, a nosso ver, o núcleo duro da contemporaneidade poética da Ilha e de seu exílio; seleção que deixa de fora, necessariamente, alguns outros poetas contemporâneos de qualidade semelhante. Mas, em todo caso, o propósito tampouco é panorâmico, mas progressivo. Começa com José Kozer e Reinaldo Arenas, que já eram poetas sólidos nos anos 1970; seguem-se Reina María Rodríguez e Ángel Escobar, que começaram a escrever no final daquela década cinzenta, mas só se consolidaram mais tarde; para concluir com alguns membros da Geração de 1980 – Rolando Sánchez Mejías, Ismael González, Antonio José Ponte, Omar Pérez, Damaris Calderón e Alessandra Molina –, marcada pelas expectativas da perestroika e a queda do Muro de Berlim, todos nascidos após o triunfo da Revolução e educados, portanto, sob a experiência guevarista do Homem Novo, com o qual cedo romperam.

Filho de pais judeus que emigraram para Cuba na década de 1920, José Kozer emigrou, por sua vez, para os Estados Unidos em 1960, publicando ali o primeiro de seus muitos livros, em 1972. Sem dúvida o poeta cubano vivo de maior alcance internacional, sua poesia responde a uma “poética da dificuldade” e entrelaça várias tradições, como a judaica e a norte-americana, o simbolismo e as vanguardas, o modernismo e o barroco lezamiano. Embora difícil de atribuir a uma determinada corrente, Kozer foi descrito como neobarroco. Menos denso que Lezama, foge do mito e da história, mas não de uma recuperação linguística de sua experiência cubana, que para ele tem um sentido não apenas poético, mas também ético. Sua escrita é ilimitada, mas não excessiva; nela se amalgamam sonoridades que vão do iídiche ao “cubanês”, enquanto se misturam citações de vários poetas. Mas talvez o que melhor o defina seja aquele verso de Marina Tsvietáieva – “Todos os poetas são judeus” –, que responde tão bem à sua natureza diaspórica e cosmopolita. Como ele afirmou: “Na minha poesia há um eco de ecos: uma palavra me tenta e se me torna natural. A palavra é para mim um bumerangue: vai e vem por registros dessemelhantes, prolifera, é constantemente lateralizada, provoca o formigamento, secreta uma teia de aranha”. O texto é a pátria de Kozer.

Embora muito mais conhecido como romancista, Reinaldo Arenas foi também um excelente poeta. Juntamente com Virgilio Piñera, de quem se manteve muito próximo pessoal e literariamente, ele oferece um dos poucos exemplos de plena coincidência entre trabalho e vida no século XX cubano. Sua poesia, uma das mais diretas já escritas em Cuba, é ao mesmo tempo lúdica e trágica, raivosa e sóbria, descuidada e eficaz; e leva ainda mais longe uma visão austera da história do país. Escritura da intempérie, reflete o horror do passado escravocrata e sua repetição incessante sob o totalitarismo, horror que Arenas experimentou em primeira mão – por exemplo, seu caderno El central foi escrito durante os meses que passou cortando cana em uma usina de açúcar, como medida de punição por sua “periculosidade social”. Toda sua poesia foi agrupada na trilogia Leprosorio, antiépica que desmonta o mito da pátria como lugar de redenção, agora reduzido a uma única força que a tornaria compreensível: a violência. Os seus irreverentes “Sonetos desde el Inferno” – alguns deles incluídos nesta antologia – estão entre os melhores da sua obra, que se refere, no seu conjunto, a Aretino, Quevedo e Villon, Baudelaire e ao conde de Lautréamont. Em 1980 escapou da Ilha pela flotilha Mariel, estabelecendo-se em Nova York, cidade onde, doente de AIDS, suicidou-se em 1990.

Entre as vozes que se deram a conhecer no início dos anos 1980, Reina María Rodríguez e Ángel Escobar foram as mais importantes. Em seus primórdios, ambos escrevem poesia coloquial que, embora mais rica do que o que fora feito até então, ainda se mostra devedora de certa moral comunitária. Será precisamente o desencanto com a Utopia, ou a incapacidade de escapar totalmente dela, que mais tarde os torna poetas extraordinários.

Reina María cria, a partir de En la arena de Padua, um discurso elegante e ponderado, onde o corpo, o desejo e a dor da vida quotidiana andam sempre de mãos dadas num pano de fundo de incerteza histórica. Sobre a queda do Muro de Berlim, escreveu: “era a finales de siglo y no había escapatoria / la cúpula había caído, la utopía / de una bóveda inmensa sujeta a mi cabeza, / había caído” [“foi no fim do século e não havia fuga / caiu a cúpula, a utopia / de uma imensa abóbada presa à minha cabeça / caíra”]. Um de seus maiores méritos é o de combinar o privado – nunca o íntimo – com o externo (o entorno, a citação literária e o histórico reciclados), seja sob o reconhecimento das ruínas como última possibilidade, seja inventando mundos possíveis, uma alteridade de paisagens em que a exterioridade marca sempre uma diferença, uma distância que, no entanto, remete à circunstância de vida do poeta. A rainha Maria comporta-se, então, como a testemunha que dá fé e ao mesmo tempo fabula.

Mais do que desencanto, em Ángel Escobar trata-se do desastre da Utopia encarnad0 no próprio corpo. Negro, órfão e internado desde criança em escolas estatais, Escobar suicida-se em 1997, após passar seus últimos anos em hospitais psiquiátricos. Sua poesia, dura e obsessiva, fechada em si mesma, embora não sem ironia, traduz o drama pessoal de quem descobre que a justiça prometida não existe e que a história se tornou, afinal, teatro e falsificação. Seus temas recorrentes são a fragmentação do Eu e as vozes do Outro (a sua é uma escrita do duplo e da alucinação), a própria morte e o lugar marginal do sujeito negro na sociedade cubana, que ele vê como um novo crucificado. Rimbaud, Vallejo, Borges e Martí são alguns dos poetas que o influenciaram.

Incluímos nesta antologia seu magnífico poema “Coloquial”, que o autor nunca incluiu em seus livros e que conta o início de sua loucura durante uma viagem à União Soviética em 1987. Esse poema expressa a percepção do poder que tem Escobar em sentido amplo, e do desamparo do indivíduo em uma sociedade totalitária; e, mais ainda, a resistência deste último e suas palavras diante do sinistro, em uma atmosfera rarefeita pela “policía del mundo” que, por trás do centenário da Revolução Francesa, impõe o controle de fronteiras e de fluxos humanos. O poeta, detido pela polícia soviética, tampouco se sente seguro no Ocidente. Enquanto um amigo lhe fala da “Francia profunda”, ele sente apenas o silêncio dos cadáveres, os “muertos de Tiananmen”, os ”fusilados de adentro”.

Rolando Sánchez Mejías e Antonio José Ponte, como todos os poetas e escritores da Geração de 1980 em geral, enfrentam o dilema de redescobrir o melhor da tradição poética cubana e renová-la, abrindo-a a novas correntes internacionais para dotá-la de um carácter cosmopolita, decididamente moderno e não insularizante. Se a releitura, nos anos 1980, de Lezama e Piñera (ainda marginalizados pelo regime), permite-lhes recuperar um lugar como homem de letras e deixar para trás o conversacionalismo como norma oficial (tábua de leis que fraturam sem passar por ela ), na década de 1990, a manipulação dessas duas figuras (especialmente Lezama) pela política cultural do Estado (mais nacionalista do que propriamente socialista após a queda do Muro), obrigou-os a transcender o nacionalismo implícito em sua própria tradição literária, para liberar sua poética pessoal. É um processo que, por outro lado, acompanha de forma exemplar o trânsito de uma promoção literária que só se consolidou como um todo na última década do século, barricada contra essa dupla ancoragem Estado/Nação, circunstância que em nossa opinião acelerou a lucidez dos criadores, modificou suas estratégias escriturais e colocou o obstáculo necessário para, mais uma vez, tensionar as relações entre poesia e história.

Aliás, Lorenzo García Vega referiu-se a um obscurecimento do nacional nesses poetas, um eclipse que, sem dúvida, limpa, mas em outro nível, o legado dualista Martí/Casal. Se no primeiro há um retorno à letra – à escrita – enquanto se reduz ao mínimo (paródia incluída) seu alcance histórico, espiritual e metafísico (não se deve esquecer que a morte de Martí foi vivida como limite difícil de ultrapassar, que se privilegia acima de tudo e do qual quase nenhum escritor poderia escapar), o segundo tomará uma posição inédita, não meramente alternativa, se se compreende melhor a ironia de seu estilo, sua ruptura com a tradição e seu exemplo de resistência vital e literária. Casal é o poeta que esta geração resgata no mais sombrio da história, o Período Especial. O reconhecimento de sua modernidade e de sua atitude perante uma sociedade em crise leva a uma atualização, a uma maior pluralidade da poesia cubana. Em outras palavras, ao desdobramento de práticas de escrita capazes de desertar do círculo sem saída da literatura-nação.

“Filhos da palavra”, como já se disse, os poetas dos anos 1980/90 herdam um vasto campo que vai de Vallejo e Huidobro a Borges e Paz, de Mallarmé a Michaux, de Benn a Enzensberger, mas também da prosa de Kakfa à de Bernhard e da filosofia de Nietzsche ao pós-estruturalismo (Derrida, Deleuze, Guattari etc.). Com eles, não só os temas se tornam mais complexos, mas também as referências culturais e literárias e o estilo entendido em termos habituais, a sintaxe e as relações mais ou menos evidentes entre escrita e tradição etc., dando origem a várias propostas: conceituais, experimentais, neobarrocas, neomarginais, entre outras. Esses escritores também estabelecem espaços e revistas autônomos e independentes – o caso mais significativo é o da revista Diásporas (1997-2002), coordenada por Rolando Sánchez Mejías e Carlos. A. Aguilera –, pelo que pronto se enredam, através da literatura, numa dinâmica regida pela censura e pela repressão, que obriga muitos deles a emigrar ou a se exilar.

Também autor de uma formidável obra narrativa, o que caracteriza Sánchez Mejías talvez seja sua ideia de poesia como experiência da escritura e, ao mesmo tempo, como exploração dos limites da linguagem, o que o leva a transgredir as normas do gênero, apelando à prosa e ao uso de outros discursos (antropológicos, políticos etc.) como lugares de confluência. Embora sua ênfase seja lúdica ou paródica, ele não está isento de um forte ethos civil e de uma percepção dolorosa onde pulsa a questão da poesia depois do Holocausto. A partir de uma perspectiva bastante conceitual, que o separa tanto do metafísico quanto do neobarroco, propõe-se revelar o texto como mecanismo ou artefato; isto é, como mera superfície, às vezes titeresca. Daí sua riqueza sintática, onde os espaços em branco e a distribuição dos signos na página adquirem uma eficiência inusitada, assim como o caráter performático de alguns de seus poemas.

Por sua vez, a poesia de Ismael González Castañer põe em primeiro plano um sujeito marginal e muitas vezes negro, embora não a partir da posição agonizante de Escobar, mas do que o próprio Ismael chamou de “território da familiaridade”. Trata-se de uma poesia baseada no diálogo entre cultura letrada e cultura popular, onde se misturam a citação literária e a referência local, o banal e a morte, a graça e o inconformismo, e na qual a frase é constantemente abordada como construção rítmica ou musical. Nada populista, criador de uma nova prosódia, González desvia-se do afronegrismo para investigar a lógica interna do desenraizamento e de tudo o que consegue sobreviver a ele: a música, a festa, o gozo da linguagem. Produz assim uma escrita onde o sincrético se exprime em toda a sua pluralidade e, talvez por isso, de uma forma fresca, surpreendente e suportável.

Muito diferente é Antonio José Ponte, também ensaísta e narrador. Sua poesia apresenta um forte equilíbrio interno, fruto de uma cultura extensa e bem assimilada que vai dos líricos gregos aos místicos espanhóis e do simbolismo a Pessoa, Kaváfis e Octavio Paz, entre outros. Para a poesia cubana atual, Ponte representa um dos casos mais bem-sucedidos de retorno à modernidade por meios não experimentais. Seu estilo é culto mas não “cultista”, comedido e ao mesmo tempo ágil, e denota uma rica veia elegíaca onde o sentimento de perda (por uma idade prévia ou por vir) é sempre exposto com sobriedade. Outro de seus acertos é escrever, não sobre as ruínas, mas a partir delas, o que o aproxima de uma concepção benjaminiana da história. Herdeiro do legado de Orígenes, Ponte tem sido ao mesmo tempo um dos mais apurados críticos tanto da mitologia nacionalista desses escritores (Lezama, Vitier etc.) quanto de sua manipulação ideológica pela política cultural.

Autor de Algo de lo sagrado, um dos poemários mais sólidos da Generacíon del 80, Omar Pérez inicia com uma poesia civil, na qual se põe contra o mito do herói e a pedagogia revolucionária, entre outros entraves do discurso do regime. Seu tom é irônico e mesmo mordaz, mas sempre exemplarmente sutil, e talvez por isso tão eficaz. Nessa fase é visível a influência da poesia anglo-saxônica, particularmente Eliot e Auden, magistralmente assimiladas pelo poeta. Mas logo sua obra experimenta certa ruptura, em sintonia com a sua aproximação do zen e do misticismo, com o conhecimento de outras línguas e com a procura de um verso mais próximo da oração e da recitação. Nesse novo período, Pérez insiste em sustentar o caráter transcultural, sem fronteiras, mas também primevo – próximo ao canto – da poesia. É assim que combina em seus textos não apenas palavras de diferentes idiomas, mas também ditos populares, letras de músicas, citações da Bíblia e do Tao etc. Omar Pérez nunca abandonou sua lucidez, a dúvida intelectual como forma de distanciamento, mas a irreverência e a rebeldia de seus primórdios para trocá-los por um gesto mais antropológico.

Duas vozes magníficas fecham esta antologia de forma insuperável: Damaris Calderón e Alessandra Molina. Se o desnudamento e a aspereza caracterizam a primeira, o esplendor e luxo verbal são a marca da segunda. O estilo de Damaris Calderón é afiado e cortante, de uma vitalidade surpreendente, que se baseia em seu talento para capturar a existência como um rasgo, ligando seu próprio drama, livre de todo patético, ao de outros poetas, de cujas “histórias de vida” se apropria para relativizar a dor da sua. Ver, por exemplo, seu excelente poema “A Marina Tsvietáieva”. Alessandra Molina, por outro lado, não foca tanto a existência quanto a própria linguagem. Para ela, a linguagem é intelecção e gasto, luxo de detalhes, arborescência e, sobretudo, um teste – o maior dos obstáculos: aquele que a impede de voltar a ser natureza. Como disse Antonio José Ponte, Alessandra Molina é a poeta cubana que se move com mais confiança dentro do mistério. Embora formadas ambas em uma leitura aprofundada dos poetas de Orígenes, eles parecem se desviar em direções opostas. Se Damaris assume o legado crítico de Virgilio Piñera (em quem caberiam estes seus versos: “despojado de la lírica, expulsado para siempre de la épica”), Alessandra Molina dá continuidade ao exemplo de Lezama: “Sólo lo difícil es estimulante”. Só há substância onde se risca o véu do indizível e a poesia volta a ser aura, meio-dia exato, verticalidade.

 

* Versão ligeiramente modificada do prefácio de Poesia Cubana Contemporânea. Dez Poetas. Tradução Jorge Melícias, prefácio Pedro Marqués de Armas. Lisboa, Antígona, 2009.