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A dança da poesia: uma semiótica do caractere chinês

Tive a oportunidade de assistir, em 23 de abril passado, em Cantão, à entrega do 6º Prêmio Poesia e Humanidade, cujo objetivo é homenagear escritores que se notabilizem como expoentes tanto da poesia de seus países, como de valores humanos universais. O prêmio, atribuído, este ano, ao sueco Tomas Transtrommer, foi criado pelo poeta chinês Huang Lihai, que o entregou pessoalmente ao representante do escritor escandinavo em curta, informal cerimônia. Participaram do evento diversos poetas, alguns de grupos atuantes em Guangdong e arredores, inclusive editores da interessante revista independente Poesia Chinesa e Ocidental (中西诗歌).

A premiação aconteceu no teatro da Companhia de Dança Moderna de Guangzhou (Cantão), o grupo de presença mais constante e antiga nos palcos chineses, com mais de vinte anos de atividade, que apresentou, logo em seguida, o belíssimo espetáculo de dança Sobre a caligrafia. A noite foi uma vívida amostra do rico movimento cultural de Cantão (em português, usamos a mesma palavra para traduzir os nomes da cidade de Guangzhou e da Província chinesa de que é a capital, Guangdong), região ativa e peculiar em matéria de artes, literatura e cultura.

Historicamente, Guangdong, grande província do Sul, principal zona industrial e exportadora do país há séculos, exerce um papel bem particular na política e na cultura chinesa, pela relativa independência e distanciamento do centro do poder, Pequim, no Norte, e pela permeabilidade e receptividade em relação ao exterior. É uma zona de contato com outras culturas, ponto de partida da “rota da seda marítima” e das navegações chinesas. Também foi a região mais cedo alcançada pelos navegantes e comerciantes do Ocidente e, por consequência, um dos palcos principais dos acontecimentos dramáticos dos séculos XIX e XX – os estertores do milenar Império chinês, então na Dinastia Qing; as Guerras do Ópio, os tratados desiguais e a submissão e fragmentação do país pelas potências imperialistas; a proclamação da República; a invasão japonesa e a II Guerra Mundial; a Revolução de 1949 e desdobramentos posteriores.

A dança dos caracteres chineses

O espetáculo de dança daquela noite de poesia é uma coreografia da diretora da Companhia, Liu Qi, e tem sido apresentado pela China ao longo de 2011. O espetáculo é a versão revista e ampliada de uma coreografia de 2005, a qual foi apresentada em vários países. No decorrer das quase duas horas da apresentação, desenvolveram-se sequências de movimentos e formas que reproduziam estilos de época e de execução da caligrafia chinesa, imitavam caracteres específicos, tematizavam radicais componentes dos caracteres. Os bailarinos trabalhavam zonas quadradas no palco (o caractere se escreve em um quadrado, seus traços se combinam dentro desse espaço), traçando a evolução histórica dos caracteres chineses.

Dos diversos momentos do espetáculo, recordo a surpresa do início, em que a dança desenhava formas amplas, curvilíneas e pesadas, de movimentos lentos e alongados, imitando o caractere tradicional antigo, que se vinculava ao sortilégio e à adivinhação em cascas de tartarugas e ossos de animais, aos bronzes da Dinastia Xia. Também o final, de formas simplificadas e retas em movimentos curtos e rápidos, imitando o caractere simplificado utilizado em ambiente gráfico e virtual contemporâneo.

Recordo ainda – pela diferença em relação a outros momentos; pela delicadeza e leveza de movimentos e gestos, executados apenas pelas bailarinas, em roupas prateadas brilhantes no escuro; pela explosão de movimentos circulares velozes, ágeis, quase voadores, horizontalizados – segmento em que me parece reproduziram-se os movimentos voluteantes e vaporosos da caligrafia mais desenvolta e livre (cao, ou huai-shu), que se confunde com o desenho de nuvens e montanhas em certas pinturas tradicionais, como que se dissolvendo a partir de um poema escrito em um canto superior da tela. Em outros momentos, os gestos retos, firmes e marciais, assaltando em traços curvos os espaços quadriculados, reafirmavam algo que já havia observado em espetáculos da companhia de dança moderna de Xangai, dirigida pela bailarina e coreógrafa Jinxing: que a dança moderna chinesa é profundamente influenciada pelo kung fu e as artes marciais, como, de resto, também o eram manifestações tradicionais de artes de palco, como a ópera de Pequim.

Dança e caligrafia: o corpo se inscreve no signo escrito

Na verdade, é muito antiga, na China, a relação entre a dança e a caligrafia, cujo exercício como arte máxima é uma manifestação peculiar a esta cultura. Grandes calígrafos do passado inspiravam-se em movimentos de dança e vice-versa. A caligrafia é vista como “dança fixada”, congelada, concentrada a um espaço; a dança, uma caligrafia fluida ou estendida.

Precisamente, a propósito dessa relação, o espetáculo de Liu Qi trouxe-me à baila, sobretudo, um aspecto importante do caractere – o sinograma, ou hanzi (汉字) –, o qual é pouco comentado no Ocidente e que tem implicações para a tradução, especialmente de poesia, arte literária na qual o cruzamento com códigos exteriores ao da língua é essencial: o que chamaremos aqui (a título de um exercício preliminar ou incipiente de análise semiótica) de substrato corporal-caligráfico do sinograma, que se reflete tanto no significante – o formato imediato do sinograma –, como no significado.

Primeiro nível: caligrafia e enunciação

Em um primeiro nível, o que chamo de substrato corporal-caligráfico é aportado desde o exterior da cadeia linguística propriamente dita, incorporando-se ao signo escrito em sua enunciação, por meio da caligrafia, afetando o significante, emprestando-lhe variações individuais, acrescentando-lhe um viés pessoal. Relaciona-se, assim, ao movimento da escrita ela mesma, animando, por assim dizer, essa escrita, por intervenção do corpo (mais que da mão) que a desenvolve.

É um aspecto da significação que se desenvolve especificamente na escrita chinesa, cuja complexidade torna independente e distanciada da linguagem oral, quase como uma outra linguagem, que corre paralela a esta, não se limitando à reprodução da língua falada, ainda que nela se apoie. Aqui a escrita, tomada enquanto caligrafia, se assimila à arte marcial da espada, ao kung fu e à dança, quando considerada no nível da enunciação.

Segundo nível: metáfora visual, abstração do movimento

Em um segundo nível, morfossintático, esse substrato corporal-caligráfico se manifesta (e de maneira permanente, incorporado ao caractere, a sua forma-significante) assimilando-se ao aspecto da visualidade do hanzi (a que se ateve Fenollosa), na medida em que o caractere também reproduz, imita visualmente, tanto (1) o corpo humano, em diferentes posições, funções e partes; como (2) o próprio movimento, como abstração gráfica ou metáfora pictórica. Nesse nível, é um traço semântico, mais ou menos complexo, como em certos radicais, componentes de caracteres.

No primeiro caso, lembremos que os caracteres e radicais (caracteres “básicos”, ou mais simples, que podem atuar como building blocks, segmentos formadores de caracteres mais complexos) que reproduzem total ou parcialmente o corpo humano estão entre os de maior frequência na escrita chinesa. Os exemplos são onipresentes. Apenas a título de ilustração, recordemos alguns evidentes: o radical de “mão” (shou, 手) integra palavras como “olhar, ver” (kan, 看),representação da mão sobre o olho, juntamente com o radical de “olho” (mu, 目); também “punho” (quan, 拳). Ainda, em sua versão contracta, lateralizada, como segmento à esquerda do caractere: “tocar, sentir, alcançar” (mo, 摸); “procurar” (zhao, 找); “buscar, atender” (jie 接); “bater,fazer (executar uma ação simples)” (da, 打). Lembremos também o caractere para “grande” (da, 大),que reproduz um corpo com os braços e pernas bem abertos; “pequeno” (xiao, 小), um corpo que se agacha com os braços pendentes dos lados; etc.

No segundo caso, há um aspecto, na semântica do caractere, relativo à sua iconicidade, que é a reprodução visual de conceitos abstratos, como na pintura abstrata. Um caso evidente de metáfora visual de movimento é o chamado “radical de corrida” (辶), componente de diversos caracteres. Lembra, para quem recorda o desenho de Henfil, seu traço de representação de corrida, aplicado aos pés dos personagens nos cartuns; no caso, esse radical se aplica aos pés dos caracteres. Tome-se, por exemplo, yun (运). Caractere muito polissêmico, geralmente aporta à palavra (a “palavra”, morfema, em geral terá um ou dois caracteres) um traço semântico de movimentação, transporte, mudança, transformação. Alguns exemplos: 运动, (yun dong), esporte, exercício; 运送 (yun song), transmissão, condução, transporte de algo (“conveyance”); 运气 (yun qi), sorte, fortuna, destino; 转运 (zhuan yun), transporte; 命运 (ming yun), destino.

O caractere ‘yun’ (运) é composto pelo “radical de corrida” (辶), que lhe traz o significado – o traço semântico de movimento –, acrescido ao radical de ‘nuvem’ (云), que soa também ‘yun’ e que traz, por analogia, a imagem sonora, significante. Note-se que esse caractere segue o método de composição:   [radical de significado] + [radical sonoro]. Assim, o componente semântico é manifestado somente pelo radical de corrida; o radical de “nuvem”, aqui, não deve ser interpretado em seu significado, porque funciona, nesse caso, apenas como componente sonoro.

Literatura e kung fu

A concepção de que o corpo em movimento se integra ao caractere e o anima, aportando-lhe significado, é muito antiga, mas está presente, na China, também em manifestações bastante contemporâneas de arte. Cite-se, por exemplo, dos personagens do filme de Zhang Yimou Herói, o casal vivido por Maggie Cheung e Tony Leung Chiu Wai, que são exímios mestres de kung fu e de caligrafia.

Na literatura chinesa, esse aspecto corporal-físico do hanzi é frequentemente lembrado e mesmo tematizado. Os romances de kung fu (novelas wuxia), antecessores desse gênero de filme de ação típico da China que é o cinema de artes-marciais, trabalhavam explicitamente com essa questão, sendo também romances de caligrafia e medicina tradicional. Novelas do escritor taiwanês Jin Yong (por exemplo, Raposa Voadora da Montanha Nevada – 雪山飞狐, Xue Shang Fei Hu) começam com uma tabela de descrição de pontos de acupuntura.

Esse interessante gênero literário desempenhou, no século XX, período da consolidação da nação moderna, um papel semelhante, para a China, do que as novelas de cavalaria tiveram na Europa do Romantismo, retomando motivos literários de antigas histórias de aventuras e heroísmo. Há novelas, por exemplo, nas quais lutadores de grupos rivais combatem para a obtenção do exemplar único e precioso de um livro de kung fu, objeto de valor místico e poderes sobrenaturais, o qual traz ensinamentos muito avançados da arte marcial e, afinal, revela-se legível apenas para quem seja um praticante iniciado nos conhecimentos e estilo daquela determinada escola. O livro seria ilegível para os demais porque conteria, somente, caracteres de uma escrita altamente estilizada e preciosa, que ensinaria, da luta, mais que os movimentos e golpes, mas demonstraria o seu sentido profundo, referente ao contexto doutrinário de correntes taoístas ou budistas especificas. Nesse livro, os movimentos de luta encontram-se assimilados aos traços caligráficos, a partir de uma enunciação na qual o ato de fala (ou de escrita) é amálgama do movimento físico e dos traços; o signo se plasma ao referente.

Aqui se desenvolve um motivo literário advindo de um dos conceitos fundamentais das teorias tradicionais da pintura e da caligrafia chinesa: o de que o significado se realiza, na obra, para além da semelhança formal com o objeto retratado (a “natureza”), na assimilação, pelo artista, de sua natureza profunda, recuperada no ato mesmo da pintura ou da escrita. Segundo um dos grandes teóricos da arte pictural tradicional chinesa, Chen Yenyuan (Dinastia Tang): “Os pintores atuais, se conseguem, com grande esforço, uma semelhança formal [com os objetos naturais retratados], não conseguem fazer nascerem os sopros harmônicos. Ora, se em sua pintura conseguissem reproduzir os sopros harmônicos, a semelhança formal surgiria por si mesma, naturalmente”. [citado por François Cheng, traduzido do francês por nós]. Os “sopros harmônicos”, qualidade do “qi” (气) que anima os seres (a que François Cheng traduz como “sopro-espírito”), levam a natureza profunda dos seres aos traços da pintura e da caligrafia.

Caligrafia e significação

É o próprio François Cheng que nos esclarece, em outro texto, a presença significativa (isto é, criadora de sentido) do movimento na caligrafia: “Na prática dessa arte, o calígrafo procura redescobrir o ritmo de seu próprio ser mais profundo, entrando em comunhão com os elementos. […] Esses imemoriais e sempre contidos gestos engendram a cadência, instantaneamente alcançada com os traços (strokes), os quais, como em uma dança de espadas, penetram e cruzam, sobem e mergulham, contendo um significado próprio, assim como acrescentando um outro ao sentido codificado da palavra. ” [itálicos nossos].

Assim, na caligrafia realiza-se a unidade entre a pintura, a escrita-texto linguístico e o corpo em movimento (a dança). Para além da busca de uma escrita “bonita” e legível, prováveis ideais dessa disciplina no Ocidente, onde a produção de textos com a marca individual do sujeito-calígrafo é um objetivo também presente, mas menos acentuadamente, a caligrafia chinesa é o exercício de uma escrita “viva”, animada pelo sopro-espírito.

Nesse sentido, sua beleza particular poderá chegar à ilegibilidade, acentuando, na escrita de um sujeito, a expressão única e singular, a afirmação de uma via excêntrica, expressão solitária desse sujeito do discurso. A caligrafia chinesa não é apenas construção de um “objeto belo”. Para além disso, será o aprofundamento da característica única e insubstituível do texto produzido ou reproduzido por um calígrafo; de sua manifestação como arte, na construção de sua “aura” (no sentido de Walter Benjamin), até chegar-se a um “objeto-sujeito”, cuja beleza aparecerá por integração, na enunciação, e no tratamento da metáfora visual de movimento, componente de diversos caracteres.

É principalmente a partir dessa ilegibilidade, na qual o signo escrito transita da convenção social para a expressão de um caminho individual, e então ultrapassa essa fronteira e “se perde” como código (veículo de comunicação imediata de sentido), que gosto de pensar a afirmação de Liu Qi, de que, no espetáculo dos caracteres, colocou-se “em busca do radical perdido”. Não sei se a coreógrafa teve a intenção de parodiar o título da obra-prima de Proust nessa declaração, mas a possibilidade é instigante. O “radical perdido” (talvez no tempo, um tempo imemorial, no qual a escrita realizaria o ideal da imitação perfeita, ou melhor, dissolver-se-ia na unidade com a natureza que representa; ou talvez no espaço, em um traço que se distancia da convenção social que a torna escrita e se entrega à ação de quem escreve…) poderia ser a sombra de um mítico componente do caractere, por cuja intervenção este se tornasse único e plural, expressão simultânea da história (social) e da experiência (individual); do signo e do referente, do sujeito e do discurso, do falado e do vivido. A frase ilegível de um livro oculto, citado em uma novela de kung fu. O radical perdido talvez esteja no corpo, nos seus movimentos, simultâneo ou anterior à sua manifestação caligráfica.

Caractere e tradução poética

Podemos afirmar, então, que o sinograma se caracteriza pela síntese intersemiótica, mais do que pela visualidade, que é um dos aspectos dessa síntese. Isso tem implicações para a tradução de poesia chinesa. Uma tradução de poema chinês poderá incorporar elementos de visualidade do caractere tradicional, como na poesia concreta ou visual. Porém, indo mais longe, uma via interessante é, sem dúvida, avançar em um sentido multimídia: o poema poderia transcender sua dimensão de “texto”, incorporando extensões para aspectos visuais, musicais e de dança, movimento. Isso levaria a realizações via performance, na aparição limitada no tempo que caracteriza o espetáculo. Também poderá dar em interessantes experiências pela via virtual, apoiando-se em vídeo-texto e intervenções sensoriais, 3D…

Mas aqui, uma nova questão cabe se colocar: o poema chinês é, tão simplesmente, um texto escrito, não deixa de o ser. Portanto, uma produção multimídia, em última instância, também o perde, pelo extremo de tentar reproduzir pela combinação complexa de meios diversos um caminho simbólico que ele sintetiza com autoevidente simplicidade e concisão, síntese histórica e semiótica única. Pois o que não é reprodutível, justamente, é essa possibilidade tão intensa de cruzamento de sistemas semióticos, inclusive a dança, que se atualiza no texto escrito.

Há iniciativas interessantes e muito válidas de tradução via poesia visual, mas não necessariamente isso será a melhor saída. Ao priorizar-se o acréscimo da dimensão da visualidade, corre-se o risco de, ao contrário do que se queria, acentuar a pobreza do significante escrito ocidental em comparação ao código chinês, em decorrência de colocar-se em evidência o grafismo, o aspecto gráfico, alfabético do texto, que no código da língua ocidental é apenas um veículo instrumental, desprovido de significação. Seria algo como produzir, na acentuação do grafismo, uma espécie de caricatura ou imitação simplificada demais, primária – através de um veículo inadequado –, de um signo gráfico muito mais complexo. Difícil não concluir, às vezes: “os chineses fizeram melhor que isso”…

O problema se acentua quando observamos que a riqueza do poema chinês escrito não se reduz ao nível morfológico, do caractere: além da abertura para a dança, pelo substrato corporal-caligráfico a que nos referimos acima, há também o aspecto sonoro, que chega à complexidade de construir esquemas ao nível sintático-fonético que são intraduzíveis apenas na cadeia linguística (por exemplo, o esquema tonal – a língua é tonal e há fórmulas para arranjos de tons na poesia clássica).

Tradução multimídia e iconicidade do texto poético

Chega-se aqui a um limite intransponível: a escrita é essencialmente diferente. A chinesa é semioticamente mais rica que a ocidental, consolidada que foi em contextos históricos antiquíssimos, ambientes e espaços geográficos particulares, e sobre fundamentos culturais e filosóficos específicos e diferenciados dos verificados no Ocidente. A escrita chinesa nasceu em tempos imemoriais, vinculada ao sortilégio, ao rito, ao pensamento mágico-imitativo, que chegou mesmo a uma complexidade apoteótica ao elaborar-se em teoria política, com o confucionismo. Essa escrita se desenvolveu associada a processos de significação relativos a outros modos de produção, com outras divisões sociais do trabalho, participando de uma cultura que valorizava uma visão holística e integral das atividades humanas e das artes, tendendo a combiná-las, não diferenciá-las.

Um dos grandes nomes da poesia da Dinastia Tang, Wang Wei, era também pintor, calígrafo e músico; o ideal da Dinastia Tang era o do artista completo. Assim como o da escrita era o da “significação completa”, um texto que interferia na natureza pela imitação, e que era ao mesmo tempo compósito de significados visíveis (semantema vivo, aparente); reprodução visual, sonoridade e corpo em movimento.

Mantém-se pertinente, é claro, a alternativa de trabalharmos sobre os recursos convencionais de nosso código escrito, ocidental, alfabético – o qual já sabemos, desde sempre, que perderá o original chinês em grande medida. Mas também sabemos que é própria desse código uma ampla reserva de meios à disposição da poesia, desenvolvidos pela tradição, para aproximar aquele original cuja tradução empreendemos, no sentido de incorporar iconicidade ao texto.

Assim, ao lado de uma proposta intersemiótica – que irá da incorporação da visualidade ao texto, para além –, teríamos, como programa de tradução, o velho e bom código escrito-fonético da língua portuguesa. Mas trabalhado em seus recursos sonoros e imagísticos, em sua sintaxe: se a poesia já é um texto estranho, artificial, tratar-se-ia de desenvolver o poema traduzido sobre a artificialidade dessa linguagem, a sua alteração em relação ao uso comum diário.

Convém lembrar que nossa tradição abriga amostras valiosas das possibilidades icônicas do poema português escrito. Um poema de Camões tem recursos sonoros que acrescentam significações exteriores na cadeia de fala – no texto abaixo, um dos mais conhecidos do poeta, a dor até física do lamento e o pranto se inserem metaforicamente, pela sonoridade e pela sintaxe, no texto, remetendo à sua enunciação. As aliterações e assonâncias (por exemplo, o uso dos /i/, das consoantes dentais-oclusivas /t/ e /d/) introduzem ligaduras vocálicas, entremeadas com rupturas, quase síncopes. Essas interferências musicais na linearidade do discurso quebram o signo discreto e aproximam o poema de códigos contínuos. A circularidade semântica do fecho traz um sentido de encerramento no espaço, de clausura, dor incontornável:

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te;

Roga a Deus que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.


Bibliografia:
1.    BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In: Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política – volume 1. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
2.    CAMÕES, Luís Vaz de. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1981.
3.    CHENG, François. Souffle-ésprit. Textes théoriques chinois sur l´art pictural. Paris: Éditions du Seuil, 2006.
4.    DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1988.
5.    JIN, Yong. Fox volant of the snowy mountain. 2a. ed.  Hong Kong: The Chinese University Press, 1996.
6.    MINFORD, John; LAU, Joseph S.M. (orgs.). Classical Chinese Literature: an anthology of translations from antiquity to the Tang Dynasty. New York: Columbia University Press, 2000. v. 1.
7.    Xu Yuanchong. 300 Tang Poems. [edição bilíngue] Beijing: Higher Education Press, 2000.


 Sobre Ricardo Primo Portugal

Escritor e diplomata, graduado em Letras pela UFRGS. Está completando sete anos vivendo e trabalhando na China, primeiro em Pequim, depois em Xangai e, a partir de 2010, em Cantão (Guangzhou). Publicou: DePassagens (Ameop, 2004), Arte do risco (SMCPA, 1992), entre outros. Foi co-organizador da edição bilíngue chinês-português Antologia poética de Mário Quintana (EDIPUCRS, 2007), primeiro livro de poeta brasileiro traduzido para o chinês, com o apoio do Consulado Geral do Brasil em Xangai. Em junho passado, saiu, pela UNESP, Poesia completa de Yu Xuanji, edição bilíngüe da obra da poetisa clássica chinesa (Dinastia Tang), com traduções suas, em parceria com a esposa, Tan Xiao, primeira obra completa de poeta daquele país editada no Brasil, traduzida diretamente do original chinês. (ver: http://www.editoraunesp.com.br/catalogo-detalhe.asp?ctl_id=1267).