Internacionalmente conhecido como “o pai do futurismo”, David Burliuk foi um dos principais contribuintes para o período seminal do modernismo nas primeiras décadas do século XX.
David Burliuk nasceu em 21 de julho de 1882, em uma pequena aldeia perto de Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia. Havia seis filhos na família com profundas raízes cossacas ucranianas por parte de pai e bielorrussas por parte de mãe. Dois deles, Volodymyr e Lyudmila, também se tornaram artistas, e o irmão de David, Mykola tornou-se poeta.
A parte de suas memórias em que David descreve sua infância pode ser reduzida a uma frase: ele desenhava o tempo todo. Seus colegas de escola o chamavam de artista, e o professor de arte local escreveu para sua mãe dizendo que o menino tinha “um talento abençoado por Deus”.
Burliuk visitou pela primeira vez um grande museu, a Galeria Tretyakov em Moscou, quando tinha 15 anos. Como escreveu mais tarde, nos sete anos seguintes, foi influenciado por Repin, Shishkin, Serov, Kuindzhi e outros realistas russos, mas então seus ídolos se tornaram seus oponentes. Repin disse sobre uma exposição das pinturas de Burliuk: “Esses seguidores de Cézanne estão arruinando as pinturas com seus rabos de burro!”.
Durante a primeira década do século 20, Burliuk estudou artes em Odessa, em Kazan, em Munique (Academia Real de Arte) e em Paris (École des Beaux-Arts). Seu caráter exuberante e extrovertido foi reconhecido por Anton Ažbe, seu professor na Academia de Munique, que o chamou de “um maravilhoso cavalo selvagem das estepes”.
Durante férias de verão de três meses em Odessa, ele desenhou mais de 350 esboços. Passava 20 horas por dia desenhando ou pintando e nunca parecia estar cansado. Um professor, surpreso, disse-lhe: “Isso não é arte. Isso é carimbo de fábrica!” Mas Burliuk felizmente ignorou a advertência.
Sua arte era um amálgama de influências fauvistas, cubistas e futuristas, que ele absorveu e fundiu com seu amor pela natureza e seu fascínio pelas formas e desenhos da antiga cultura cita, que se estendeu desde as estepes centrais da Ásia até a atual Ucrânia. Burliyk reuniu um grupo de escritores, poetas e artistas chamado “Hylaea” – o nome grego das terras citas ao redor da foz do rio Dnipro, o mais importante da Ucrânia, que Heródoto menciona ao descrever os feitos de Hércules. O nome pode ter sido inspirado por desenhos em mapas antigos que mostravam Hércules descansando no Dnipro após suas vitórias.
Burliuk tinha uma admiração especial pelo folclore ucraniano. Uma de suas favoritas era a lenda de Mamai, um cossaco que personificava a visão do próprio artista de bravura, autossuficiência e individualismo rude.
Burliuk, Cossaco Mamai, 1912
A aparência de Burliuk era incomum, para dizer o mínimo: ele era baixo, mas com um corpo maciço e um tanto desajeitado. Seus contemporâneos escreveram que seu rosto bombástico lembrava o de um lagarto gordo. Ele até se orgulhava de seu olho esquerdo de vidro, que tinha desde os primeiros anos. Gostava de todas as mulheres, sem exceção, e quanto mais voluptuosas, melhor. E considerava sua própria sede de criatividade um sinal sexual, um impulso instintivo de autorreprodução.
Em 1912, casou-se com Marussia Viazemskaya, a mulher que sempre chamou de seu grande amor. O jovem casal morava em uma suíte de hotel no centro de Moscou, onde cantar e tocar música era permitido das 9h às 23h. Amigos o chamavam de “ninho da música”. Foi onde ele e seus colegas futuristas produziram talvez o mais provocativo (e um dos mais famosos) manifestos futuristas: “Um tapa na cara do gosto público”.
Burliuk participou ativamente de exposições de vanguarda em Kiev, Moscou, São Petersburgo e Munique. No início de 1914, quando a notoriedade dos futuristas atingiu seu auge, David Burliuk, Vladimir Maiakovski e Vasily Kamensky percorreram 17 cidades em todo o Império Russo, vestindo coletes berrantes e trazendo cenouras nas lapelas e, às vezes, animais pintados em seus rostos. Suas aparições e apresentações extravagantes, que incluíam beber chá e recitar poesia no palco sob um piano suspenso, atraíam plateias lotadas. Eles escandalizaram muitos, mas também conquistaram adeptos para a nova arte.
Burliuk era amigo dos grandes artistas de vanguarda Mikhail Larionov e Vasily Kandinsky e foi membro de vários grupos, principalmente o Valete de Ouros, que incluía Kazimir Malevich. Maiakovski escreveu mais tarde: “Ele era um grande amigo, meu verdadeiro professor. Burliuk fez de mim um poeta. Ele leu para mim os franceses e alemães e me empurrou livros. Ele andou e falou e não desistiu por um segundo. Ele me dava 50 copeques por dia para que eu não ficasse com muita fome para escrever”. Maiakovski também mencionou Burliuk em um de seus poemas mais conhecidos, “Uma nuvem de calças”.
De 1915 a 1917, Burliuk residiu nos Urais e ia frequentemente a Moscou e Petrogrado. Após o golpe bolchevique de outubro de 1917,[1] passou vários anos viajando pela Sibéria , pelo Japão e o Canadá . Na Sibéria deu concertos futuristas e vendeu suas obras. No Japão e no Canadá, pintou, organizou exposições e promoveu o Futurismo.
Em 1922, Burliuk e sua esposa se mudaram para os Estados Unidos e se estabeleceram primeiro na cidade de Nova York, onde viveram até 1941, e depois em Hampton Bays, Long Island, onde viveriam suas últimas duas décadas.
Enquanto estava no exílio, ele acompanhou de perto os desenvolvimentos em sua Ucrânia natal, onde em meados da década de 1920 houve um breve período durante o qual os controles sobre a vida cultural foram relaxados e a “ucraninização” oficialmente promovida. Em 1925, foi cofundador da Associação dos Mestres Revolucionários da Ucrânia.
Em 1940, Burliuk fez uma petição ao governo soviético para permitir que visitasse sua terra natal. Em troca, ele ofereceu uma coleção considerável de material de arquivo pertencente a seu contemporâneo e amigo, o poeta Vladimir Maiakovski. Seu pedido foi recusado. Ele só seria autorizado a visitar a URSS duas vezes – em 1956 e 1965.
Seus repetidos pedidos para publicar uma coleção de suas obras na URSS (integrada também pela Ucrânia) foram ignorados. Ele enviou suas pinturas para a União de Artistas da URSS, mas nunca obteve resposta. Burliuk estava perplexo e desesperado: não podia compreendar por que seu nome havia sido apagado dos anais da arte que ele mesmo havia ajudado a construir.
Apesar da idade, Burliuk viajava com frequência, sempre acompanhado de sua mulher. Em 1962, viajaram para Brisbane para realizar uma exposição na Moreton Galleries. Lá, Burliuk fez alguns esboços de paisagens australianas.
Burliuk, Brisbane Bay
De 1937 a 1966, os Burliuk publicaram Color & Rhyme, um jornal que apresentava principalmente as atividades do artista. Adorando a abundância e a glória da terra, Burliuk tinha a reputação de futurista escandalizador do gosto público. Naturalmente, um de seus artistas favoritos era Vincent van Gogh, com sua visão apaixonada da natureza, suas cores brilhantes e suas pinceladas vigorosas.
Artisticamente, Burliuk aderiu à crença de que a pintura deveria capturar as experiências da vida e interagir com as preocupações visuais do tempo. Seu trabalho em vários estilos artísticos sugere seu desejo de abraçar desenvolvimentos contemporâneos e novas formas de pensar.
Ele expôs suas visões artísticas em palestras e aberturas de exposições.
Sua paisagem Morning, Wind, de 1908 , pintada em pinceladas largas e empastamento viscoso, está associada a muitas pinturas de Van Gogh, enquanto Cossaco Mamai [acima] demonstra uma preocupação com as relações de cores fauvistas e os motivos etnográficos citas.
Morning, Wind
Da mesma forma, ele explorou a relação de planos e formas geométricas pela ótica e estética cubo-futurista.[2]
Composição cubo-futurista
Burliuk escreveu: “Deixe seus olhos descansarem sobre as superfícies de minhas pinturas… Eu jogo pigmentos com pincéis, com uma espátula, espalho-os em meus dedos e salpico as cores dos tubos… A topografia visual é a apreciação de pinturas a partir das características de suas superfícies. As superfícies das minhas pinturas são laminadas, macias, brilhantes, vítreas, macias como o seio de uma mulher, lisas como os lábios de uma donzela ou pétalas de rosa, planas e empoeiradas, planas e opacas, lisas e musgosas, mortas, areia, peludas, com casca profunda , casca rasa, semelhante a uma concha, talhada grosseiramente, levemente craterada, granulada, lascada, rochosa, craterosa, espinhosa, espinhosa, dorso de camelo, etc. labirintos da vida”.
Burliuk amava a vitalidade em todas as suas formas – biológica, psicológica e cultural. Pintando sua estepe nativa ucraniana, ou paisagens japonesas, ou vilas de pescadores de Long Island, ou ruas de Nova York, procurou por energia vibrante e padrões inevidentes.
David Burliuk morreu em Hampton Bays em 1967, aos 85 anos. Nesse mesmo ano, foi admitido, postumamente, na Academia Americana de Artes e Letras. Sua casa e seu estúdio ainda estão lá.
Lamentavelmente, o legado artístico impressionantemente volumoso de Burliuk, obscurecido por décadas de governo comunista, esteticamente reacionário, permanece inexplorado e não devidamente apreciado até hoje. Centenas de seus poemas, histórias, romances e ensaios permanecem inéditos, e quase mil pinturas estão espalhadas pela Rússia.
Apenas uma pequena parte de sua obra pode ser encontrada em sua Ucrânia natal.
Landscape trees, 1910
Desde o dia em que deixou a Ucrânia e pelo resto de sua vida, Burliuk sonhou em um dia retornar. Jamais conseguiu, mas suas cinzas devem ter afinal chegado à costa da Ucrânia, via Mediterrâneo e Mar Negro, depois que seus parentes as espalharam pelo Atlântico, como ele quis.
Embora a Rússia, em seu característico modo imperialista, tenha reivindicado Burliuk, junto com muitas outras figuras culturais não russas, como um “deles”, em mais de um sentido, o próprio Burluik, em seu ensaio autobiográfico “Memórias de um Futurista” declarou: “A Ucrânia tem seu filho mais fiel em mim. Os ossos dos meus ancestrais estão na Ucrânia”.
[1] “Golpe de outubro de 1917”: trata-se da referência mais fatualmente correta, além de cada vez mais aceita pela historiografia não ideologicamente comprometida, à “Revolução de Outubro de 1917”. De fato, não houve revolução alguma em outubro de 1917 na Rússia, entre outras coisas porque a revolução, de caráter notoriamente popular, já tinha acontecido em fevereiro, quando o czar e o czarismo foram derrubados, e institui-se uma república parlamentar e um parlamento (Duma). Nove meses depois, em outubro, o que haveria seria um golpe dentro da revolução, o golpe bolchevique contra a nova república russa, não contra o velho império czarista, que já não existia. A famosa (na verdade infame, pois parteira do leninismo-stalinismo) “Revolução de Outubro” foi, desde sempre, um golpe de propaganda do novo regime, semelhante ao caso brasileiro de 1964, em que um golpe seria edulcorado em “revolução” pela historiografia oficial [nota do tradutor].
[2] Cubo-futurismo que, através, entre outras, de uma marcante apropriação por Marcel Duchamp (visível em Nu descendo a escada) entraria no centro da corrente sanguínea da arte ocidental na segunda metade do século XX [nota do tradutor].
Trad. Luis Dolhnikoff