Lamartine Babo (1904-1963) compôs os hinos do Flamengo, do Vasco, do Fluminense, do Botafogo e do América, bem como os dos clubes pequenos do Rio do Janeiro: São Cristóvão, Bonsucesso, Madureira, Olaria, Bangu e do desaparecido Canto do Rio, de Niterói. As canções originais, destes pequenos times, foram resgatadas pelo músico e pesquisador Alfredo Del-Penho, pois estavam praticamente perdidas.
Hino do nosso Cesso
Para a torcida rubro-anil
Palmas eu peço (clap! clap!)
Na Leopoldina em cada esquina
Quem domina é o Bonsucesso
Lá surgiu um jogador sensacional
Surgiu Leônidas, o maioral!
Quando a turma joga em casa
A linha arrasa
Que baile… Que troça!
A torcida grita em coro
Não há choro
A vitória hoje é nossa
O blog Futepoca “denunciou”, em 2009, que o hino do América (feito nos 1940 e ou início dos anos 1950), considerado o melhor dos criados por Babo, é uma cópia, enquanto canção, de “Row Row Row”, que fazia parte do musical Ziegfeld Follies, sucesso na Broadway, no começo do século 20. Conheci Ziegfeld Follies como um filme, do gênero comédia musical, dirigido por Lemuel Ayers e protagonizado por Fred Astaire, Lucille Ball e Judy Garland, de 1946. Do teatro migrou para o cinema. As “vedetes” do Follies atuavam em trajes “liberais”, tal como Doris Eaton Travis, que o integrou nos anos 1920 – Ziegfeld Follies inspirado no parisiense Follies Bergères. Doris morreu em 2010 aos 106 anos. A Broadway apagou por uns minutos suas luzes para lhe prestar homenagem.
A descoberta do “plágio” pelo Futepoca mostra como se processa o cross-cultural, que, em uma definição singela, é qualquer das várias formas de interatividade entre grupos culturais distintos, de apropriações disparatadas entre grupos culturais nitidamente diversos entre si. Seus sinônimos: interculturalismo, hibridismo, sincretismo e cosmopolitismo. Destaque-se “cosmopolitismo” nesse país ainda fechado, em termos de arte, em um nacionalismo de plantão, acadêmico e “sociológico”. É significativo notar como Babo – um dos maiores nomes da MPB – transculturou a transculturada “Row Row Row”, transformando-a em um hino de um clube de futebol, por coincidência, chamado América. Eis a letra:
Hino do América − RJ
Lamartine Babo
Hei de torcer, torcer, torcer…
Hei de torcer até morrer, morrer, morrer…
Pois a torcida americana é toda assim
A começar por mim
A cor do pavilhão é a cor do nosso coração
Em nossos dias de emoção
Toda torcida cantará esta canção
Tra-la-la-la-la-la
Tra-la-la-la-la-la
Tra-la-la-la-la
Campeões de 13, 16 e 22
Tra-la-la
Temos muitas glórias
E surgirão outras depois
Tra-la-la
Campeões com a pelota nos pés
Fabricamos aos montes, aos dez
Nós ainda queremos muito mais
América unido vencerás!
Se “torcermos” a letra, ela pode ser ouvida de modo plurívoco: Lamartine, torcedor do América, não fala apenas de seu time de afeição, mas da própria condição americana, das Américas, de um sentimento americano contraposto ao colonizador europeu, em gesto de afirmação e ufanismo – o feitiço virando contra o feiticeiro. As “folias” aproximavam, então, na Guanabara, carnaval, a mais sofisticada canção popular e um futebol emergente, numa dicção própria. No “Hino do Bonsucesso” há menção a Leônidas da Silva, que, entre outros clubes, jogou no Bonsucesso de 1931 a 1932. Leônidas disputou duas Copas, a primeira na Itália, em 1934, quando o Brasil foi eliminado na primeira fase, e a segunda na França, onde foi artilheiro com oito gols e a seleção alcançou o terceiro lugar. O Brasil tornou-se potência no futebol apenas a partir de 1958, cinco anos antes da morte de Babo.
Mundial 58 Suecia Vs Brasil
Para se aquilatar a importância fundante de Babo, trago à tona o fato de que, em 1929, ele se reuniu ao Bando de Tangarás, conjunto musical formado por, ninguém mais, ninguém menos, Noel Rosa, João de Barro, Almirante, Alvinho e Henrique Brito. Babo tornou-se um dos “adendos” do grupo, que gravou oito de suas canções. Ouçam “Row Row Row” e o “Hino do América”:
O curioso é que, em um registro erudito, João Cabral de Melo Neto (1920-1999) escreveu um poema, em certo aspecto, igualmente “afirmativo”, no qual diferencia América, que trata a bola como “mulher”, da Europa, que a trata, sem intimidade, como “touro”, retomando Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Leia-se:
O futebol brasileiro evocado da Europa
A bola não é a inimiga
como o touro, numa corrida;
e, embora seja um utensílio
caseiro e que se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo,
de reações próprias como bicho
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.
Mais relevante ainda é que Cabral, americano no Rio e palmeirense em São Paulo, decepcionado com a falta de vitórias do clube carioca, escreveu o único poema que aborda o tema da derrota crônica:
O torcedor do América F. C.
O desábito de vencer
não cria o calo da vitória;
não dá à vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas.
Guarda-a sem mofo: coisa fresca,
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto do sol no Cais da Aurora.
O poema de João responde ao Lamartine de “unido vencerás”. Será que somos singulares mesmo? Será que criamos uma diferença significativa? Além disso, o América é, há muito, um time pequeno, sem expressão alguma. Existe hoje graças ao seu hino e ao poema do pernambucano. O tema “futebol” é difícil de ser enfrentado com sucesso pelos poetas. O fabuloso poema “Ademir da Guia” (1975), do mesmo Cabral, é o mais imitado de todos os tempos por sucessivas gerações de autores. Vinicius de Moraes escreveu o medíocre “O anjo de pernas tortas”, inspirado em Garrincha, que − de tão piegas e conservador – não vale a pena ser transcrito. Por Elsa Soares, Mané o perdoou.
Pior que a peça de Vinicius é “O gol”, de Ferreira Gullar, essa caricatura de “maior poeta”. O gol é uma coisa popular, mas FG – em registro pseudoerudito – comete versos como “ele a apara” e trocadilhos, desgastados para a época, como “apara e para”. FG se empenha na rima banal em “ão”, na falta de – desculpem-me a rima pobre – imaginação e na ausência de ritmo; para ele, a bola é uma “esfera” – burocrática, parnasiana, que “desce do espaço” e não do céu, ao alcance da mão. “Esfera” é palavra do dicionário das vanguardas do início do século passado, sempre paratáticas, que FG usa de maneira submissa à gramática. Embora tente disfarçar seu parnasianismo com “coração”, ele é patente. “Pelota” era coloquial no momento em que Babo compôs o hino, era palavra corrente na voz dos locutores de rádio. “Esfera” nunca foi utilizada em quaisquer transmissões por locutor de qualquer veículo. É puro preciosismo “limpo”, em feitio prosaico, apoético – e não antipoético, como no tom do poema de Cabral. FG escreve uma frase com começo, meio e fim, sintaticamente comum, num tom “elevado”, cientificista, artificioso. Leiam:
A esfera desce
do espaço
veloz
ele a apara
no peito
e a para
no ar
depois
com o joelho
a dispõe a meia altura
onde
iluminada
a esfera
espera
o chute que
num relâmpago
a dispara
na direção
do nosso
coração.
Melhor, “deveras”, ficar com Cabral e Lamartine. “Row, Row, Row Your Boat” é uma cantiga de ninar em inglês ou uma nursery rhyme. No musical da Broadway, ela é repensada em um ângulo infanto-adulto-sexy-brejeiro. Melhor, ainda, ficar com as “molas nervosas’, inquietas, da derrota de “O torcedor do América F. C.” ou com o “sonho” de “Campeões com a pelota nos pés/ Fabricamos aos montes, aos dez”. Pés em acepção poética, de bons poetas.
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