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Immaculada de Ivone Benedetti

No momento em que a ficção contemporânea brasileira converge para um único tipo de voz, um “eu” na maioria das vezes ensimesmado, narrador que é testemunha e, quase sempre, protagonista da própria história, cuja supervalorização tornou-se empobrecedor lugar-comum, é reconfortante se deparar com o narrador onisciente de Immaculada, romance escrito pela tradutora Ivone C. Benedetti.

Tal narrador, intrometido e abelhudo, não teme expor seus julgamentos, controlar a trama e cumprir o que a epígrafe machadiana do livro promete: acender seu charuto na desgraça de outrem, refestelar-se no drama dos personagens e extrair da infelicidade deles uma perfeita radiografia não só dos embates políticos que ocorrem do fim da República Velha ao período imediatamente posterior à Intentona Comunista, mas também dos grupos sociais em ascensão ou da decadência e das tragédias de famílias sufocadas por moralismos, pelas exigências de classe e por pressões inerentes à riqueza e à pobreza – pois a qualquer estado social concerne um preço a ser pago na forma de frustrações e angústias.

Ivone Benedetti desmistifica, portanto, o que se costuma afirmar sobre o narrador em primeira pessoa, que, voz típica da modernidade (seja lá o que isso for), seria o mais confiável de todos os narradores, capaz de olhar de qualquer ponto de vista as cenas e os personagens, exatamente por se encontrar “dentro” da narrativa, inserido nos acontecimentos, afirmações que não passam de rematadas bobagens, inclusive porque a questão central de uma história não é o seu narrador – seja ele o contraditório e reticente John Dowell, narrador-personagem de O bom soldado, de Ford Madox Ford, ou a divertida, mordaz e irônica voz que relata as aventuras de Leonardo em Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida –, mas, principal e fundamentalmente, a lógica interna, a coerência da trama.

Vejamos, por exemplo, a descrição da personagem Annunziata, que terá papel influente em certo momento da história, jovem italiana envolvida, aos 12 anos, em um caso de estupro jamais explicado. Essa mulher entra na vida da protagonista que dá nome ao romance quando tem os seus 30 anos, solteirona para a época, de rosto envelhecido e nitidamente antipática. O narrador nos conta até seu cacoete: “Terminava as falas com um franzir de lábios e um piscar demorado […]: enquanto a pálpebra descia, o globo ocular tinha tempo de subir e esconder-se debaixo dela”. Mas ele também nos reserva sua visão irônica, depois de comentar sobre as diferentes versões que corriam acerca da violência sexual sofrida pela personagem: “Uma coisa é certa: havia um estupro, real ou forjado […], o que é suficiente para complicar a vida de qualquer boa moça. Entre ter uma relação forçada e ter uma relação forjada existe uma grande diferença: a de um hímen”, comentário no qual o narrador recria, no signo linguístico – sob a forma do humilde fonema que, trocado, dá vida a duas palavras diferentes –, a pequena membrana que, presente ou não, pode mudar tudo.

Essa demonstração de perspicácia poderia ser estéril, caso o narrador se concentrasse em repetir, cansativamente, tais malabarismos, dando-lhes um caráter essencial e não acessório, o que, ainda bem, não ocorre. Ao contrário, a voz que narra não se deixa jamais impregnar de monotonia, apresentando-nos as reviravoltas políticas – as revoluções de 30 e 32, por exemplo – sem se apegar aos fatos históricos, sem pretender compor um libelo ideológico ou um panorama didático, mas de maneira oblíqua, na forma de ondas cujas consequências alteram as estruturas do país e, principalmente, a vida dos personagens, seus anseios, seus lucros e perdas, sua forma de se relacionar com o governo e a burocracia, ou de buscar ascensão social.

Nosso narrador pode também penetrar na mente dos personagens, mostrar os processos tortuosos que uma pessoa utiliza na tentativa de justificar para si própria um ato vil – sucessivas, pequenas e comprometedoras mentiras –, evidenciar as angústias existentes no espírito de uma jovem de família tradicional que, em plena década de 1920, se vê apaixonada por um subalterno de origem italiana, e, ainda, conduzir, com mão firme, os pensamentos de um homem angustiado da realidade ao sonho, e vice-versa, resgatando-o pouco depois, a fim de obrigá-lo a seguir adiante em sua malograda tentativa de ser feliz.

Tensão e personagens

A escritora domina a técnica de compor cenas de grande tensão, envolvendo vários personagens – ela mantém o timing que captura o leitor e lança-o no redemoinho dos conflitos. Vejam, por exemplo, o adultério que se apresenta logo no início do romance, encenado em um complexo jogo de entradas e saídas, fugas e perseguições, até a certeza de que a terrível descoberta era ainda mais hedionda; ou o comportamento da mãe que se divide entre o carinho, a autoridade, a rapidez de pensamentos, a força e o uso de meios ilícitos ao descobrir, certa madrugada, as aventuras amorosas da filha; ou, ainda, uma das cenas mais fortes do livro – concisa, dura, paroxística –, na qual um feto é lançado ao esgoto, levando consigo toda e qualquer possibilidade de respeito mútuo e lucidez.

Ivone Benedetti também constrói uma bela galeria de personagens: Francisco, o filho sensível, inteligente, apegado à mãe, submetido a uma lenta despersonalização pelo pai, a quem passará a vida dizendo apenas “sim”, mas que também se revela inteligente, empreendedor, apesar de jamais conseguir somar aos ganhos financeiros o poder político; Pontes, figura vulpina que transpira a delícia de saber quais cordões puxar para conseguir este ou aquele efeito, considerado infalível pelos bajuladores, mas que nem sempre acerta nas avaliações, às vezes medindo mal os oponentes, às vezes apegando-se demais às próprias certezas; Immaculada, a “heroína romântica gorada na casca”, cujos “olhos imensos, um verdadeiro luzeiro cor de mel num rosto oval, de queixo pontudo e boca pequena” perderão todo o brilho sob a malícia dos que a circundam, ela própria ensinada a fingir, mas despreparada para pagar o preço de manter as aparências, tornando-se, assim, medíocre em cada uma de suas escolhas: na arte, na vida familiar, na mera administração da casa, no sexo.

 

Pequenos problemas

Alguns senões, contudo, precisam ser apontados, pequenas falhas que, mesmo não prejudicando o resultado final, incomodam. Certas cacofonias, por exemplo, poderiam ter sido evitadas: “Na sexta chegou Dantas, carregado de bombons e saudades. As de Dantas não eram chegadas, eram cheganças, sempre prolongadas e agitadas, como danças”; ou “O trem seguia seu matraqueio, e o matraqueio seguia o trem; e era tão perfeita a cumplicidade, que lá não se sabia quem seguia quem” – jogos linguísticos diferentes do elogiado parágrafos acima, aparentemente intencionais, mas que, no afã de recriar, na materialidade dos vocábulos, o sentido ou ideia que a frase expressa, acabam diminuindo a força das cenas, ganhando, eles próprios, uma autonomia invasiva que, para repetir aqui esse tipo de exercício, desconcentra e desconcerta o leitor.

Em raras passagens, o texto torna-se um pouco literário, artificial. Apenas para citar um exemplo, há, com certeza, maneiras mais simples e mais objetivas de se dizer que “uma varejeira soliloquiava sobrevoos em torno da mesa, e Immaculada era todo ouvidos para aquela presença findante do pai” [grifos nossos]. E, tratando agora de outro extremo, a narrativa pode, perigosamente, dar vida ao clichê quando recorre à imagem de lágrimas que irrompem “como lavas do Vesúvio”.

 

Carga dramática e precisão vocabular

Contudo, os acertos sobrepujam esses minguados problemas. Nada pode ser subtraído ou acrescentado neste trecho, quando um homem irredutível imerge em dúvidas: “O filho subiu. O pai ficou em pé bem meia hora, com a testa apoiada na janela, olhando pelo vidro a pouca paisagem que a noite avarenta lhe entregava. No céu, uma procissão de nuvens ia velando uma lua que já começava a desfalcar-se”. Ou na descrição de uma figura comum a todos os regimes políticos: “[…] homem capaz de atravessar eras e eras políticas com o mesmo prestígio incólume e impoluto, ainda que de suas mãos emanassem cargos e cargos, como universos inteiros emanam do espírito de um demiurgo”. E vale a pena transcrever esta noite de núpcias, cena na qual a secura das descrições, a precisão dos vocábulos e a excessiva sobriedade dos gestos reconstroem o desencontro, a insensatez de um casamento forçado e as estocadas do macho violentador:

[…] Parou diante dela e lhe pediu que tirasse a camisola. Immaculada fechou os olhos e obedeceu. Ele ficou algum tempo admirando a silhueta da moça e lhe fez um sinal para deitar-se. Ela não viu, estava de olhos fechados. Ele pediu. Ela obedeceu, deitou-se e, de olhos fechados, voltou o rosto para o outro lado. Pressentiu que ele se despia, percebeu que se deitava ao seu lado e sentiu que lhe apartava as pernas e introduzia devagar um dos dedos em sua vagina. Uma espécie de pressão terebrante lhe arrancou um gemido. Aquilo mais pareceu um sinal para o ímpeto dele. Num acesso de excitação incontrolável, atirou-se sobre a mulher e a penetrou de vez, provocando nela uma dor aguda, picante, funda, que se manifestou num grito sentido. Grito que se confundiu com os resfôlegos de gozo dele.
Em poucos minutos, ele já estava deitado de costas. Logo depois se levantava e saía em silêncio.

A mesma precisão vocabular se repetirá em inúmeros trechos. Ao descrever operários “sentados no chão, renteando o muro ou a guia”, ou na “cainçada infernal” que rompe a madrugada, ou, evitando alongar-me demais, na sentenciadora exatidão desta frase: “O tiro partiu o som do rádio e silenciou no abdome de Giuseppe”. Exemplos reveladores do cuidado de uma autora que, em busca da palavra justa, insubstituível, estuda de maneira flaubertiana as ricas possibilidades da língua. E o zelo de Ivone Benedetti se revela inclusive nas expressões que intitulam os capítulos: sugestivas, dialogam entre si e nos instigam a seguir em frente.

Ao final, à prazerosa experiência da leitura soma-se um sentimento perturbador: depois de conhecer mulheres que, apesar de erguerem a cabeça, jamais reúnem forças para se contrapor aos desmandos dos patriarcas; famílias nas quais as crises são encobertas por falsas soluções e por promessas que nunca se cumprem; e pessoas que se escravizam a seus fantasmas, não verbalizam seus desejos e se submetem a um mutismo doentio, anulador, somos contaminados por certo azedume, pela derrota moral desses personagens que formam o espelho de um ambíguo, estranho e não muito distante país chamado Brasil.