Skip to main content

Cartas de João Cabral: o espaço do poema

As cartas do poeta João Cabral de Melo Neto podem ser lidas em suas muitas nuances, inclusive como um trabalho realizado com alguma resistência ao escrever e no vai-e-vem da letra mostrando-se e sustentando-se sempre em luta; luta de escrita.

Possivelmente, é por essa razão, inclusive, que as suas cartas carregam algum constrangimento, que se estabelece de acordo com o grau de intimidade que ele estabeleça com aquele para quem a carta é endereçada. De fato, Cabral está sempre se desculpando por escrever cartas que, segundo ele mesmo, não são interessantes ou estão explicando situações embaraçosas. Às vezes, apenas por portarem palavras de queixas ou mesmo desconfortos do poeta, na voz baixa que não se quer dizer, ou que se faz sem “o espetáculo de seu autor.”[1] Deixam ver “o olho crítico” do poeta sempre em movimento de contenção e corte.

Nas cartas cabralinas encontramos a semente literária, que é própria da teoria do fragmento, pois que abre o texto em muitas direções, inclusive, no caso de Cabral, abre o texto ensaístico no texto epistolar. A escrita de um poeta pode ser lida em uma aproximação ao fragmento – ao que se abre em semente literária – como obra em devir. Nas palavras dos primeiros poetas críticos, Novalis e Schlegel, os alemães de Iena, as cartas – assim como os poemas – podem ser escritos em desdobramentos, feitos e refeitos, escritos e novamente retomados, ou não, como uma conversa infinita, como um fragmento literário. Esta escolha por escrever e tornar a escrever, trabalhar as palavras com espaçamentos de tempo e em um misto de silêncio e obra, é próprio da teoria do fragmento,[2] um estudo que não nos interessa.

Muitos poetas escreveram e exercitaram sua escrita em cartas a poetas e amigos, sinalizando os versos que nasciam e precisavam viver primeiro no espaço de uma conversa entre os próprios pares, os poetas de seu tempo e, depois, em páginas de livros editados e lançados na voz do mundo. A revista Athenaeum, na qual circulavam os fragmentos, comportou vários textos: diálogos, críticas, ensaios, poemas, cartas e o próprio fragmento. Buscando entender um pouco sobre a importância da revista literária Athenaeum, vamos pensá-la no contexto de seu tempo, pois essa revista, na época, era lida e comentada pelos poetas críticos que ali publicavam textos e enunciavam uma teoria.

Nomeada como “lógica do porco espinho”, esta forma de pensar o poema, a carta, ou o próprio fragmento – e constatá-los como lugares que se mostram em constante movimento – apresenta os escritos em processo de desdobramento. Eis que eles são, portanto, passiveis de múltiplas leituras e interpretações. E podem ser lidos e pensados com várias entradas; o que era bastante novo na época, pois escapava à linearidade do texto.

Nas cartas de João Cabral, consideradas aqui também como um fragmento, além de encontrarmos alguns comentários críticos, lemos textos que passam do epistolar ao ensaístico, e que parecem buscar encontrar uma forma mais livre de expressão. Algumas delas se mostram realizando uma mudança de tom, e em luta com a escrita subjetiva. Ainda comparecem os versos recém-nascidos, e os diálogos com seus pares, os poetas de seu tempo. Cabral perseguia, e sua correspondência é um testemunho disto, o fazer em luta onde a escrita expressa algo de um ritmo novo, trazendo o novo e experimentando-o de distintas formas.

A correspondência de João Cabral, no entanto, não ocupa lugar de suma importância na leitura que os críticos fazem de seu trabalho. De uma maneira geral, quase não se vincula sua correspondência à sua poética e à sua dicção. Porém, permanecendo fiel aos traços de memória deste poeta, muitas vezes nas cartas inseridos e considerados, recolhemos os sinais do estado “espesso” de sua poética e do paradoxo presente na obra, que está também, aqui, neste horizonte epistolar. Um poeta que escrevia aos poetas amigos – Manuel Bandeira, e Carlos Drummond de Andrade, assim como a Clarice Lispector e outros – confirmando e reafirmando sua construção poética a palo seco, ao mesmo tempo em que deixava pedaços do mais valioso e íntimo – corrigindo e aprendendo a ler seu próprio estilo. Ou seja, um poeta que constrói uma escrita, enquanto exercita a escrita e a leitura de seus próprios textos, inclusive, no exercício e contra o exercício da prática epistolar.

Flora Sussekind destaca na “Nota sobre a edição” do livro da Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond, que podemos pensar este livro como “um estudo sobre o processo de formação do método poético cabralino”,[3] uma recolha de cartas entre Cabral, Bandeira e Drummond, em especial do rastro da amizade intelectual entre eles, durante as décadas de 1940 e 1950. E ainda do diálogo crítico de Cabral “com a poesia de ambos nos seus escritos dos anos 40-50”.[4]

As correspondências entre poetas com suas rasuras e anexos (incluindo aí os comentários sobre poemas e/ou versos em discussão) se comunicam com o espaço de elaboração do poema, aproximando a carta e a obra do poeta, e dando-lhes essa dimensão especial: “a dos enlaces dos diferentes tipos de textos em suas distintas formas de configuração.”[5]

Neste texto iremos alcançando não apenas os poemas de João Cabral que estão comentados nesta troca epistolar, com o que “há de sim e de não nas coisas” que vamos encontrando em sua poética, conforme palavras do poeta a Bandeira, em carta de 4.9.947 escrita de Barcelona, mas, também, com o que vai se confirmando na influência mútua entre esses poetas nas escritas destas correspondências:

 

“Como quer que seja, repito aqui o abraço já mandado. De Barcelona

não preciso lhe dizer muito; está na Espanha e a Espanha de hoje é

aquele seu estribilho[6], lembra-se?

Eu tenho sempre na cabeça e permanentemente estou examinando o

que há de sim e de não nas coisas que vou encontrando”.[7]

 

Desta Espanha sim e Espanha não destacamos a expressão de uma lista das coisas “que aprendi de você”, que inclui a afirmação do que o poeta nomeou ter aprendido com Bandeira, conforme os comentários de Flora Sussekind no livro A voz e a série. Os comentários circulam, portanto, na busca de uma concretude maior, e afirmando uma visibilidade “que diz respeito à imagem poética”.[8] No que “há de não nas coisas”, vamos percebendo uma certa “indisponibilidade epistolar.” É na carta escrita a Bandeira, em setembro de 1947, que aparece claramente explicitada a questão na declaração: “Em cartas, perde-se a medida do tédio que se pode estar causando ao destinatário.”

Recuperamos o papel que as cartas exerceram na poesia moderna, e podemos dizer que elas ocuparam um espaço importante de reflexão e discussão entre os poetas e intelectuais da época. A carta, que já havia perdido a formalidade que mantinha anteriormente, enquanto documento, torna-se efetivamente lugar de troca de ideias, informações, etc. Já sabemos, através de outros estudos literários, que tal fato se confirma no Brasil com o poeta Mário de Andrade, figura central da correspondência do modernismo. Mas é exatamente com João Cabral e seus pares, os poetas da geração não mais diretamente modernista; Bandeira e Drummond, que a carta vai conseguir ser mais claramente estudada com a multiplicidade que vai nomeá-la depois: um fragmento.

A carta como laboratório para múltiplos textos, a carta como um fragmento, no aberto do pensamento da obra está inserida de forma tal que, hoje, podemos observar e ler a troca epistolar entre estes poetas, esclarecendo a obra e o momento histórico em que ela se encontra. Inclusive, compondo algumas questões sobre a luta das editoras desta época, e as dificuldades com as pequenas edições, especialmente, com os livros de poesia.

O comentário favorece que possamos estabelecer que as cartas de Mário de Andrade com Manuel Bandeira, neste caso, funcionaram de fato como um laboratório de escrita, onde alguma crítica, também, era feita com a troca de poemas. Nas cartas de Cabral, no entanto, as passagens do texto epistolar ao ensaístico, com os poemas e os relatos da experiência com a máquina manual “Minerva” reservam e traduzem mais a multiplicidade do fragmentário. Ou seja, a enorme variedade de assuntos e as passagens de uma forma de escrever a outra que compõem a obra em movimento.

 

Alguns aspectos da escrita e da amizade de um poeta são mais bem compreendidos quando se lê a sua correspondência. Com Cabral, a pequena parcela de sua correspondência pessoal, em geral cartas escritas para poetas e/ou escritores amigos, surpreende no que revela especialmente da dificuldade do poeta em dedicar-se à sua prática: “Não há nada que me canse tanto e que exija de mim tanto esforço”, comentou com Clarice Lispector, em carta de 1958, salientando a “falta de jeito” na escrita das cartas onde se colocava mais à mostra.

Uma carta, segundo Sêneca, “traz vivas marcas do ausente”,[9] e é assim que lemos as afirmações cabralinas. É a “indisposição epistolar” um fato tão relevante em Cabral quanto a sua dor de cabeça. Sussekind comenta que Cabral busca sair da “subjetivação” epistolar e encontra-se diante de um mal-estar, sempre afirmado até mesmo pela letra, como nesta carta para Drummond: “Hoje estou antiepistolar, até pela letra”. A pesquisadora comenta também, que Cabral faz a passagem do epistolar ao ensaístico nas cartas, buscando escapar do tom intimista. Ao que acrescentamos que ele experimentava uma ausência e um silêncio dos fatos de sua própria existência, um certo anonimato para as questões do “eu”. Sem chegar ao extremo de fazer segredo sobre sua vida, o poeta preferia deixar de fora em sua correspondência, os fatos corriqueiros e as nomeadas “chatices” de repartição, dando sempre lugar ao trabalho poético e de fabricação.

Na troca epistolar, quando a palavra passa de um poeta para o outro, as lacunas, os intervalos se apresentam no espaçamento de tempo que deixa ver a espera. O tempo de intervalo entre uma carta e outra, seja para uma confirmação, ou não, do que está sendo dito na carta primeira, favorecendo que na pausa aconteça alguma reflexão, e um trabalho com a palavra. Por essa razão, possivelmente, os poetas utilizaram tanto, ao longo da história, esta forma de troca. As cartas, portanto, se apresentam como conversas infinitas, conforme afirmou Maurice Blanchot, e ainda como espaços possíveis de trabalho e elaboração com a palavra e a letra nos poemas.

A história sobre a obra e a vida de um poeta serve aos críticos e estudiosos da literatura, e pode ser favorecida por trocas epistolares. Elas são construídas em intervalos de falas, em conversas em que comparecem reflexões, ainda em trabalho de escrita, que pode vir a contribuir também ao trabalho com o pensamento da poética, a partir de um comentário aceito ou não depois de emitido. Pois, o que pode ser ouvido na linguagem, pode ter um efeito na língua, que é capaz de retificar o que foi dito ou até de fazer ilusão ao que foi dito.  

Podemos reconhecer na escrita da correspondência de Cabral, os movimentos e as passagens que mostram tanto a redução do tamanho das cartas, já bem comentados por Sussekind, como sinalizam o exercício de escrita. O poeta João Cabral, em alguns momentos de sua correspondência, manifesta a dificuldade de escrever e sobretudo confirma a luta que trava com esta tarefa.

Maurice Blanchot no livro A conversa infinita – a palavra plural sinaliza que a ruptura é a respiração do discurso, inclusive na “tagarelice cotidiana”. Esta forma de comunicação que não é direta; a da troca epistolar consegue, portanto, carregar a estranheza, que está na própria linguagem, e que responde à “interrupção que introduz a espera”.[10] A lentidão que acompanha estes momentos de interrupção, favorece “a capacidade de compreender que não se pode compreender tudo, pois a linguagem nos fala tanto quanto nós nos falamos”.[11] A linguagem aqui é pensada como vindo de um fora, e que nos chega em meio às interrupções do discurso no qual estamos inseridos.

A dificuldade de escrever aparece quando a escrita se apresenta como experiência, e é um aspecto destacado por Blanchot na forma que nos interessa pensar. Para alguns “escrever apresenta-se como uma situação extrema que supõe uma reviravolta radical”.[12] É que, ao sondar o verso, ao escrever poemas, a experiência é da ordem da ausência, e “o verso escapa ao ser como certeza, (…) e vive na intimidade dessa ausência”.[13] Blanchot ainda esclarece que:

 

“quem sonda o verso deve renunciar a todo e qualquer ídolo, tem que romper com tudo, não ter verdade por horizonte nem o futuro por morada, porquanto não tem direito algum à esperança, deve, pelo contrário, desesperar. Quem sonda o verso morre, reencontra a sua morte como abismo.”[14]

 

Aqui, neste momento de nossas reflexões, podemos recuperar o depoimento de João Cabral no filme Recife/Sevilha João Cabral de Melo Neto, de Bebeto Abrantes. O poeta, já com bastante idade, afirma, ao longo da entrevista, que o importante para ele era escrever sua obra. Não lhe importava viajar e conhecer paisagens, mas dedicar-se ao trabalho de produzir a obra: escrevê-la. Pensamos que a fala poética não é uma fala de um sujeito qualquer, pois ali o “que fala não é ninguém”.[15] Em Cabral é a linguagem que fala, e nestes momentos, onde ele nos esclarece sua produção, é a poesia que abre seu percurso fazendo-se obra.

Sobre o significante “ninguém” vamos nos deter, rapidamente, para pensar o comentado “leitor Ninguém”, assim nomeado por Cabral. Aqui, a referência blanchotiana indica a fala do poeta como estando fora de uma subjetividade autoral. A questão é densa e difícil. Sabemos que Cabral frisava a importância do homem em sua obra, e acreditamos que algo do humano está sim presente, mas, também, sabemos que na escrita perde-se o “eu” autoral dando lugar ao “ele” sem rosto.

No livro Paisagem Tipográfica, Roberto Vecchi comenta, no ensaio “Recife como restos”, as visões poéticas de Recife em Bandeira e Cabral. De Bandeira a Cabral, a cidade de Recife – “com as suas temporalidades submersas e latentes –, torna-se algo mais do que um simples referente privilegiado. Algo de muito espesso”.[16] E vai em “processo de desmistificação definitiva do lirismo e do sentimentalismo”,[17] construindo na materialidade da escrita.

Comenta-se que nas memórias destes dois poetas, Bandeira e Cabral, que têm por objeto o Recife, sustentam-se grandes diferenças. A “diferença essencial na objetivação poética cabralina que torna central uma noção menos visível ou até implícita de resto”[18] se apresenta em uma cidade: Recife, que continua sendo o objeto, mas, Cabral vai se deter na poesia do menos, ou do mínimo – no que podemos reconhecer como os “restos” de seu tempo.

As palavras afirmadas, na entrevista dada em 1991 a Augusto Massi, que recolhemos aqui dizem da história de sua família e deste tempo, vivido nos engenhos, de forma tal que podemos compor um cenário um pouco mais íntimo, mais autobiográfico do que nos é dado em seus versos, que, também, compõe parte de uma paisagem de seu tempo:

 

“Minha família não era rica, era uma família tradicional. Não tive infância luxuosa. Aqueles luxos que certos escritores atribuem ao engenho devem ter sido no princípio da Colônia. Nenhum dos engenhos de meu pai tinha luz elétrica, de modo que, quando começava a escurecer, as empregadas punham todos os candeeiros sobre a mesa, iam acendendo um por um e levando para diferentes cantos para pendurar. Eu fiquei no engenho do Poço do Aleixo antes de me alfabetizar. Então meu pai foi morar no Recife, e nós tínhamos uma professora, a dona Natália, para mim e meu irmão. Depois que nós estávamos suficientemente alfabetizados, entramos para o Colégio Marista. A gente passou a ir ao engenho apenas nas férias. Nessa época, os empregados compravam os folhetos e levavam para eu ler. Eu ficava sentado num carro de boi velho e todos ficavam em volta, sentados no chão, ouvindo.”[19]

 

As lembranças sobre esta paisagem conhecida “do engenho onde corria o rio” de sua infância, são lembranças de estudos (a professora Dona Natália e o Colégio Marista) e de leituras de folhetos lidos em voz alta para os empregados do engenho. É neste ambiente que ele nomeia hábitos e coisas, no caso especial nomeia o Tapacurá, um afluente do Capibaribe, tão presente nos seus versos:

 

A minha lembrança mais antiga talvez seja a de estar no engenho. É uma imagem estática, mas na frente do engenho corria um rio, o Tapacurá, afluente do Capibaribe. Esse engenho que a família vendeu é agora o engenho da usina Itiúma.[20]

 

Já em Bandeira, as imagens são evocativas e as encontramos no poema “Evocação do Recife” do livro Libertinagem (1930). Neste poema, o poeta “condensa em si um mapa do rumo da poesia modernista”[21] em cuidadoso exercício de elaboração formal e temático. “Evocação do Recife” traduz um “mundo” já morto e distante e reafirma o que é evocado:

 

“Recife

Não a Veneza americana

Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais

Não o Recife dos Mascates

Nem mesmo a Recife que aprendi a amar depois –

Recife das evoluções libertárias

Mas o Recife sem história nem literatura

Recife sem mais nada

Recife da minha infância” [22]

(“Evocação do Recife”, p. 55)

 

 

A memória evocada como perda, traduz-se em “relíquias e recordações sensoriais – visuais, sonoras e eróticas.”[23] A partir da partícula negativa repetida é que podemos escutá-la afirmativamente. A poesia que foi nomeada “poesia de restos”, por Vecchi, articula uma Recife morta, em pedaços “descontínuos de memória”, ligada em quadros em movimento. Com Bandeira, o resto que vai determinando um caminho de mudança, vai somando-se e será por testemunho que se afirmará. Segundo o ensaísta e professor Vecchi, entre a palavra e o silêncio vai definindo-se a possibilidade que se aproxima do que Giorgio Agamben vai nomear como “aporia do testemunho do acto da criação poética”:[24] um instante que se faz presença poética a partir do mecanismo do testemunho, onde se afirma “o que resta entre a possibilidade e a impossibilidade de falar”;[25] um quase nada.

Vecchi comenta que João Cabral irá construir com os restos de Recife alguns elementos que nos ajudarão a compreender a sua despoetização, tanto quanto a despersonificação (em territórios como o da memória autobiográfica). Partindo de um “Recife morto”, Cabral vai tratar, por exemplo, na série de quadros dos sete cemitérios nordestinos, de construir com a linguagem o que toca o impensável e o dessacralizado. E, na função de fazer funcionar uma negatividade em grau máximo, vai chegando a este ponto ‘quase’ impossível, onde sua escrita conserva algo estruturador da poesia do menos.[26]

Com o poema que é dedicado a Bandeira (“O pernambucano Manuel Bandeira”), e está no livro Museu de tudo, ele constrói um recifense criado no Rio. A antilírica cabralina, relembramos aqui, parece incorporar alguns achados de Bandeira, como restos de sua poética.

 

“Recifense criado no Rio,

Não pôde lavar-se um resíduo:

Não o do sotaque, pois falava

num carioca federativo.

Mas certo sotaque do ser,

acre mas não espinhadiço,

que não pôde desaprender

nem com sulistas nem no exílio.[27]

 

(“O pernambucano Manuel Bandeira, p. 57)

 

Retomando o tópico dos restos de uma Recife morta, o poema de Cabral sustenta alguma resistência com a língua do nordeste, que em Bandeira não teria permanecido como sotaque, mas como algo fixado na alma, no ser. Não apenas o avô morto, mas também a cidade, já então uma outra Recife determinam e circunscrevem a perda fundamental: possivelmente a infância. É que na obra do poeta Bandeira as “suas referências ao tema cidade são sempre oblíquas e quase sempre ele transforma a cidade, qualquer cidade, em matéria de memória”.[28] E o Recife da infância do poeta, por exemplo, é o da “Evocação do Recife”, tanto quanto o do “Boi morto”.

Cabe esclarecer que a correspondência entre estes dois poetas, nesta época: de 1942 a 1958, com um ritmo de amizade sincera, chega a influenciar Bandeira na experiência de “ritmos dissolutos” como neste poema “Boi morto”, composto durante uma madrugada inteira, com o refrão da repetição forte e seco:

 

“Como em turvas águas de enchente,

Me sinto a meio submergido

Entre destroços do presente

Dividido, subdividido,

Onde rola, enorme, o boi morto.

 

Boi morto, boi morto, boi morto.”[29]

 

(“Boi morto”, p. 83)

 

Encontramos breve comentário sobre o fato em Itinerário de Pasárgada, no qual o poeta explica a quebra propositada do verso, de oito sílabas, no final (terceiro verso da última estrofe). Bandeira afirma que buscava um ritmo mais sutil que escapasse do número fixo de sílabas:

 

“Boi morto, boi descomedido,

Boi espantosamente boi.

Morto, sem forma ou sentido

Ou significado…”[30]

 

(“Boi morto”, p. 83)

 

Veja-se, nesse sentido, que o comentário nos reenvia à correspondência entre os dois poetas, em caminhos distintos, de influências mútuas. Nas conversas sobre os poemas, portanto, desdobram-se séries e temas que aparecem aos poucos. É o caso ainda do poema “O Bicho” de Bandeira: “Vi ontem um bicho/ Na imundice do pátio”, onde a visão da rua é a do alto de uma janela. Cabral, no poema “Alto do Trapuá”, compadece da mesma estranha impressão:

 

“É uma espécie bem estranha:

tem algo de aparência humana,

mas seu torpor de vegetal

é mais da história natural”[31]

 

(“Alto do Trapuá,” p. 135)

 

A conversa sobre “O Bicho” de Bandeira, enviado a Cabral na carta de 26 de janeiro de 1948, confirma o registro deste “diálogo direto de Cabral com certos textos de Bandeira”.[32] Cabral destaca o poema e o comenta em carta enviada em 17 de fevereiro de 1948, destacando o fato de Bandeira conseguir “’desentranhar’ poesia do cotidiano”.[33] Cito:

 

“Não sei quantos poetas no mundo são capazes de tirar poesia de um fato, como você faz. Fato que V. comunica sem qualquer jogo formal, sem qualquer palavra especial: antes, pelo contrário: como que querendo anular qualquer efeito autônomo dos meios de expressão. E isso é tanto mais impressionante, porque ninguém, mais do que V. é capaz de tirar todos os efeitos da atitude oposta, isto é, do puro funcionamento desses meios. Você já terá notado que meu ideal é muito mais este Bandeira do que aquele. Mas diante de poemas como “O Bicho”, fico satisfeito por verificar que nenhum excesso intelectualista me é capaz de tirar a sensibilidade para poemas dessa família.”

 

O comentário, que parece breve, na verdade reafirma a importância da poética bandeiriana, conforme Sussekind em seu estudo. Ainda recupera nos “tons menores”,[34] aspectos já sublinhados na “Introdução” da coletânea Estrela da Vida Inteira. Assim é que, os nomeados “poemas dessa família”, são poemas de secura formal, que a expressão cabralina reforça, dando-lhes caráter e lugar de destaque, na poesia agora escrita por Bandeira.

Com os elementos bandeirianos, como o dos versos “homens feitos bichos”, e a forma do poema epistolar, que se parece a um relato de carta e desdobra “discurso e percurso”, a influência de Bandeira se faz notar. Alguns aspectos desta influência são logo percebidos por que são aspectos que vão se instalando na escrita cabralina.

Deste tempo ao qual retomamos e aprendemos tanto, saboreamos as cartas e os fragmentos do poeta tanto quanto os “restos” que o olho crítico e a letra cabralina colocaram até mesmo à margem do que é dito, sempre bem destacado, onde menos esperamos. Saber ler e recolher em leituras somadas, permanentemente examinando “o que há de sim e de não” em sua obra, é a tarefa que nos resta como leitores contemporâneos, agora voltados aos e-mails, aos whatsApps e às mensagens cada vez mais ligeiras, que nos alcançam na trivialidade ou na densidade de nossos dias bárbaros.

 

*Solange Rebuzzi, escritora e psicanalista

 

 

 

 

[1] MELO NETO, João Cabral de. “Poesia e composição” in: Prosa. Op. cit, p. 65.

[2] O fragmento como princípio literário, abre um questionamento interessante e muito contemporâneo. Consolida uma forma “porco-espinho”, a do célebre fragmento 206 do Athenaeum, que enuncia: “um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo como um porco espinho”.

[3] MELO NETO, João Cabral de. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond / Organização, apresentação e notas Flora Sussekind. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Casa de Rui Barbosa. 2001, p.19.

[4] MELO NETO, João Cabral de. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Op. cit. p.19.

[5] GUIMARÃES, Júlio Castañon. “Cartas: interseções”. In: Envie meu dicionário. Cartas e alguma crítica/ Paulo Leminski e Régis Bonvicino. Organização de Régis Bonvicino, com a colaboração de Tarso de Melo. São Paulo: ed. 34. 1999, p.16.

[6] Cabral alude, nos diz a nota no livro das correspondências, ao poema de Manuel Bandeira: “No vosso e em meu coração” do livro Belo belo, no qual estão aspectos de uma Espanha-sim e de uma Espanha-não enfatizando-se o mote: “A Espanha de Franco, não!”. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Op. Cit, p. 36.

[7] SUSSEKIND, Flora. Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Fundação Casa de Rui Barbosa. Editora. 2001, p. 36.

[8] SUSSEKIND, Flora. A voz e a série. Rio de Janeiro: 7Letras, Belo Horizonte: UFMG, 1998, p.283.

[9] SÊNECA. Cartas a Lucílio apud SUSSEKIND, Flora. A voz e a série. Rio de Janeiro: 7Letras, Belo Horizonte: UFMG, 1998, p.263.

[10] BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita. Op. Cit. p.134.

[11] Anotações feitas na conferência de Jean-Michel Rey na Escola Letra Freudiana em 13 de setembro de 2006.

[12] BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco. 1987, p.31

[13] Idem.

[14] BLANCHOT, Maurice. O Espaço literário. Op. Cit. p. 31

[15] Idem, p. 35.

[16] VECCHI. Paisagem Tipográfica. Op. Cit. p.189.

[17] VECCHI, Roberto. Paisagem Tipográfica. Op. Cit. p. 188.

[18] VECCHI, Roberto. Paisagem Tipográfica. Op. Cit. p. 188.

[19] MELO NETO, João Cabral de. Entrevista a Augusto Massi, Folha de São Paulo, 30 mar. 1991.

[20] MELO NETO, João Cabral de. Entrevista a Augusto Massi. Folha de São Paulo. 30 mar.1991.

[21] VECCHI, Roberto. Paisagens Tipográficas. Op. Cit. p. 190.

[22] BANDEIRA, Manuel. “Evocação do Recife”. In: Poesia. Novos Clássicos. São Paulo: Agir, 1983, p. 55.

[23] VECCHI, Roberto. Paisagem Tipográfica. Op. Cit. p. 191.

[24] Idem, p.192.

[25] Ibidem.

[26] A expressão é do ensaísta e poeta Antonio Carlos Secchin, em seu livro: João Cabral de Melo Neto A poesia do menos.

[27] MELO NETO, João Cabral de. “O Pernambucano Manuel Bandeira”. Museu de Tudo. In: A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.57

[28] UCHOA Leite, Sebastião. Crítica de ouvido. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p.41.  

[29] BANDEIRA, Manuel. “Boi Morto”. In: Poesia. Novos Clássicos. São Paulo: Agir, 1983, p. 83.

[30] Idem.

[31] MELO NETO, João Cabral de. “Alto do Trapuá”. In: Paisagem com figuras. Serial e Antes. Op. Cit. p.135

[32] SUSSEKIND, Flora. A voz e a série.Op. Cit. p.286.

[33] SUSSEKIND, Flora. A voz e a série. Op. cit. p.286.

[34] Vale lembrar que Bandeira se nomeou “poeta menor” por não conseguir seguir o conselho de Paul Valéry, que dizia que um grande poeta deve construir seu poema com a consciência. Cito Valéry, traduzindo-o: “ter composto uma obra medíocre com toda lucidez que uma obra-prima a lampejos, em estado de transe…” BANDEIRA, Manuel. Manuel Bandeira Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 30.


 Sobre Solange Rebuzzi

Escritora e psicanalista. Nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Passou a infância em Manaus, e a adolescência em Ipanema. Estudou psicologia, filosofia e literatura. Escreve poesia e prosa. Traduziu Francis Ponge em Nioque antes da primavera durante um Posdoc na UFF, Lumme editor. Publicou o romance A bordo do Clementina e depois. E os diários escritos durante a pandemia: Diário de um tempo indeterminado e Caligrafias. Todos pela 7Letras entre muitos outros.