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CHICO BUARQUE GANHA PRÊMIO CAMÕES E POESIA BRASILEIRA O PERDE

  1. “Não sou poeta, sou um compositor popular”

                Chico Buarque de Hollanda, autor da declaração acima, é o mais novo ganhador do Prêmio Camões, o maior da literatura em língua portuguesa. Entre outras razões, “os jurados destacaram o ‘caráter multifacetado’ de seu trabalho, que passa pela poesia, o teatro e o romance”.1 Quanto ao teatro e ao romance, irei me abster de comentá-los aqui – ao menos longamente. A dramatugia de Chico Buarque, ao que me parece, datou-se logo. Suas obras, como a mais famosa, “Roda Viva” (1968), falam mais do e para o tempo em que foram feitas do que para os dias de hoje e de amanhã – exatamente o contrário da definição de um clássico literário, a obra que transcende seu tempo histórico. Quanto aos romances, tive a oportunidade de me estender ao menos sobre um deles em outro texto.2 Interessa-me, portanto, discutir aqui a estranha inclusão de sua poesia como razão para lhe outorgar um prêmio com o nome de Camões.

                Talvez por ignorância, não conheço nenhum livro de poemas de Chico Buarque. Ao mesmo tempo, me lembro bem (embora tenha esquecido sua fonte) da declaração acima do próprio (que, portanto, cito de memória). Quando referido por um entrevistador como “poeta”, ele o interrompe para corrigi-lo: “Não sou poeta, sou um compositor popular”. Os que pretendem ser as letras das canções poemas a priori talvez devessem parar para pensar nas razões de Chico Buarque em dizê-lo.

                Ou na razão. Pois se trata fundamentalmente de uma e de apenas uma: existe uma linguagem chamada forma canção – no Brasil, estudada profundamente  por outro compositor popular, e também linguista, Luiz Tatit. Além de ter sido o fundador e líder do famoso grupo Rumo, um dos principais da chamada “vanguarda paulista” dos anos 1980, Tatit escreveu todas as obras contemporâneas brasileiras mais importantes sobre a forma canção. Entre elas, aquela que tem o título mais esclarecedor: Elos de melodia e letra.3 Se não fosse contra as regras da boa forma gráfica, este título deveria estar aqui, além de italizado, grifado e em negrito. A tese central de Tatit pode ser sintetizada em uma frase: a canção é uma linguagem específica (feita de elos, de interdeterminações, entre melodia e letra, que não são, portanto, autonômas, e de uma tradição – popular – própria), a poesia e a música instrumental, outras.

                Eis, em sua forma mais simples, a partir de uma entrevista, alguns dos principais argumentos de Tatit: “Canção é diferente de música ou de poesia, pois ‘não adianta fazer poesia, porque, se ela não puder ser dita, não vira canção. E você pode ter também uma música extremamente elaborada, mas se ela não suscitar uma letra, não tiver entoação, também não é canção’. […] Além da entoação e do ‘sobe e desce’ presentes na fala, a melodia recebe influência forte também do ritmo e da letra da canção”.4 E vice-versa: a letra recebe influência da melodia que a “suscita”.  Diferentememte, um poema é um texto sem elos com nada que não seja o conjunto das palavras que o compoẽm, sendo, portanto, autônomo, que segue “leis próprias” – autos-nomos –, além de pertencer a outra tradição.

                Em suma: a forma canção não é música instrumental (o que é óbvio), tampouco, em sua parte chamada letra, poesia (o que deveria ser igualmente óbvio).

                Essa não obviedade seletiva está expressa e sintetizada pelo filósofo e também compositor popular Antonio Cícero, um dos jurados do Camões, cujas pessoa e obra muito respeito, mas de cujos argumentos, neste caso (e também por isso), me permito discordar do modo mais cabal: “’Evidente que esse prêmio é um reconhecimento pela poesia dele nas letras de música, que também são literárias. […] São poemas. Grandes poemas”.5 O problema é que letras de música não são nem poesia nem poemas, como demonstra Tatit. Apesar de usarem a linguagem poética.

 

  1. Usando a linguagem poética

                A questão parece nascer da desconsideração do fato fundamental de que a linguagem poética não é exclusiva da poesia – no próprio campo da linguagem verbal (ou seja, não musical). Ela é usada há tempos na publicidade (“Veja, ilustre passageiro, / O belo tipo faceiro / Que o senhor tem ao seu lado. // Mas entretanto acredite: / Quase morreu de bronquite. / Salvou-o o Rhum Creozotado”), em slogans, políticos ou não (“I like Ike”), em provérbios (“Água mole em pedra dura / tanto bate até que fura”), assim como nas letras de música. A linguagem poética, portanto, não se confunde com a poesia – não porque possa haver poesia sem linguagem poética, mas porque pode haver linguagem poética sem poesia.

                Nada a estranhar: sendo uma forma de organização do discurso, presta-se a mais de um uso, como a prosa, que serve tanto ao romance quanto à bula de remédio, passando pela filosofia e o jornalismo. A poesia é um modo particular da linguagem poética.

                Mas insiste Cícero: “Os primeiros poemas ocidentais conhecidos, alguns dos melhores já feitos, que são os gregos, com os épicos de Homero e os líricos como os de Safo, eram poemas musicados. A palavra lírica vem de lira. A poesia lírica era toda cantada. Seria uma tolice pretender que a letra de música [não seja vista] como grande poema”.

                        Talvez eu seja um tolo. Apesar disto, não creio em argumentos de autoridade. Neste caso, a “autoridade” dos antigos. Porque, na verdade, ela se baseia, neste caso, em dúvidas. Tudo o que se sabe com certeza sobre a música grega antiga é que ela era linguisticamente (isto é, musicalmente) pobre, como, aliás, toda música antiga. Havia pouquíssimos instrumentos: alguma percussão, a própria lira na “família” das cordas, uma ou outra flauta feita de um tubo furado, sem válvulas, e algum tipo de corneta, na verdade, um corno, um chifre oco de animal, como o carneiro. O argumento acima deixa de ver que a poesia se chama lírica porque acompanhada apenas de uma lira (os demais instrumentos serviam a outros usos, como a dança). Sim, poderia ser o equivalente a “um banquinho e um violão”, desde que houvesse na Grécia antiga um Paco de Lucia ou um João Gilberto. Mas não havia. Porque a própria pobreza musical o impedia. E essa música simplíssima acompanhava, não um verdadeiro canto, mas um cantofalado. O mesmo vale, grosso modo, para a poesia provençal, anterior ao grande desenvolvimento da música ocidental no fim da Idade Média. Não havia duas vozes se contrapondo, contraponto, harmonias complexas etc. Para piorar, no caso da poesia épica, como a de Homero, ela era feita em hexâmetros, ou versos de seis medidas métricas, cada uma com duas sílabas, entre longas e breves, equivalendo ao nosso dodecassílabo, ou alexandrino. É impossível imaginar poemas com milhares de hexâmetros integrados a melodias. O que havia, muito mais provavelmente, era um mero acompanhamento musical de uma recitação cantofalada. Tais poemas não eram, portanto, nem verdadeiramente musicados nem cantados. Quanto à lírica, apesar do nome e da lira, vale o mesmo, em função da mesma música antiga.

                Toda essa argumentação é, afinal, ociosa: canções não são poemas musicados (apesar de poemas poderem ser eventual e posteriormente musicados). Porque “a letra recebe influência da melodia”, e poemas, não – pois construídos apenas pelas relações morfossemânticas (ou semânticas e formais) de suas palavras.

                Se não bastasse, a forma canção possui sua própria tradição, ou melhor, uma tradição própria, diferente da tradição da poesia escrita (a música popular não deve absolutamente nada à tradição da poesia ocidental – e vice-versa –, como implica a colocação de Cícero: duvido que muitos compositores populares conheçam as obras de Homero, Safo, Arquíloco, dos provençais, de Petrarca, Dante ou mesmo dos maiores poetas da língua portuguesa, a começar do próprio Camões e a terminar nos grandes modernistas brasileiros; e se isto exclui Chico Buarque, não altera sua adoção da linguagem da música popular, sempre que o faz).

                Cícero argumenta, por fim, que “o debate sobre se a canção é ou não um gênero literário já deveria estar encerrado”. Não, não deveria estar: se mais não fosse, pelo fato de que não o está. E não o será “por decreto”.

                Na verdade, o que deveria estar enterrado é a “conclusão” de tal debate. Pois se trata, afinal, de mera questão de lógica: se A é igual a B, então, B é igual a A. Se uma letra de música é um poema, uma poema é uma letra de música…

                Mas poemas não são letras de música, simplesmente porque não há melodias associadas a eles (a não ser como exceção; além disso, a maioria dos poemas, por suas características de linguagem, sequer são musicáveis). Ao contrário, não há letra de música não integrada a uma melodia. Como já dito e jamais suficientemente repetido, poemas são entidades verbais inteiras, completas, autônomas; letras não são nem inteiras, nem completas, nem autônomas.

                Ninguém escreve um soneto para ser musicado. O que não impede que um soneto seja musicado. Mesmo porque, virtualmente qualquer conjunto de palavras pode ser musicado, incluindo a lista telefônica (mas não muitos poemas, por complexidades intrínsecas do texto). Um conjunto de palavras qualquer ser musicado a posteriori nada diz, portanto, de sua natureza linguística. Ninguém escreve um soneto para ser musicado porque se escreve um soneto para ser um soneto. Isto significa que se trata, de um lado, de uma entidade autônoma, e, de outro, que existem regras necessárias e suficientes para definir um conjunto de palavras como um soneto. E se elas são, ao mesmo tempo, necessárias e suficientes, um soneto nada tem a ver com melodias, por não ter nada a ver com o que não seja o conjunto de regras que o definem. Se a questão não se coloca para as formas fixas, é porque o começo da história está, de certa maneira, no fim das formas fixas.

                A poesia moderna se aproximou, de vários modos, da letra de música – por exemplo, ao adotar uma sintaxe coloquial e o verso livre. A questão emerge redelimitada: não se trata da possibilidade de letras de música serem poesia, senso lato, mas de serem poesia moderna, estrito senso. Letras de música são poesia moderna?

                A resposta ainda é negativa, pela não bidirecionalidade do fenômeno: nenhum poema, mesmo moderno, é em si (isto é, de fato) uma letra, pois para sê-lo, depende de uma circunstância, vir a ser musicado, enquanto a relação de uma letra com uma melodia não é circunstancial, mas existencial.           

                Uma das principais razões de a questão ter particular relevância no Brasil é que, por vários motivos (entre eles a discussão “nacional x popular” do nacional-desenvolvimentismo dos anos 1950, a dimensão pop – de popular – da contracultura dos 1960, o histórico analfabetismo da população e o não menos histórico beletrismo das elites), a canção popular adquiriu aqui um status que não possui em outros países, em que outras artes, como a própria poesia, mas também a música erudita, o teatro etc., ocupam uma posição histórica e cultural proeminente (os melhores exemplos são os países europeus ocidentais, enquanto países como Cuba e Jamaica se assemelham ao caso brasileiro). Mas se a canção popular é, então, “a “grande arte” brasileira, “a grande expressão” nacional, enquanto a poesia é o nome que carrega, em função da tradição ocidental, a aura da arte maior, dar à canção a chancela de ser poesia é lhe dar o máximo status que poderia ter – em contrapartida, negar-lhe o “título” é ser, então, ou mesquinho, ou antipopular, ou antimoderno, ou ressentido, ou preconceituoso, ou elitista, ou conservador, ou surdo, ou obtuso, ou idiota, ou tudo isso (apesar da relevância particular da questão no Brasil, ela também impregnou o debate internacional, a partir do predomínio da arte pop em geral e do surgimento dos Beatles em particular; prova disso é o Nobel de literatura de Bob Dylan, mais um sintoma da exaustão dos critérios e da crítica, do laissez faire e do “democratismo” que marcam a grande confusão contemporânea – ver nota 19).

 

  1. Canções de amor demais

                Num pequeno apartamento na orla da praia, Zona Sul do Rio de Janeiro, início dos anos 1960, reuniu-se em torno de algumas garrafas de uísque um pequeno grande grupo. Isso levou João Cabral a ficar encostado na parede do fundo da sala, enquanto Vinicius de Moraes, no sofá, cantava uma de suas músicas acompanhado pelo violão de Carlos Lyra. Ao final, aplausos, e depois dos aplausos, uma pergunta lançada do fundo da sala pela voz baixa e áspera de Cabral: “Ô Vinícius, você não não tem outra víscera para cantar não?”. A “víscera” a que Cabral se referia era, naturalmente, o coração, onipresente nas canções de Vinicius. A famosa cena foi narrada e corroborada várias vezes (Vinicius, aliás, fechou a boca e o sorriso), mas, creio, jamais analisada.

                A canção popular (pois também existe a canção erudita, de Castro Alves a Schubert) é uma arte de origem… popular. E assim como outra tradições populares, como o artesanato, o cordel, o antigo teatro de feira medieval, com seus personagens-tipo, como o arlequim, a colombina etc., tem entre suas características dominantes a repetição e a redundância. Na canção popular, elas se manifestam em níveis profundos, tanto gramaticais quanto formais quanto semânticos.

              Gramaticalmente, os textos das letras costumam ser referencial-pronominais, centrados nos pronomes eu ou ele(a) – longe, portanto, da materialidade linguística característica da poesia moderna –, além de tributários não apenas da ordem direta como também explícita da estrutura frasal sujeito-verbo-predicado, em que todos os elementos são materializados (“Eu canto pra ser feliz” [Caetano Veloso]). Formalmente, há um pequeno repertório de figuras de linguagem e recursos vocabulares sempre revisitados (que resultam em verdadeiros elementos convencionais, como nas figuras de artesanato), como as rimas beijo/desejo, boca/louca, samba/bamba, existe/triste, lua/nua, cantar/sonhar (para não falar do quase monopólio da rima em detrimento de outros recursos morfossemânticos mais sutis, como a assonância, a aliteração etc.). Semanticamente, há um pequeno repertório temático: muitas letras tratam da própria música (do cantar, do cantor, do violão, da viola…), além de sentimentos comuns, como o amor; daí as palavras-chave como saudade e coração (que o diga Cabral). Estruturalmente, a presença habitual do refrão nada tem a ver com a letra, ou seja, com a pretensa “poesia” da canção, pois apesar de parte da letra ele é, na verdade, parte da melodia. A confusão se explica: o refrão não serve apenas pelo que diz, aliás já dito da primeira vez em que aparece, mas para reforçá-lo, numa função cat&aa cute;rtica característica de uma arte performática (daí os cantores comumente apontarem o microfone para a plateia, “deixando-lhe” o refrão), além de permitir a repetição de sua célula melódica, um dos principais elementos para que uma música “pegue”, para usar o jargão, ou seja, se memorize sem nenhum esforço (ao contrário) do ouvinte. Também é comum (na verdade, quase tudo é comum, nos dois sentidos, na imensa maioria das canções populares) a existência de idiossincrasias perfeitamente injustificáveis em um poema, como o uso de dois registros para uma mesma palavra numa mesma linha: “pra ser feliz, pra esperar, para sofrer” (Caetano Veloso). Por que o pra coloquial primeiro e o para lexical em seguida? Por causa da melodia, naturalmente. Ou seja, as letras trazem em si mesmas, organicamente, determinações que só fazem sentido pela existência da melodia (os “elos” de Tatit).

                Em suma, as boas letras são, comumente, versos que, quando cantados, podem ser uma pequena maravilha. Mas, lidos em silêncio, transformam-se, como regra, em uma enorme e constrangedora banalidade. Mesmo porque, muitas vezes sequer são versos (cabe lembrar que a linguagem poética não é exclusiva da poesia), mas textos coloquiais os mais prosaicos (em todos os sentidos), como nos casos de um Gonzaguinha, um Ivan Lins e um extenso etc.

                “Ah, porque tudo é tão triste…”, pergunta Vinicius de Moraes em “Garota de Ipenama” (assim como milhões de pessoas pelo mundo em frente a um copo de bebida). Já eu pergunto: por que tudo é tão banal quando se põe uma letra de música no papel? Porque se amputa uma forma, chamada forma canção, inextricavelmente feita de texto & melodia. Uma letra no papel não é uma letra no papel, mas uma canção amputada de sua melodia. Uma linguagem amputada não pode, obviamente, ser grande coisa, uma coisa grande, uma grande arte.

                A letra de música, como seu nome explicita, é de música, ou seja, feita em parte de música (daí não ser “da música”). A letra é feita de música, no sentido de que não tem, congenitamente, uma existência autônoma, pois nasce ligada a uma melodia. Mesmo que a melodia ainda não exista de fato quando do nascimento da letra. Pois existirá de direito, no sentido de que a letra nasceu para ser musicada. Em suma, ela será, como regra, modificada, adaptada, no processo de melodização, quando prévia, ou diretamente condicionada pela melodia, quando posterior. A letra é um caso único de um conjunto de palavras que existe para ser musicado. Dito de outro modo: a melodia está nas letras, mesmo quando ausente. Daí as letras ficarem amputadas, quando ausente. Daí serem sempre menores do que elas mesmas quando em condição de “poesia”. Daí não serem poemas, mas apenas uma parte, que usa elementos da linguagem poética, de uma linguagem outra, chamada canção.

 

  1. Amores, saudades e interjeições

                 Há inúmeras outras evidências das “naturezas” linguísticas distintas de letras e poemas. Primeiro, o tamanho. Não existem limites a priori para o tamanho de um poema. Daí haver o  poema longo. Mas não existe a letra longa (por sua condição performática). A letra mais longa é ainda curtíssima perto de um poema longo (que pode ter centenas de páginas, como Os Lusíadas). Segundo, a temática. Enquanto a poesia trata virtualmente de tudo (Cabral, por exemplo, tem uma longa série de poemas dedicados à análise do que seja uma cabra),6 a letra de música se limita, como regra, a poucos temas, como já referido: o amor e seus correlatos, o próprio gênero da música popular etc. Terceiro, a complexidade sintático-estrutural. Ela é virtualmente ilimitada na poesia, a ponto de haver comumente poemas que beiram o limite da legibilidade. Mas não há letra de música que mereça de fato o adjetivo complexa. No caso da inevitável “Construção” de Chico Buarque, por exemplo, sugiro que se leiam os próprios poemas da cabra de Cabral, para auferir de que tipo de complexidade se trata. Aliás, a própria “Construção” é, de certa forma, e não por acaso, “cabralina” – daí sua relativa complexidade –, pois influenciada diretamente pelo trabalho anterior de Chico Buarque, de musicar poemas de Cabral em Morte e vida Severina. O contrário não é verdade: a poesia de Cabral nada deve à canção popular; o mesmo vale para a influência da poesia concreta em parte da obra de Caetano Veloso, entre outros, sempre unidirecionais.

                A soma de tudo isso é uma subtração: o tamanho, a temática e a complexidade, na letra de música, são muito limitados, se comparados à poesia. Sendo um poema uma entidade autônoma, é sua autonomia que possibilita tais características, ao permitir que se leve a linguagem poética aos seus limites. Já a letra é apenas parte de um todo: em consequência, ao se pretender que seja poesia, podendo e devendo ser, então, comparada diretamente à própria poesia, não se está a engrandecê-la, ao contrário. Apesar de os defensores da ideia acreditarem lhe angariar certo status em relação à poesia, na verdade diminuem a letra de música perante si mesma. Pois enquanto um poema, ao ser um poema, é ele próprio, uma letra, ao ser “poesia”, é sempre menor do que ela mesma como letra. A comparação, portanto, é desvatajosa para a letra de música. Em seu campo próprio, ou seja, como parte, e parte apenas, de uma canção, se não pode e não deve ser comparada à poesia, pode e deve ser analisada pelos critérios (e méritos) pertinentes à sua linguagem.

                A demonstração é, afinal, muito simples. Basta ler as letras anulando a melodia. Lendo-as, portanto, como poesia (o que fiz com Tantas palavras de Chico Buarque e Letra só de Caetano Veloso).7 Em seguida, cantem-se as mesmas letras. Elas crescem sempre, e muito. E é natural que cresçam. Não apenas por ganharem um novo elemento e uma nova dimensão, respectivamente, a melodia e a musicalidade, mas porque aquilo que tem de positivo assume toda sua potencialidade (sutis modulações no sentido das palavras por sua entonação, ênfases pela subida de tom, a presença empática da voz humana, o diálogo voz-instumentos, a sedução atávica do ritmo), enquanto, ao mesmo tempo, o que têm de negativo se anula. E o que têm de negativo (poeticamente) não costuma ser pouco.

                Muitas vezes, são interjeições como “ah”, “oh”, “ó”, que parecem coisa do mais desinformado tardorromantismo na página, mas fazem sentido ante a condição popular-oral da canção (nada mais oral do que uma interjeição): “Oh bela, gera a primavera” (Chico Buarque, “A bela e a fera”);8 “Ah, como era bom…” (Caetano Veloso, “Saudosismo”).9 Outras vezes, são banalidades e prosaísmos que a melodia sustenta: “Por ser feliz, por sofrer, por esperar // Eu canto // Pra ser feliz, pra esperar, para sofrer // Eu canto” (Caetano Veloso, “Minha voz, minha vida”).10 Um poeta que escrevesse isso mereceria risos, não aplausos – ainda que a presença de um cadáver demande alguma circunspecção…

                Circunspecção, aliás, que talvez seja o melhor termo para sintetizar o páthos daquele considerado o maior poema da poesia brasileira, “A máquina do mundo”, de Drummond, que não analisarei aqui. Apenas reproduzo, para efeito puro e duro de uma comparação direta, suas primeiras estrofes:

 

                                                               E como eu palmilhasse vagamente
                                                               uma estrada de Minas, pedregosa,
                                                               e no fecho da tarde um sino rouco

                                                               se misturasse ao som de meus sapatos
                                                               que era pausado e seco; e aves pairassem
                                                               no céu de chumbo, e suas formas pretas

                                                               lentamente se fossem diluindo
                                                               na escuridão maior, vinda dos montes
                                                               e de meu próprio ser desenganado

                                                               a máquina do mundo se entreabriu
                                                               para quem de a romper já se esquivava
                                                               e só de o ter pensado se carpia.

 

                Disse que não comentaria o que é uma espécie de longa paródia (32 estrofes) modernista-existencialista da Comédia de Dante (de onde vem a expressão do título e a estrutura em três versos). Mas é impossível não comentar certas coisas. Por exemplo, o poderosíssimo enjambement “e aves pairassem // no céu de chumbo”, com “pairassem” pairando levemente à beira de um verso por um longo segundo, para então mergulhar, pela continuidade da frase, no outro verso, mas pairar ainda, pela semântica do verbo, no leve peso escuro de “céu de chumbo”.

 

  1. A pouco circunspecta morte da canção

                “A canção morreu”: esta afirmação foi feita por ninguém menos que Chico Buarque (mais uma vez, cito de memória). Até sua morte recente (soterrada por vídeos abundantes de música esquálida), o provável motivo de tantos tanto afirmarem, satisfeitos, que a melhor poesia brasileira dos últimos tempos está (ou estava) nas letras de música popular é que a tradição do verso moderno brasileiro se manteve, de certa forma, viva nas letras, enquanto era emudecida na própria poesia. “Construção” é Noel Rosa depois de se ter intoxicado de Cabral. “Garota de Ipanema” é simplesmente (nos dois sentidos) a revolução modernista limpando de roldão a dicção aportuguesada das letras de música: “Olha que coisa mais linda…”. A partir daí, a dicção brasileira está (estava) na MPB, mas não está na poesia, sem mais qualquer dicção definida, depois dos vanguardismos e do pós-vanguardismo. A MPB salvou-se (mesmo se apenas para depois morrer) porque nada tem de visual, uma das dimensões principais das últimas vanguardas. Afinal, se trata de música. E da forma canção. Portanto, uma vez que a revolução modernista brasileira chegou ao samba (mas não pelos clássicos do próprio samba: as letras de Cartola, por exemplo, são ainda bastante “portuguesas”), ficou. Seu encontro maior chama-se Bossa Nova e suas sequências e consequências. “É pau, é pedra, é o fim do caminho….”. Como isto seria possível sem Carlos “No meio do caminho” Drummond? Sem Vinicius, que fez a ponte em sua própria biografia? É por isso que um compositor popular como Caetano Veloso diz que o mundo começou na Bossa Nova. Ele tem razão, quanto à moderna canção brasileira, ao menos até sua morte recente. Já no caso da poesia, esse “mundo” (isto é, o falar brasileiro feito linguagem poética) morreu no concretismo.

 

  1. O caso da poesia ou Como dizer que isso é aquilo sem saber o que é isso?

                “O sentido original das palavras não confina sua significação ao longo do tempo” (citado de memória). Mas tal obviedade dita por um crítico não elimina seu significado original, como aqui se subentende, com um claro viés de relativismo “pós-moderno” que, não obstante, é vazado de forma peremptória. Uma afirmação mais realista, então, seria: o sentido original das palavras não confina sua significação ao longo do tempo, nem por isso o sentido original deixa de estar presente.

                Poíesis é, em grego, um verbo, fazer, criar, e se referia originalmente a todas as artes e ofícios. Poietés significava, portanto, criador, no sentido de fazedor – uma possível tradução seria, talvez, artesão. Mas se poietés significava artesão, não significava poeta. De fato, o termo arcaico para poeta é aedo, que, etimologicamente, se relaciona a aedon, rouxinol, e a ode. Pois os poetas cantofalavam sua arte, que era inspirada pelas Musas. Daí poeta, ou melhor, aedo, também ser chamado musikós (que, derivado de musa, nada tinha a ver com o que entendemos por música).

                Poesia, música, e ainda, do latim, canto: palavras cantadas (na verdade, cantofaladas, pois sem integração real com uma melodia) acompanhadas pelo som de instrumentos. Quando, mais tarde, os elementos dessa arte se separam, cada um desses termos, antes sinônimos, será mobilizado para designar uma das partes agora separadas.

                A partir do século XIV, com a polifonia e a notação musical moderna, inicia-se o processo de completa separação dos instrumentos em relação à voz, que não mais acompanham: essa nova arte instrumental será chamada de música. Nos dois séculos seguintes, é a vez de as palavras se separarem do cantofalado, imergindo no silêncio do papel impresso: essa arte das palavras autônomas se chamará poesia (termo que, por falar em Camões, ainda aparece apenas duas vezes em todos os dez cantos de Os lusíadas – em paralelo à completa ausência da palavra poeta –, enquanto arte, engenho, musa, além da própria palavra canto, aparecem inúmeras vezes). O mesmo valerá para as principais línguas europeias ocidentais, com alguma variação de tempo. A palavra cantada, integrada a uma melodia, receberá o nome de canto (cantus), tradução latina da mélos grega.

                “Mélos. Membro, articulação. Membro da frase musical. Canto rítmico. […] Palavra que se repete constantemente”. “Carmen [cantus]. Fórmula ritmada, fórmula mágica, fórmula solene”.11 Fórmula ritmada, fórmula mágica: cantus é do mesmo campo semântico de incantus (encanto). A palavra cantofalada que, decantada no papel, será modernamente chamada de poesia, não é, portanto, uma palavra qualquer, como a da fala cotidiana ou do discurso político. Trata-se de conjuntos de palavras divididos em partes (“membro”), ou em pequenas unidades (“fórmula”), ritmadas e encantatórias: “palavra que se repete constantemente”. Palavra, portanto, que retorna. Retornar, em latim, é verto – cujo particípio é versus. Daí se entende porque a poesia é identificada, já em latim, com o sentido de “obra em verso”. Ou seja, feita de repetições, de retornos, de reiterações, de recursos. “Recurso. Ato ou efeito de recorrer”.12 Recorrer é percorrer novamente, voltar para trás antes de seguir adiante. O que nos permite, enfim, uma primeira formulação: poesia é o que se faz retornando. Construção por reiteração.

                Não é, porém, possível recorrer, voltar atrás, retornar, em um fluxo contínuo – seja o de um rio, do tempo ou da prosa. A poesia, portanto, não é somente um discurso recursivo. Ao ser recursiva, ao retomar ou reiterar seus elementos, ela é também, necessariamente, discreta, por interromper o fluxo de palavras com e para o ressurgimento, a recorrência, de um elemento qualquer. Discreto significa comedido, pequeno – mas também “feito de unidades distintas”, ou seja, descontínuo, e, por fim, em termos propriamente linguísticos, aquilo “que se junta a outros na cadeia falada sem, contudo, perder a individualidade”.13 Cada grupo de palavras adquire, assim, a condição de uma pequena unidade, que se junta a outras unidades numa cadeia – o que afinal determina sua estrutura, isto é, sua sintaxe. Pois cada novo passo, na verdade, não repete simplesmente o anterior, como num mantra, mas recaptura informações prévias, numa interdeterminação, ou motivação, dos elementos morfossemânticos. Recursividade gerando discrição, discrição recursiva gerando interdeterminação morfossemântica, interdeterminação morfossemântica gerando poeticidade.

                Todas as notórias figuras sonoras da poesia, como rima, aliteração, assonância, paronomásia, além das figuras de ritmo como a métrica, e ainda as figuras de estrutura como as estrofes, são formas de recorrência. E ao incidir sobre o fluxo contínuo natural da linguagem verbal, tornam-na discreta. São também, portanto, formas de discrição.

                Ao ser recursiva e discreta (a discrição e a recursividade nascem juntas também historicamente, por necessidade tanto mnemônica quanto encantatória, em tempos sem escrita e sob o domínio de uma visão mítica do mundo), a poesia se torna o que somente ela é, ao contrário da condição comum da linguagem verbal (da fala à prosa literária), linear e unidirecional. Isto a faz, em consequência, não apenas uma identidade, uma existência real e particular, distinta dos demais modos verbais, como também possuidora, por particular, de capacidades exclusivas (afinal a razão de ser da poesia é ser poesia, não prosa, cinema ou chapéu).

                Os recursos formais da linguagem poética são inúmeros – assim como suas potencializações semânticas – porque a subdivisão do texto em unidades discretas de vários tipos, bem como suas variações, além dos muitos modos de interação, de separação-união entre as unidades (como o famoso leixa-pren, “deixa e prende” das cantigas de amigo galego-portuguesas), permitem-lhe uma plasticidade e uma carga de informação estético-semântica que não tem paralelo na linguagem prosaica (recurso, aliás, é uma boa tradução para unidade discreta recorrente, pois re-curso é o curso que retorna, que se reitera). A recursividade discreta da poesia, nas mãos de um Dante, gera o terceto decassilábico em rimas alternadas/encadeadas que, por sua vez, permite sintetizar a cosmovisão medieval a partir dessa unidade mínima tripartite e concatenada (a Trindade cristã, a tríade inferno-terra-céu etc.), assim como, modernamente, nas mãos de um Carlos Williams, cria estruturas de máxima discrição e substantividade: “as the cat / climbed over / the top of // the jamcloset  / first the right / forefoot // carefully / then the hind / stepped down // into the pit of / the empty / flower pot.14

                Se, de um lado, as palavras são aqui semanticamente precisas (também no sentido de necessárias), por outro, são formalmente expostas pelos cortes, e imantadas pela proximidade, de forma a tornar evidente sua articulação rítmica, cujos versos curtos imitam ou capturam os movimentos ao mesmo tempo articulados e rápidos do gato, o que fica mais claro na última estrofe, com a sequência pit/empty/pot, que por sua vez culmina uma série em tt finais iniciada pela própria palavra cat (e continuada com jamcloset, first, forefoot). Além de várias outras relações sonoras, como cat/climbed, cat/top/pot, first/forefoot/flower, stepped/empty, pit of/pot etc., numa densa (mas leve) trama de recorrências morfossemânticas.

                Não apenas essa grande plasticidade da matéria verbal, mas esse tipo de interdeterminação, ou motivação das relações entre significado e significante, obviamente inexiste na prosa. Isto significa que na prosa não existe tal controle da matéria do texto. Não porque não haja prosadores que não escrevam “ao correr da pena” e que, ao contrário, escrevem e reescrevem cada parágrafo com toda a atenção e todo o rigor. Mas porque não se trata de capacidade ou vontade, mas de possibilidade. Ou de impossibilidade. Invertendo a relação de causa e efeito, escreva-se um texto com um grau máximo de interdeterminação formal e semântica e não se conseguirá escrever prosa (ou a “poesia” prosaica de tantas letras de música).

 

                                                               os girassóis
                                                               amarelo
                                                               resistem15

 

                Em prosa, esse famoso exemplo seria um mero erro de concordância numérica, “os girassóis amarelo[s] resistem”, ou uma inversão da frase “os girassóis resistem amarelo”, com o adjetivo em função adverbial. Mas o que é erro ou preciosismo numa linguagem, é polissemia e materialidade em outra. Ao separar o adjetivo “amarelos” de “os girassóis” pelo enjambement e eliminar o plural, além de se manter a função adjetiva pela posição frasal, bem como a adverbial, inclui-se a função substantiva: “os girassóis / amarelo [cor amarela] / resistem”. Ou seja, amarelo torna-se a realização, no poema, do que a frase diz. Uma tradução semiótica desses versos seria:

 

                                                            os girassóis
                                                                                                                                                                                                        resistem

 

 

                Um modelo é tanto melhor quanto maior o número de fenômenos for capaz de explicar (“algo que se aplica a todas as hipóteses”, nas palavras de Pound). A recursividade discreta, além de descrever os mecanismos, os elementos e a estrutura dos diferentes poemas acima citados, mais genericamente também explica porque o dodecassílabo é o verso limite em português, assim como seus equivalentes em outras línguas (desde o hexâmetro grego). Explica a organização do texto em estrofes (subunidades de versos). Explica a própria diagramação habitual da poesia, feita de linhas curtas em sequência. Explica, ainda, as famosas formas fixas.

                As formas fixas, afinal, são tão somente conjuntos de unidades poéticas discretas consagrados pelo uso e pela tradição. Foram, portanto, para efeitos práticos, reduzidas a uma estrutura assemântica, descarnada de um texto, que cada novo texto ressemantiza. Pode-se, assim, representar o soneto por um conjunto de algarismos e letras, em que os algarismos são as sílabas (num total de 10, para versos decassílabos, ou unidade discreta de 10 sílabas) e as letras, as rimas (ou elementos sonoros recursivos finais), enquanto os negritos marcam as tônicas obrigatórias (aqui, trata-se do soneto clássico italiano):

 

                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 A
                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 B
                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 A
                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 B

                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 A
                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 B
                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 A
                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 B

                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 C
                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 D
                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 C

                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 D
                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 C
                                                               1 2 3 4 5 6 7 8 9 D

 

                O fim das formas fixas foi o abandono de certos conjuntos ou arranjos consagrados de unidades poéticas discretas, não da linguagem recursiva ou reiterativa que os criou originalmente – antes que fossem consagrados e “fixados”, isto é, repetidos.

                A forma soneto evidencia ainda outra característica fundamental da tradição da poesia escrita, da qual a canção não participa: sua dimensão visual, no equilíbrio gráfico de seu arranjo estrófico, feito de dois pares de quatro versos seguidos de dois pares de três. Há, também, uma dimensão silogística, com a primeira estrofe servindo de introdução do tema, a segunda de desenvolvimento, e os tercetos de conclusão e de arremate. Nem a visualidade nem a logicidade estrutural tem nada a ver com a canção, obviamente. A poesia escrita, de certa forma, está talvez mais próxima das artes visuais do que da música.

                Pois nela influi a organização do texto (que não depende ou deriva de arranjos gráficos artificiais, isto é, do margeamento arbitrário à esquerda por cortes igualmente arbitrários de uma linguagem prosaica), tradução gráfica de sua própria estrutura linguística Se o caso do soneto é o mais evidente, também vale para o arranjo em estrofes em geral. Basta pensar na Comédia de Dante e sua estrutura tripartite para tratar de uma visão de mundo organizada em torno do número três.

                Explica-se, ainda, casos particulares, por exemplo, a famosa divisão em escada dos versos de Maiakovski, cuja quebra em degraus anula sua tendência discursivo-retórica (naturalmente, os “degraus” de Maiakovski não são quebras aleatórias, mas poeticamente motivadas, além de poeticamente motivadoras). Explica, enfim, achados eventuais, como o famoso caso da edição de Ezra Pound do não menos famoso poema de Arnaut Daniel, Laura Amara,16 ou a necessidade de Northrop Frye subdividir um verso de Shakespeare para analisá-lo:

 

                                                               Ay, but to die, and go we know not where.

 

Podemos ouvir um certo ritmo métrico, um pentâmetro iâmbico falado como um verso de quatro acentos. […] Mas também podemos, se ouvirmos o verso com muita atenção, perceber nele ainda outro ritmo, um ritmo oracular, meditativo, irregular, impredizível e essencialmente descontínuo, a emergir das coincidências do esquema sonoro [grifos nossos]:

 

                                                               Ay,
                                                               but to die…

                                                               and go
                                                               we know
                                                               not where…

Assim como o ritmo semântico é o primeiro passo da prosa, e assim como ritmo métrico é o primeiro passo do épos, assim também esse ritmo oracular parece ser o primeiro passo predominante na lírica.17

 

                Tal “ritmo descontínuo”, essencialmente lírico (isto é, poético), “emerge” das recorrências sonoras: ay rima com die, go rima com know, e not where é um anagrama de we know. Recursividade gerando discrição, discrição recursiva gerando poeticidade.

                O modelo da recursividade discreta pode, no entanto, se aplicar também à música, o que fica evidente ao se pensar em Bach. Isto apenas confirma a antiga proximidade (mas não integração melódica) da poesia com a música. Na verdade, da música com a poesia. Pois não se trata, afinal, em termos de linguagem, de a poesia ser a mais musical das artes verbais, mas de a música ser a mais poética das artes não-verbais A música é a poesia sem palavras (a proximidade entre a poesia e a prosa, por outro lado, é ilusória: apoia-se, fundamentalmente, no fato de ambas serem constituídas de palavras, enquanto o que há de poético na poesia não são as palavras em si, mas sua poeticidade). A presença do ritmo, portanto, não aproxima a poesia da música por esta também tê-lo presente: o que as aproxima é o mecanismo poético – que em ambas gera o ritmo – da recursividade discreta. O que as diferencia, por outro lado, é a semanticidade das palavras em contraste com a assemanticidade das notas musicais. A interdeterminação morfossemântica que, na poesia, gera a discrição recursiva, não vale para a música.

                A poesia é a arte da recursividade discreta semântica. E se a linguagem poética não se limita à poesia, a poesia se limita à linguagem poética. Um poema, enfim, é uma obra literária em linguagem poética (isto é, “em poesia”, e não, portanto, em prosa; e por literária entenda-se a integração a certa tradição, distinta daquela da canção). Nada além disso é poesia. Nada aquém disso tampouco. Como a letra de uma canção, cujo elo com a melodia, para usar o termo de Tatit, limita e delimita o uso da linguagem poética, o oposto do caso da poesia, cuja razão de ser, de certa forma, é alcançar e estender os limites dessa linguagem.18

 

  1. Desconstruindo “Construção” e a construção poética de seu autor

                A “letra” de “Construção” é, na verdade, um poema. A canção, portanto, é um poema musicado, assim como o foram tantos sonetos de Vinicius. Pode-se e deve-se afirmá-lo porque – à diferença da imensa maioria das letras de música, em que dominha o coloquialismo mais prosaico e popular submetido e adaptado às necessidades melódicas – a “letra” de “Construção” é um verdadeiro catálogo de alguns dos recursos mais tradicionais (em todos os sentidos) da poesia em língua portuguesa.

                Começando pelo começo, seu texto se estrutura sobre a figura (erudita, advinda da antiga retórica latina) da anáfora, ou repetição de uma mesma palavra ou forma no início de cada frase. Aqui, trata-se do tempo verbal: amou, beijou, subiu, ergueu, sentou, comeu… Outra presença de uma figura clássica é sua métrica: seus versos são, ou um alexandrino, ou dodecassílabo, ou verso de doze sílabas, acentuado obrigatoriamente, como aqui, na sexta e na décima, ou um heptassílabo, ou redondilha maior, ou verso de sete sílabas, o mais tradicional da lírica em português. Além disso, esses versos se organizam na mais clássica das estrofes, a quadra rimada. Quanto ao tipo de rima predominante, trata-se da chamada esdrúxula, em que se rimam palavras proparoxítonas, muito popular na poesia parnasiana. Por fim, há uma enorme influência da poesia de João Cabral, nos versos montados por permutações dos mesmos termos (predominantemente literários, como embotado, flácido, lógico). Tudo em “Construção” (da estrutura ao vocabulário às interrelações) é linguagem poética (tradicional e consagrada), nada é coloquialismo prosaico característico das letras de música.

                Chico Buarque é, portanto, um poeta, mas tão somente quando usa a linguagem poética, do mesmo modo que um artista plástico só é escultor quando esculpe, mas não quando desenha. Ou quando cozinha seu jantar. A arte culinária usa materiais e modos próprios, específicos, particulares, como todas as artes (sim, há os hibridismos, as misturas, os temperos multiculturais, o “tudismo” “pós-contemporâneo”, mas, ainda assim, também há limites: não se pode fazer uma sopa de pedras, ou comer o prato de sopa de uma tela).

                Mas se, apesar de tudo, se quiser afirmar que ele é um poeta no sentido lato, ou seja, sempre que compõe, será o mesmo que dizer que um escultor, ao desenhar, está esculpindo. Chico Buarque é um poeta quando faz poesia (mas não, por exemplo, quando escreve um romance), independente de a musicar, e não porque suas letras sejam poemas “por decreto”, ou, pior, a priori. Apenas poemas são poemas. Sempre que suas letras, além da linguagem e temática próprias da canção, dependem da melodia para adquirir sua plena robustez estética, elas são, obviamente, letras, não poemas. E quando não o são, ele é um compositor popular (segundo ele mesmo, aliás); possivelmente, o maior da música brasileira.

                Em conclusão, o Prêmio Camões, ao justificar-se também por sua “poesia”, está se referindo a uma pequena parte de seu cancioneiro, cuja “letra” é, na verdade, um poema musicado, como a própria “Construção”. Porque, se se quiser pôr tudo no mesmo saco, ou melhor, na mesma folha de papel, a maior parte de sua “poesia” (“Oh quantos gritos / Oh quanta alegria…”) só seria poesia se anteposta a algum adjetivo que desmereceria sua condição de grande compositor. E que, obviamente, não valeria o maior prêmio da literatura em língua portuguesa.19

 

1                     Maurício Meirelles, “Chico Buarque é o novo ganhador do Prêmio Camões de literatura – Compositor é o primeiro músico a ser eleito pelo principal troféu literário da língua portuguesa” (<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/05/chico-buarque-e-o-novo-ganhador-do-premio-camoes.shtml>).

2                     In https://sibila.com.br/critica/na-quarta-tentativa-chico/2716.

3              Ateliê, 2008. Outros títulos seus incluem Semiótica da canção: Melodia e letra (Escuta, 1994), O cancionista: Composição de canções no Brasil (Edusp, 1995), Análise semiótica através das letras (Ateliê, 2001),  e O século da canção (Ateliê, 2014).

4              “O que é canção, por Luiz Tatit” (<https://www.digestivocultural.com/blog/post.asp?codigo=1567&titulo=O_que_e_cancao,_por_Luiz_Tatit>).

5              “Chico Buarque é o novo ganhador do Prêmio Camões de literatura”.

6               “Poema(s) da cabra”, Obra completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, pp. 254-9.

7              São Paulo, Cia das Letras, 2006; São Paulo, Cia das Letras, 2003.

8              Opus cit., p. 328.

9              Opus cit., p. 73.

10            Idem, p. 83.

11            F. Torrinha, Dicionário latino-português, Lisboa, Gráficas Reunidas, 1997, pp. 363 e 125.

12            Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

13            Idem.

14            “Poem” (<http://www.americanpoems.com/poets/williams/4510>).

15                   “Pensão familiar”, in Estrela da vida inteira, Rio de Janeiro, José Olympio, 1979, p. 95.

16            Ver em https://allpoetry.com/poem/13555302-Laura-Amara-by-Ezra-Pound.

17            Northrop Frye, “O ritmo da continuidade: a prosa”, in Anatomia da crítica, São Paulo, Cultrix, 1973, pp. 51-2.

18            Esta parte (modificada) integra o ensaio “A razão da poesia”, publicado na revista Eutomia, da UFPE (<https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/883/665>).

19            O mesmo vale para para o famoso Nobel de literatura dado a Bob Dylan, que, naturalmente, foi referido pela mídia como corroboração do Camões de Chico Buarque – insinuando nossa “modernidade” e não provincianismo: somos iguais a “eles”. Pois o “nosso” é igual ao “deles”: “Nobel de Bob Dylan se sentiria à vontade no colo de Chico Buarque – se o vencedor do Camões escrevesse numa língua menos secreta do que o português, poderia vencer o prêmio sueco” (<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/05/nobel-de-bob-dylan-se-sentiria-a-vontade-no-colo-de-chico-buarque.shtml>). Portanto: Chico Buarque para o Nobel (esqueçamos, cantando um samba alegre, que nem Machado, nem Cabral, nem Drummond, nem Rosa etc. o ganharam). Na verdade, além de um mero “argumento de autoridade”, tal comparação é uma rearfimação de nosso “complexo de viralata”: em vez de se discutir um Nobel necessariamanente discutível (ao menos em bases equivalentes às feitas aqui para a obra “poética” de Chico Buarque), corrobora-se um Camões com um Nobel e estamos felizes e conversados.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).