Por que nascem as grandes inimizades entre os filósofos
Platão e Antístenes eram grandes amigos. Frequentavam a mesma e única Academia. Vestiam os mesmos mantos cor púrpura, prestigiavam a escultura, faziam saraus literários e filosóficos. Adoravam comprar figos secos e degluti-los enquanto falavam de assuntos pessoais. Até que, um dia, Antístenes convidou Platão para assistir a uma leitura pública de uma obra sua.
Antístenes: – Platão, meu amigo, não queres participar de uma leitura pública de uma obra minha?
Platão: – Do que trata?
Antístenes: – É algo sobre a impossibilidade da contradição.
Platão: – Como, então, podes escrever sobre esse assunto?
Antístenes, diante dessa resposta contundente e certeira contra o seu projeto, declara inimizade a Platão, que também não deixa por menos, e, a partir de então, essa inimizade envenenou todos os demais diálogos entre os dois, com ataques de ambos os lados. Antístenes, por exemplo, escreveu um livro inteiro, intitulado Saton*, contra Platão. “Mas não eram filósofos, isto é, amigos do saber!”, alguém poderia exclamar em tom de objeção. É preciso não esquecer, como diria o mestre Schopenhauer, que aqui estamos no campo da vaidade, cujas ervas sombrias crescem muito mais quando se trata da comparação entre as qualidades intelectuais. E o saber e a amizade que se danem.
*O nome do diálogo parece ser mesmo um trocadilho simplista com o nome de Platão. Vê-se que, quando a controvérsia das vaidades chega a esse ponto, até as musas se afastam.
O apelido de Aristoclés
Os gregos (entenda-se pela expressão um período profícuo de produção filosófica de mais de 300 anos), inventores reconhecidos da própria atividade filosófica, inventaram também o melhor apelido de filósofo: Platão, originariamente chamado de Aristoclés. O apelido, e a sua permanência quase imemorial (ultrapassando o próprio mundo das ideias de Platão), é a prova viva do equívoco do platonismo, pelo menos a parte que propaga o desprezo ao corpo, chamado de cárcere da alma. Diógenes Laércio, pesquisando sobre a gênese do apelido, levanta três hipóteses:
1. Platão recebeu o apelido de um lutador argivo, Aríston, de quem era aluno e com quem malhava. Platão quer dizer ombros largos. Faz sentido.
2. Platão recebeu o apelido por causa de seu estilo amplo. Platão, platô, platitudes. Faz sentido.
3. Platão recebeu o apelido por causa de sua ampla fronte ou sua testa larga. Faz sentido, cabeção!
Conclusão nossa (e não de Diógenes Laércio): se a compleição física de Platão impingiu uma tintura penetrante na sua própria filosofia, não poderia essa mesma filosofia, em seus conteúdos específicos, negar ou desprezar o ente que de forma tão indelével, mas definitiva, serviu para definir a própria figura-alma do filósofo. Platão não poderia, por questão de coerência, ter negado que é Platão. Mas o fez. Talvez por isso, em um dos seus epitáfios, os gregos o tenham chamado de Aristoclés.
O verdadeiro amor de Platão
I. O verdadeiro amor de Platão era Díon (isso Aristipos nos diz com todas as letras). Não que houvesse um falso amor, a não ser sob a perspectiva do erro que o senso comum criou a respeito do conceito de amor de Platão por meio da expressão “amor platônico”: amor à distância, mas alimentado loucamente pela impossibilidade do contato físico ou corporal. O verdadeiro amor de Platão nascerá, como conceito, no Banquete e se expandirá politicamente no seu melhor livro, A República: é o amor pelo saber, pela excelência moral; é a própria Filosofia. Em termos espirituais, seria o amor pela alma (não por esta ou aquela), pelo que a alma do ser humano pode ter de melhor em termos de valores: coragem, temperança, sabedoria ou, numa palavra só, justiça. E é apenas aqui, no horizonte do abstrato ou do conceito, que a noção de afastamento tem algum sentido genuíno: afastados das paixões da carne, dos prazeres mundanos, afastados da doxa, das falsas opiniões, da tirania das aparências e devotados religiosamente à razão, que alcançaríamos a platitude do amor.
II. O verdadeiro amor de Platão era Díon. Assumir a verdade dessa proposição não implica, a meu ver, em uma renúncia de Platão à sua concepção de amor, mas apenas que Platão, uma vez julgando-se esclarecido sobre a verdadeira essência do amor, vai em busca, no mundo instável das contingências, de um ente que pudesse ilustrar e completar o que tão belamente havia pensado. E aqui começa a tragédia pessoal de Platão e, de alguma forma, a tragédia de todos nós que alimentamos a nossa alma com os pensamentos elevados da Filosofia: de que a realidade das coisas do mundo não é assim como pensávamos, e nós, no entanto, a desafiamos pateticamente, de forma inequivocamente inglória em nome de um ideal que tão docemente, entre amigos e bons cidadãos gregos, em um domingo ensolarado, depois de uma procissão religiosa, elaboramos para puro deleite de nossa alma.
III. O verdadeiro amor de Platão era Díon, em quem o filósofo deve ter visto a força capaz de produzir uma constituição temperante, corajosa e sábia e, portanto, justa. Por isso, Platão empreendeu várias viagens a Sicília, a Siracusa. Diógenes Laércio sugere que os acontecimentos que iremos narrar aqui se deram na primeira viagem. Todavia, alguns comentários sugerem um Platão mais velho e maduro. Para fins de raciocínio, admitimos que, se Platão não tinha escrito ainda suas obras principais, já tinha, pelo menos, formado o seu embrião. Chegando em Siracusa, onde estava Díon, Platão encontra também, inevitavelmente, o tirano Dionísios, rival de Díon (essa rivalidade, digamos, é conceitual, pois Díon é o cunhado de Dionísios). Não se sabe bem se foi por pura inveja, por demonstração estúpida de força, por maldade mesmo, a verdade é que Dionísios violenta sexualmente Platão. E, praticamente, sob os olhos de Díon. Após o coito, Dionísios teria alegado que exercia o direito do mais forte, definição de justiça que Platão refutaria no livro I de A República, e também refutada aqui, embora com bem menos palavras (por motivos muito justos: não de trata de um amigo ou de um discípulo que deva ou mereça ser esclarecido): “O direito do mais forte só seria válido se Dionísios sobressaísse também em excelência”. Por causa dessa resposta, o tirano quis matá-lo ali mesmo e só não conseguiu o seu intento porque Díon, que tinha alguma influência sobre Dionísios, interveio, embora não tivesse conseguido impedir que Platão fosse vendido como escravo e sofresse, a partir daí, uma série de outras vicissitudes por causa do desafio a Dionísios.
IV. Platão foi vendido como escravo, condenado à morte (e salvo, à última hora, porque alguém teria declarado que era um filósofo ou um louco, não se sabe muito bem) ou, em outra versão, vendido como prisioneiro de guerra e depois resgatado por Aníceris, que conhecia a fama de Platão e que o repassou para os atenienses, mas recusando o dinheiro do resgate que pagara sob alegação de que os atenienses não eram o único povo digno de cuidar de Platão. (Vê-se, por esse comentário, que Platão não podia mais ser simplesmente um ex-discípulo de Sócrates em viagem pelo mundo, mas que já era uma celebridade, o que nos poderia levar a inferir que Platão já teria, a essa altura, escrito as suas principais obras). Não se sabe exatamente o que Díon disse sobre esses acontecimentos, apenas que teria oferecido dinheiro para que Platão pudesse ser resgatado. Quanto a Dionísios, depois que Platão chegou salvo em terras gregas, teria mandado um recado para que o filósofo não falasse mal dele. Porque estivera, essas já são inferências minhas, exercendo ou exercitando, à maneira do próprio Platão, a sua própria definição de Justiça. Também não se sabe o que Platão respondeu a Dionísios ou mesmo se respondeu alguma coisa. Dizem que teria dito que não tinha tempo para pensar em Dionísios. Não acredito que tenha sido assim, até porque Platão pensou em Dionísios quando tinha menos razões para pensar. Mas nós poderíamos conjeturar aqui o que se diria, em nome de Platão, ao tirano e ao violador: “Não há direito que não esteja fundamentado na excelência moral”. E à maneira de Homero ou de Shakespeare poderíamos completar: “O teu erro, se tens alguma consciência, te perseguirá, como uma sombra de intranquilidade permanente, por todos os dias que te restarem”.
V. Final irônico: na busca da perfeição do amor, Platão, ao encontrar conclusivamente e certeiramente o não-amor, a doxa paradigmática de Dionísios, não vai além, em suas conclusões e contusões, do que está no livro I da República, que é, entre os dez livros que compõem a obra, o único genuinamente socrático (do ponto de vista do método). Sócrates, que não aprovou as palavras que o jovem Platão colocou em sua boca, poderia ironizar Platão por querer saber e demonstrar o que só deuses poderiam saber e, desse modo, acusá-lo de presunção. No regresso à pátria grega, se Sócrates ainda estivesse vivo, poderia dizer que Platão, em seu desejo de um amor verdadeiro e de um estado justo, teria ido além do que humanamente se pode dizer e querer.
Sobre a origem da Academia
A Academia já existia quando Platão começou a se interessar pela filosofia. Era então uma academia mesmo, com equipamento de malhação e tudo mais. No meio disso tudo, os filósofos, que também malhavam, acharam um canto para filosofarem. Só mais tarde, depois da primeira viagem de Platão a Sicília, é que um amigo lhe comprou o jardim existente na Academia, nascendo, a partir da utilização específica desse espaço, o conceito de Academia ou Acadêmica de Platão. Aos alunos que culpam Platão por ter inventado a Escola: vejam que não foi bem assim, como eu disse. Além disso, vejam que a Academia, pelos menos em sua origem, com a sua conjugação equilibrada entre a atividade física e a reflexão, com o seu jardim, está muito longe da quadratura das salas de aula das escolas modernas. No entanto, é também preciso que se diga isto: ainda que Platão como filósofo e nome de filósofo tenha nascido nas circunstâncias específicas da Academia, ele morreu negando essas circunstâncias definidoras. A própria academia e seu criador formal acompanharam essas transformações com o abandono crescente do cuidado ao corpo, chegando ao extremo do próprio Platão, já octogenário, morrer por infestação generalizada de piolhos.
O orgulho dos cavalos
A expressão é de Platão e foi apresentada em resposta a uma tentativa do filósofo em montar um cavalo. Descendo logo em seguida, Platão comentou: “Desço logo porque não quero ser contagiado pelo orgulho dos cavalos”. A frase de Platão pode ser interpretada como um pressentimento ou uma intuição sobre o vir a ser da humanidade, ou como uma alfinetada já em seus contemporâneos. Atualmente, no entanto, é bastante inequívoco o contágio desse orgulho, como pode ser muito bem percebido pelo predicado mais usual a uma palestra ou aula de filosofia:
– E daí, como foi a palestra do F. (Fulano, Filósofo)?
– Genial, simplesmente genial.
Robert Musil, no seu livro O Homem Sem Qualidades, também remete a esse falso orgulho ao estabelecer uma relação entre o desejo de seu personagem Ulrich em ser um “homem com qualidades” e uma expressão típica da cavalaria ou da hípica: “cavalo de corrida genial”. É essa genialidade do cavalo de corrida que Platão recusou e parece estar recusando ainda, pois a vê relacionada a um ritual tipificado em quase todas as condutas dos seres humanos, até mesmo numa simples montaria de um equino: refiro-me ao ritual da hipocrisia ou da presunção. Aqui, de acordo com o episódio acima narrado, ao recusar o contágio do orgulho dos cavalos, Platão esteve, em um dos raros momentos de sua vida, diante de si mesmo como homem e não como pessoa. Diógenes, se estivesse ao seu lado com a sua lanterna, teria identificado nessa fala de Platão a proposição de um homem verdadeiramente humano.
Platão e a Sicília
Platão foi várias vezes a Sicília. Pelo menos, três. Da primeira viagem, já falamos aqui. Na terceira, Platão foi com o propósito claro de aconselhamento, pois sua missão era reconciliar uma Sicília já dividida entre Dionísios e Díon. A segunda viagem, da qual falaremos agora, é uma das viagens sobre a qual existe um dos registros mais precisos: uma carta escrita por um amigo pitagórico, em nome de todos os discípulos atenienses de Platão, pedindo a Dionísios que lhes devolva o filósofo são e salvo. Levando a carta, foram dois mensageiros com a recomendação expressa de não voltarem sem Platão. Fica bem claro, pela carta, que Dionísios convidara Platão, com todas as garantias, para enriquecer, com suas análises filosóficas (aqui já temos um Platão sabidamente maduro, tendo escrito as suas principais obras), a sua corte composta de figuras ilustres, entre elas o próprio Aristipos. Platão, sempre me guiando pelo que diz a carta, teria sido tratado como celebridade e teria recebido mais atenção do que todos os demais membros da corte ilustrada de Dionísios (A Aristipos cabia, segundo ele mesmo, a função de deixar-se refutar por Dionísios, servindo de contraponto ou saco de pancadas às seguidas refutações que Dionísios devia receber de Platão). A carta prossegue aludindo a uma desavença entre Dionísios e Platão, que foi, pelo tom grave e preocupante da carta, não certamente uma desavença conceitual, mas resultante de alguma ação de Platão na corte, possivelmente devido a uma interferência política no sentido de que Díon libertasse a ilha das mãos de Dionísios. A atitude de Platão parece ilustrar muito bem que os novos benefícios de Dionísios (ainda que se trate do sucessor de Dionísios, o velho, que violentou sexualmente Platão) não fizerem com que o filósofo esquecesse o antigo prejuízo que sofreu em sua primeira viagem, levando-o, por isso, a desrespeitar o contrato e a condição sob a qual viera a Siracusa, contrato ao qual os seus amigos atenienses apelavam agora para que Dionísios restituísse “esse homem incólume”. (Essa expressão final mostra muito bem a gravidade da situação: de que, perante a vida e a morte, já não é mais importante se somos filósofos ou o que quer que seja: somos homens, mulheres apenas e suficientemente. Isso os médicos e os pitagóricos sabem muito bem. Em uma leitura cômica do episódio, poder-se-ia traduzir essa expressão final de Arquitas, o amigo, enfim, que escreveu a carta, da seguinte forma: “Devolva-nos o bípede sem penas!”.
A psicologia das epigramas amorosas de Platão
Em tempos de notório declínio das cantadas, que viraram os intragáveis xavecos, o Lado Cômico apresenta aqui um breve estudo sobre as cantadas de um dos mais ilustres filósofos de todos os tempos. Já há algum tempo, estamos dizendo aqui que há muito para aprender sobre Platão para aquém do mundo das idéias. Leiam, para começar, a seguinte epigrama amorosa de Platão: “Sou esta maçã, lançada por quem te ama; cede, Xantipa, pois ambas nascemos para fenecer”. Não estou seguro de que Xantipa seja a esposa do já falecido Sócrates. Nem o honorável Google me deu essa certeza. Remotamente, faria algum sentido: seria o amor proibido pela ex do mestre, que devia ter por volta de quarenta anos quando Sócrates morreu. E Platão com seus dezoito aninhos. Todavia, muito provavelmente, é outra mulher. Pensemos agora que assim tenha sido. Sigamos ao x da questão: a analogia com a efêmera maçã e a forma como Platão se situa no contexto da analogia. O que me interessa é a premissa “Ambas nascemos para fenecer”. Vejam que, em uma primeira leitura, que considero mais pobre e mais próxima de um xaveco, “ambas” se referiria evidentemente a Platão e à maça. No entanto, é possível uma segunda leitura: de que “ambas” se referiria a Platão e Xantipa. Nessa leitura, salta aos olhos de que Platão, que corteja uma mulher, se coloca ao lado dela não como homem, mas como mulher. Não como macho e procriador (que era, inclusive um imperativo do Estado ateniense), mas como alguém igual, não tanto, eu preferiria agora dizer, como uma igualdade sexual, mas como uma igualdade ou semelhança em sensibilidade feminina.
Platão e Xantipa
Quero agora dizer, apenas para fins de raciocínio, que a Xantipa, mencionada na epigrama de Platão acima citada, é mesmo a ex do falecido Sócrates, mestre inicial de Platão. De fato, Platão e Xantipa conviveram e dividiram os dias de suas existências por um período ainda considerável de tempo e, assim sendo, poderiam ter namorado ou o que quer que fosse. Do convívio entre Sócrates e Xantipa chegou até nós o retrato de uma mulher rabugenta e, às vezes, violenta; uma mulher, no cômputo geral, tão homem ou mais homem do que o próprio Sócrates. Não há nenhum registro de que Sócrates a tenha tratado mal. Mas parecia aceitar o temperamento altercador da mulher porque a via, em primeiro lugar, como procriadora, a mãe (ou, noutra versão, uma das mães) dos seus filhos; em segundo lugar, porque lhe reservava um lugar em sua vida como um “experimento moral”, como uma circunstância extrema de incivilidade que, uma vez superada, o credenciava a adaptar-se mais facilmente ao convívio com as outras pessoas: “Da mesma forma que, quando estes [os cavaleiros] conseguem domá-los [os corcéis fogosos], podem lidar facilmente com os outros, eu, na convivência com Xantipa, aprendo a adaptar-me a todas as pessoas”. Tanto esse comentário de Sócrates como a epigrama de Platão a Xantipa são pensamentos ou argumentos por analogia. O de Sócrates aliena a mulher de si mesma, da sua condição humana, equiparando-a simbolicamente a um animal indomável cuja razão de ser estaria em propiciar ao adestrador-filósofo um parâmetro para testar a sua própria têmpera moral. A analogia de Platão, pelo menos em sua leitura profunda (anteriormente por nós defendida), é, antes de mais nada, uma renúncia a essas falsas analogias como as de Sócrates. Platão não se aliena de Xantipa. Não se vê como seu adestrador. Nem mesmo se vê como seu homem. Mas se vê como mulher em sensibilidade, afetividade e emoção. Platão, que já renunciara ao contágio do orgulho dos cavalos, parece que aqui também está renunciando ao contágio linguístico do orgulho transmitido pelas metáforas de cavalo (ou qualquer que seja o animal) que tão facilmente e tão abundantemente cruzam os ares nos discursos e xavecos amorosos, e não só daqui para lá, mas também de lá para cá. Claro, essa escolha entre Sócrates e Platão não coube a Xantipa, embora, dentro da conjetura que aqui lançamos para fins de raciocínio, a comparação entre os modos de vida amorosos poderia ter cabido a ela. E, então, se ela se deixasse persuadir por Platão, se ela cedesse, a história poderia ter sido outra.
A amante de Platão
para ser lido após as 22:00 horas
Platão teve vários amantes, apesar de suas características físicas não o favorecerem muito. Timon, a propósito, o comparou com um peixe achatado, e Ânfis disse que tinha as sobrancelhas erguidas como um caracol. Intrigas da oposição? Talvez. Mas Platão, dizem, tinha a fala doce e a musicalidade das cigarras. Era, por isso, um bom orador, como prova a audiência que tinha na Academia, e bom poeta, como atestam os bilhetinhos (epigramas) que escreveu para seus amantes (entenda-se o plural: mandou em épocas diferentes; e considere que Platão viveu oitenta anos e que seus poucos amantes não são nada perto da totalização que uma mulher ou um homem razoavelmente dotados fisicamente podem alcançar em uma sociedade hedonista vulgar como a nossa). Os principais amantes de Platão foram Díon, Aster, Alexis e Fedro. Mas Platão teve também uma amante, uma mulher de arrepiar e chamuscar os pelos de qualquer bípede implume. Em relação a Platão, especificamente, parece que aqui encontramos a causa inequívoca das suas sobrancelhas terem ficado erguidas como um caracol. Ouçamos Platão, antes que alguém pense que estou fantasiando: “Possuo Arqueanassa, cortesã de Colofon; até em suas rugas pousa o amor picante. Ah! Infelizes que colhestes a flor de sua primeira viagem, por que chamas passastes!” (Platão apud Diógenes Laércio)
Amor platônico redefinido
I. A terceira viagem de Platão a Sicília teria sido, segundo Diógenes Laércio, a única com motivação realmente política, pois sua missão seria reconciliar uma Sicília dividida entre Dionísios e Díon, portanto, em processo de guerra civil. No entanto, essa cisão fora alimentada por Platão em sua segunda viagem, tal como já comentamos acima, o que nos leva a crer que a motivação dessa viagem era ainda a mesma: o amplo amor de Platão pelo seu filósofo-candidato-a-rei, e a Sicília de Dionísios que se danasse. Essa leitura que faço da motivação dessa terceira viagem está também amparada na epigrama que, mais tarde, com a morte de Díon, coube a Platão escrever e que teria sido gravada sobre a tumba de Díon: “As Parcas decretaram lágrimas a Hécuba e às mulheres de Ílion desde o seu nascimento. A ti, entretanto, Díon, que conquistaste a vitória em belas iniciativas, os deuses reservaram amplas esperanças. Jazes na pátria imensa, honrado por teus concidadãos. Díon, tu que deixaste meu coração louco de amor”.
II. É verdade que o conceito de amor platônico do senso comum é uma inversão ou uma perversão do conceito de amor que Platão apresenta no Banquete. Mas também é verdade que o conceito de amor de Platão, pelo menos daquele Platão da vida verdadeira e não imaginária, está muito mais honestamente expresso na epigrama honrosa e amorosa que o filósofo escreveu para ser inscrita sobre o túmulo de Díon. Um Platão cheio das boas virtudes da vida cidadã, mas também um coração de Platão louco de amor. Daqui, dessa epigrama, eu gostaria de derivar uma nova definição de amor platônico: amor imenso, incapaz de ser abalado pelas dificuldades da vida, pela distância, pela idade, pelo tempo. Amor de envergadura ou amplitude moral. (Desejaria acrescentar, quase que a pedido de Platão: amor impossível de nascer entre adolescentes típicos ou impossível de partir de um adolescente típico.)