Antonio Caño, correspondente do jornal espanhol El País em Washington, resgatando um conceito do cineasta e escritor italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975), propôs recentemente Barack Obama como poesia e John McCain como prosa – realista. Pouco depois, John Ludenberg do portal norte-americano Huffington Post ecoou, sem sabê-lo, Caño, ao analisar o discurso de aceitação de Obama na Convenção Democrata como “a poesia de um discurso político”. E explica: embora a poesia não esteja ela mesma de corpo presente na maioria dos trechos, emerge no ritmo. Ludenberg ressalva que não fala em versos métricos mas nas cadências bíblicas, como em Martin Luther King (1929-1968), ou nos versos longos de Walt Whitman (1929-1892). O norte-americano Whitman foi o inventor do verso livre e o primeiro poeta a tematizar abertamente seu homossexualismo em Leaves of Grass, de 1855, livro de 95 páginas e 12 poemas, editado pelo próprio autor. Ludenberg afirma que a repetição de palavras, para abrir as frases, aproxima o discurso de Obama da poesia.
War-shington
Tanto os discursos de Obama não são poesia quanto os de McCain “prosa” ou Obama não representa a poesia e McCain determinada prosa – a prosa de um Oswald de Andrade (1890-1954). As comparações revelam a ignorância do mundo contemporâneo e da mídia em relação à poesia. Ser chamado de poeta é ser chamado de sonhador, de delirante – aquele que propõe idéias inexeqüíveis, que está fora da realidade. Embora em escala bastante menor, há preconceito no que se refere à prosa. Prosa significa muita lábia – aquele que se configura como estelionatário ou que não diz nada. No entanto, a prosa é mais adequada para caracterizar os dois candidatos ou quaisquer políticos.
Pasolini, autor do genial Mamma Roma (1963), “inventou”, num ensaio de 1975, que há, no futebol, uma linguagem prosaica e outra poética. Afirmava que o drible e o individualismo eram essencialmente poéticos, enquanto a retranca (jogar na defesa) e a triangulação prosaicos. O futebol-prosa baseava-se, para ele, na sintaxe, no jogo coletivo e organizado, sintetizado num sistema, enquanto o futebol-poesia, que identificava com a seleção brasileira de 1970, de Pelé e Tostão, seria o inusitado, o estranho e o imprevisto. A definição é razoavelmente correta (quanto ao imprevisto), tanto para a poesia quanto para o futebol. Parcialmente certa porque não há inspiração sem trabalho e principalmente sem ordem. E, muitas vezes, como em 1970, a vitória é da poesia. Há algumas funções da linguagem e a função poética é uma delas, bem como a função referencial, utilizada pela mídia, que visa a transmitir informações, valorizando-se o objeto noticiado e não – como na poesia ou na prosa de arte – a própria linguagem: seus sons, seus ritmos, seus significados inauditos. O futebol-prosa seria eficaz e o futebol-poesia seria individualista e “inspirado”, segundo Pasolini. Então, para Caño, Obama seria um “inspirado”, ao propor mudanças, e McCain representaria um sistema eficaz, sem “magia”, ao repetir o programa republicano. Os dois representam, creio, única e exclusivamente a prosa, porque objetivam estar em janeiro de 2009 em “War-shington”. Transcrevo trecho do poema “A Bomba” (1961), de Carlos Drummond de Andrade, para que o leitor tenha idéia clara do que é ótima poesia:
A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe
A bomba
arrota impostura e prosopopéia política
A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living
A bomba
é podre
Prosopopéia – como todos sabem – quer dizer discurso empolado ou veemente e é uma figura de linguagem, por meio da qual, o locutor confere sentimentos humanos a seres inanimados, a animais ou a mortos, por exemplo. Drummond usou, no poema, a palavra no sentido de empolação e também empulhação. Exemplos: George Walker Bush, McCain e Sarah Palin ao defender as guerras. Usou-a igualmente no sentido de prosopopéia: os políticos bélicos “falam” de mortos. Palin acusou Obama de não utilizar a palavra “vitória” quando se referia à Guerra contra o Iraque. É o populismo guerreiro e irracional dos republicanos: Obama votou, no Congresso americano, em 2003, contra a invasão do Iraque. Neste caso, caracterizou-se como prosa ensaística, analítica, reflexiva. As propostas de Obama são prosa racional: reduzir 95% dos impostos dos trabalhadores, reduzir os impostos para os pequenos empresários e aumentá-los para os grandes, investir em educação, em energia renovável, em pesquisa contra o aquecimento global, restabelecer direitos civis rasurados por Bush e restaurar o diálogo com os outros países etc.
Erosão de direitos
Algumas vezes Obama é, no entanto, prosa vulgar: quando admite intervenções unilaterais em países que abriguem terroristas, como escreveu em seu livro “A Audácia da esperança” (Larousse, 2006). McCain é – agora – imitação de Obama ao pregar “mudanças”, para ganhar as eleições, e deixar para Sarah Palin a prosa hitleriana: contra o aborto quando a gestação provém de estupro (a lei brasileira, por exemplo, o permite), contra qualquer iniciativa a favor do desaquecimento global, que não foi produto do homem, segundo ela, mas da vontade de Deus, a favor da matança dos ursos polares, a favor de vencer – a qualquer preço – as guerras no Iraque e no Afeganistão etc. McCain é prosa estelionatária quando promete reduzir ainda mais os impostos dos ricos e “preparar o trabalhador americano para competir na economia global”. McCain é prosa hollywoodiana quando repete, sobre os terroristas, “Wanted, dead or alive”. Ele mesmo, aliás, sofre de câncer de pele e pode se transformar em “prosopopéia” num discurso da presidente Palin. É provável que McCain/Palin vençam as eleições norte-americanas. O Partido Republicano, de 1945 para cá, esteve 36 anos no poder contra 23 anos dos Democratas e, entre os Democratas, apenas Jimmy Carter (1974-1977) foi, de verdade, um social-democrata. Lyndon Johnson (1963-1969) foi um Democrata à direita. John Kennedy (1961-1963) é, até hoje, mais um mito do que um progressista. Harry Truman (1945-1963) era um democrata mais à direita do que Johnson.
Não há políticos comparáveis à poesia, embora os sonhos de Obama, como definiu o excelente Caño, sejam mais do que necessários. Ao cabo, os políticos passam, apesar de seu danos permanecerem por décadas, e a poesia fica. Quem se lembra do presidente português ao tempo de Fernando Pessoa? Há que se criticar, veementemente, a queda de nível da civilização, que provinha da Europa, e a erosão dos direitos civis e trabalhistas que ocorreu, em países do “mundo livre”, a partir dos anos 1990. Há que se denunciar os Estados-máfia, como a Rússia e seu apêndice Ossétia do Sul e outros, que surgiram depois da extinção, em 1991, da deplorável União Soviética, e denunciar o trabalho escravo na China, de Hu Jintao. Os Estados Unidos teriam um papel civilizador decisivo a representar nesse início de século, mas lá, sobremaneira, os políticos merecem — espero que Barack Obama seja exceção como Carter o foi – o desprezo que Platão nutria por eles.