Xerxes, segundo Heródoto, chorou ao mirar seu inumerável exército porque considerou que de todos aqueles homens nenhum estaria vivo cem anos depois: assim, conclui Arthur Schopenhauer — de quem empresto a citação —, quem não choraria, diante da visão de um grosso catálogo de feira de livro (ou de coisa similar), ao pensar que de todos esses livros nenhum estará vivo em menos de dez anos.
Acho que, além da idéia espirituosa do filósofo alemão, é o caso de recuperar para essa discussão acerca das relações entre cânone e premiações, cânone e mercado, o comentário poundiano a propósito dos diluidores e beletristas. Para o autor dos Cantos, eles não existem, o ambiente (literário) é que lhes confere uma existência – ainda que como fantasmagoria. Parece-me que o mercado livreiro-editorial, por meio inclusive da instituição de certames literários, almeja canonizar e/ou laurear menos esta ou aquela celebridade literária em particular do que um modo de escrita conectado com o repertório de um hipotético e mediano público leitor. O mercado canoniza uma forma média de literatura que pode ser representada por um estilo a meio caminho da fórmula publicitária e do literário em tom pastel. Esta literatura light, que qualquer indivíduo pode “acessar”, é tão canônica quanto à mobilidade social o possa permitir. O escritor canonizado será aquele cujo perfil se revelar mais apto a conquistar a melhor fatia do bolo durante o maior tempo possível. De resto, o mercado dinamizado amplia tanto as chances de sobrevivência, quanto de aniquilamento do nosso grande pequeno literato. Por fim, ao manter o debate “literário” em nível de atacado, o mercado, ele mesmo, é que acaba por se canonizar.
Mas, relacionada de algum modo aos dilemas envolvidos no esquema da consagração, é possível observar uma constante que acomete a maior parte dos escritores e poetas: seus percursos textuais denunciam com o passar dos anos uma decepcionante tendência à acomodação — e que devido a tal situação mais se mostram merecedores, ou pior, apetitosos de prêmios e comendas. Assim, é justamente neste momento que entram em cena os concursos literários. O cume e o declínio dos grandes autores começam a justificar a existência desses prêmios. De resto, o hábito de participar (perdendo ou ganhando) de concursos e festivais competitivos é tão corruptor quanto o estreitamento dos laços entre autor e leitor preconizado pelos mistificadores da cena em questão. Mas, alguém objetará dizendo que os concursos também premiam e revelam inéditos; sim, textos inéditos, mas não autores. Em defesa dos concursos literários (não fora fundamental anotar uma árdua perversidade a animá-los), poder-se-ia dizer que preenchem parcialmente o vazio deixado pelas políticas públicas relativas ao setor. Digamos então que os concursos são um bem desnecessário. Mas que também são reféns de inúmeros interesses e imposturas. A Câmara Brasileira do Livro, por exemplo, é um órgão patronal, atende às necessidades das editoras e é a mantenedora do Prêmio Jabuti. Por esta razão os concursos servem mais aos próprios promotores, sejam privados, sejam públicos, do que aos autores que se submetem às suas regras. Além disso, os concursos pretendem se antecipar ao “julgamento divino”, isto é, à palavra final que deveria ser reservada ao tempo.
Jabuti e Telecom: anedotas vulgares
Naturalmente, não se trata de cruzar os braços e esperar pelo delicado e operoso trabalho das térmitas. Muito menos de reforçar, por exemplo, a chapa convencional do interlocutor que se omite frente à exigência de tornar público, ou de pôr em perspectiva, uma ponderação de valor a respeito do que quer que seja, (des)dizendo: só o tempo dirá.
Talvez também seja desnecessário argumentar – em todo caso, vá lá – que a menção ao “tempo” não pretende reforçar um sentido divinatório, oracular, utópico, que seguidas vezes creditamos a esse “ser de engano” de que dispomos com a presunção de ordenar o funcionamento das coisas. Assim, dentro de um sentido lato em torno à idéia de um percurso de tempo necessário para que aquilo que importa se descole da indiferenciação circunstante, sancionada, ou até mesmo, exigida pelo processo, identifico a necessidade do debate, do confronto, da produção e da recepção inteligentes acerca dessas realizações poéticas em jogo no emaranhado do sistema literário, tal como o conhecemos.
Muito bem, “aquilo que importa”, assim como o “tempo” enfiado numa espécie de segunda identidade seletivo-crítica, são extensões, presentificações simbólicas dos pensamentos e das vontades de todos os envolvidos no quadro. Isto é, uma sucessão de interlocuções controversas, simultâneas ou não, formam a imagem e o ideário, provisórios, a partir dos quais revogamos uns e inauguramos outros parâmetros.
Isso que é destilado ao tempo – metáfora de vozes que se enfrentam no âmago da tradição, cujo acabar-começar vem dar num aqui -, não é nem a excrescência, nem a dádiva de um “Senhor tão bonito”, como diz a canção do compositor baiano. Essa “última palavra”, que linhas acima fiz questão de conceder ao tempo, é, enfim, uma conquista. Resultado de um esforço multifário e sem margens. Dentro desta perspectiva, concursos são anedotas vulgares que a um só tempo tematizam e documentam a obviedade e a baixeza da visão crítica de determinado trecho histórico-cultural. Com efeito, as recompensas, com estranhas ressalvas, vão sempre para os beletristas medíocres bem relacionados ou para os velhos criadores cujo conjunto da obra há tempo vem nos dizendo que já não é necessário provar mais coisa nenhuma a seu respeito. Entretanto, a penúria continua rondando suas vidas. E, em fim de contas, os concursos estão aí, mesmo. Então, locupletem-se!
No entanto, por onde passam, premiações literárias deixam atrás de si rastros de humilhações e constrangimentos. Uma metáfora nova em folha a propósito do assunto em apreço que compartilho com o leitor: recentemente, aqui em Porto Alegre, um grande shopping promoveu um concurso, ou melhor, uma disputa cujo vencedor logrou uma casa que era oferecida como prêmio. Em espetáculo público para a audiência da torpe classe média, dez ou doze selecionados (pobres diabos!) enfrentaram uma prova que consistia no seguinte: todos foram confinados num cubículo com a missão de suportar em pé, sem comer, sem beber, ser ir ao banheiro e sem se apoiar nas paredes da jaula, o tempo que fosse necessário até que restasse apenas um sobrevivente. Casa própria, livro que sai do prelo já premiado, etc. O melhor dos dois mundos em oferta aos pactários.
Poetas anódinos
Voltemos aos certames do sistema literário. No que diz respeito aos candidatos, esses vexames se referem, por um lado, à aceitação da cláusula universal que os obriga a submeter seus originais ao crivo de um corpo de jurados que, nas raras ocasiões em que seus nomes são revelados, mostram-se muitas vezes incompetentes para a tarefa. De outra parte, quando da avaliação das escolhas da comissão julgadora depois de tudo “resolvido”, e devidamente publicadas, verificamos que os critérios estabelecidos para os julgam entos ou são controversos, ou indecorosamente “sem noção”. Tomando ainda o Prêmio Jabuti deste ano como matéria para discussão — anoto de passagem a categoria prosa, na qual o caça-prêmios Bernardo Carvalho (prosador, ficcionista) mais uma vez dá o ar da graça —, deparamos na lista dos finalistas da categoria poesia (onde os jurados devem saber avaliar características-tipo com “alto grau de poeticidade”, como síntese, ritmo, sonoridade e outros recursos intrínsecos à criação literária), os nomes de, por exemplo, Ivan Junqueira, Mariana Ianelli, e Chacal, entre outros. Se o leitor me permitir, antes de prosseguir, por uma questão de lealdade e ao mesmo tempo sem nunca desprezar o item da reticência, gostaria de deixar a pessoa do Chacal fora dessa vala comum. Portanto, mais do que o reconhecimento e a afirmação da pertinência da diversidade, o que essa parcela do elenco de finalistas do prêmio mencionado denuncia, é na verdade o gosto da capacidade crítica contemporânea por espojar-se nos limites de uma tradição por assim dizer de costumier, e cada vez mais anódina. Vale-tudo livreiro-editorial e diversidade textual em relação promíscua, cinzenta. Em artigo há pouco publicado no periódico El País abordando o mesmo assunto, porém em contexto distinto, o escritor José María Guelbenzu sustenta que não há nada mais incerto que o juízo artístico: “el gusto y el criterio son producto de una intensa y constante formación y confrontación personal, no de un status predeterminado por el cargo”. Por meio de concursos e eventos similares (mesmo bolsas de pesquisa, ou bolsas que financiam livros em progresso de jovens escritores, etc, não conseguem escapar à lógica), o sistema literário e os seus concomitantes meios de consagração promovem a “costumização” da linguagem poética como a escritura competente dos estetas do “deixa – disso”; dizem à viva voz: “o meu negócio é só poesia!”.
Num rápido despacho o sistema literário (clã de antas e chato-boys) confecciona a credencial da venalidade que outorga a alguns o direito de desempenharem a função ou o cargo de jurado. Mas ao aceitar o cargo, não está garantido que em suas dobras venha embrulhada, à maneira de um bônus — a não ser talvez a notoriedade —, a capacidade de juízo. No entanto, se alguns a possuem, através da generosa repetição do ofício ofídico, e mais o trato e o traquejo com tanto texto imperito, o que acontece é que eles acabam por perdê-la.
Talvez em função dos atributos associados à massa de escritos sobre os quais exercem seus cuidados, a tarefa desses jurados inacessíveis deve ser mesmo de extrema insalubridade. Portanto, pelo resultado do que invariavelmente nos apresentam, a conclusão a que chegamos é a de que só podem ter lido, esses eruditos de fina estampa, e se enfronhado de maneira tal com essas obras que acabaram ficando estúpidos. O mais absurdo é que o fruto do julgamento vem à luz como uma espécie de conhecimento ordenado por pessoas de uma cultura que ultrapassa os limites do provincianamente tolerável e concebido de maneira que as próximas gerações e os interessados de agora, não “percam tempo” no uso de sua liberdade de pensamento questionando as razões que fizeram as escolhas desses polígrafos recair sobre estas obras e não aquelas; estes artistas em detrimento de outros.
No entanto, na aquisição de algumas dessas peças laureadas, além de festejadas pelos suplementos de literatura, e visando a uma fruição mais ampla de suas “virtudes”, seria apropriado também se pudéssemos comprar (muito embora o preço não fora compensador) junto com elas alguns aplicativos, como por exemplo: a anomia, o ecletismo da não-invenção e o escopo da mediocridade, entre outros, de modo que assim fizessem funcionar e justificar em nossa sensibilidade já bastante alquebrada suas condecorações e seus galardões argênteos.
Anexos
Ao shopping center
José Paulo Paes, 1926-1998
Pelos teus círculos
vagamos sem rumo
nós almas penadas
do mundo do consumo.
De elevador ao céu
pela escada ao inferno:
os extremos se tocam
no castigo eterno.
Cada loja é um novo
prego em nossa cruz.
Por mais que compremos
estamos sempre nus.
nós que por teus círculos
vagamos sem perdão
à espera (até quando?)
da Grande Liquidação.
(de Prosas seguidas de odes mínimas, 1992)
Escena II
Lope de Veja, 1562-1635
Barrildo Después que vemos tanto libro impreso
no hay nadie que de sabio no presuma.
(de Fuente Ovejuna, 1612-1614)
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REPERCUSSÃO
Oi, Ronald!
Muito bom o teu texto na Sibila. Adorei este trecho:
sistema literário e os seus concomitantes meios de consagração promovem a “costumização” da linguagem poética como a escritura competente dos estetas do “deixa – disso”
Esses prêmios e concursos são feitos para, permita-me a tautologia, premiar o “já-dito”. Por isso, os Hatoums estão sempre por aí, enchendo o bolso de dinheiro. Alguém diria que a gente está com inveja. De fato, esses “dinheiros” cairiam muito bem em minha conta bancária.A questão maior é criar um público-leitor, que possa, no futuro, fazer com que os escritores e poetas sejam capazes de sobreviver de suas habilidades. Mas não creio que nossos “escribas” estejam interessados nessa tarefa pedagógica, que dá tanto trabalho e tão pouco “prestígio”. Paulo
Belíssimo texto sobre os prêmios. Leda Tenório da Motta
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Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, editor e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Despacha no blog www.poesia-pau.blogspot.com