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Flora Süssekind avalia o decaído campo literário

1. Morte, necrológio e transcendência

A morte recente de Wilson Martins suscitou, previsivelmente, uma pequena série de necrológios, mas também a publicação de um texto dissonante por Flora Süssekind (“A crítica como papel de bala”, O Globo, 24/04/2010). Dissonante em dois sentidos: por discordar da avaliação predominante em tais necrológios sobre a relevância da obra de Martins, e por criticar diretamente três deles.[1] O texto de Süssekind revela-se fértil, porém, não por sua discordância em relação a Wilson Martins, sobre a qual, portanto, não me deterei aqui, mas pelas várias considerações gerais que desenvolve.

Pois o texto de Flora Süssekind transcende o tema imediato que o provocou para realizar um diagnóstico claro de algumas das questões mais importantes acerca da situação atual da crítica e da literatura. Pode-se, então, destacar com pertinência as partes relativas a Martins e seus necrologistas, e se concentrar nesse diagnóstico (o fato dessas mesmas questões dominarem as páginas de Sibila há anos não será, portanto, coincidência, mas o que a biologia chama de convergência: um mesmo meio constantemente leva a desenvolvimentos convergentes entre grupos independentes[2]).

 

[Evidencia-se] o apequenamento e a perda de conteúdo significativo da discussão crítica, assim como da dimensão social da literatura no país nas últimas décadas. Ao lado dessa retração, [há] um conservadorismo que é francamente hegemônico.


[Um] campo cuja retração e desimportância amesquinham e tornam ainda mais cruenta a disputa por posições, pelos mínimos sinais de prestígio e por quaisquer possibilidades de autorreferendo.


[…] Qual o interesse de um comentário crítico quando se pode obter muito mais visibilidade para escritores e lançamentos por meio de entrevistas, notas em colunas sociais e participações em eventos de todo tipo?
Fabricam-se nomes e títulos vendáveis, vende-se, sobretudo o nome das editoras, e sua capacidade de descobrir “novos talentos” semestralmente, ao sabor das feiras literárias.


[Uma] reprodução esvaziada de sentido, e desligada de vínculos efetivos com a experiência histórica, de comportamentos, práticas de escrita e certo culto à autodivulgação e à vida literária que parecem se expandir [em prêmios, concursos, revistas, blogs, antologias, bolsas de criação] […] sem provocar qualquer desconforto, sem fazer pensar.


[…] O que não apenas no Brasil parece encontrar resposta compensatória à sua desnecessidade, e a uma fraca ressonância, em premiações, incentivos, edições de luxo […] [e] se mostra, por isso mesmo, incapaz de se repensar e de estabelecer ligações mais consequentes com o próprio tempo.

A íntegra do texto, com tais questões e tal diagnóstico mais alongados, funciona então como uma metonímia de todo um quadro insatisfatório do campo crítico-literário. Antigamente, os reis costumavam executar os trazedores de más notícias, como se aqueles fossem os responsáveis por estas, ou como se as más notícias desaparecem ao serem ignoradas. Substituindo, porém, o arbítrio autoilusório dos reis pela lucidez moderna, aqueles que não deixam as más notícias serem nem ocultadas nem esquecidas, incluindo, em tese, os críticos, podem e devem ser responsabilizados pela possibilidade de intervenção no curso das coisas, o que, além de mais justo do que matar o mensageiro, é não apenas mais lúcido como mais prático. Neste caso em especial, haveria naturalmente muito a acrescentar. Para citar somente dois exemplos, todo o contexto político-ideológico da época, ao lado de certo apequenamento militante de incontáveis poetas abstratizantes-solipsistas. Também haveria o que questionar no pequeno exemplário poético contemporâneo listado por Süssekind ao final de seu texto. (Ver http://www.sibila.com.br/index.php/critica/886-relendo-carlito-azevedo-ou-um-caso-exemplar-da-poesia-brasileira-contemporanea). Mas nada disso anula seu caráter de preciso diagnóstico sintético.

2. Os mortos e os “vivos”

Se o texto de Flora Süssekind mostra-se, assim, o mais interessante dos ensejados pela morte de Wilson Martins, justamente por transcender abrangente e criticamente a efeméride, o texto mais lamentável traz a assinatura de Affonso Romano de Sant´Anna. Mais lamentável, nem por isso menos elucidativo. Não apenas de uma das questões apontadas por Süssekind, como também da própria abordagem crítica de Wilson Martins.

Affonso Romano não está, na verdade, interessado em discutir a obra de Martins, sequer as opiniões recentes sobre essa obra, ainda menos a situação da literatura e da crítica, mas tão somente em “salvar” Wilson Martins das garras assassinas de Flora Süssekind. Rimou, mas não teve graça: “garras assassinas” é um clichê terrível. Acontece que Romano, no afã de defender o crítico recém-falecido, se agarra a uma frase de (bom) efeito de Süssekind e, com ela descontextualizada e transformada em lastro de peso muito aumentado, mergulha diretamente no ridículo.

Quando Wilson Martins morreu, várias pessoas escreveram lembrando sua obra. E algumas lamentaram sua morte. Mas Flora Süssekind  lamenta que Wilson Martins tivesse vivido. Por isto, […]  afirma  expressamente que talvez seja necessário “matar uma vez mais Wilson Martins“. Ou seja, além da morte física, ela se esforça por extirpar os textos de Wilson da literatura brasileira. […] Aos ingênuos poderia parecer uma  simples metáfora  essa de “matar uma vez mais Wilson Martins”, pois o objetivo dela   seria uma reflexão para se rever a crítica literária no país.  Não é bem assim.  “Matar”  é tirar a vida,  eliminar, apagar, limpar os vestígios.  E a ensaísta  está tão incomodada com o nome ou o fantasma de Wilson Martins rondando seu imaginário que investiu contra aqueles que escreveram sobre ele quando ele faleceu. Não basta ter ocultado, censurado o nome do crítico nos cursos de literatura quando ele era vivo, agora é necessário também censurar (quem sabe “matar”?)  os que escrevem sobre ele. […] Isto consubstancia uma “pulsão de morte” sub specie crítica que no plano político e social aproxima-se de ideologias e  regimes  que incitam a matar, extirpar nomes e imagens de adversários como forma de apropriar-se da história (“Critica do necrológio e necrológio da critica”, http://www.affonsoromano.com.br/blog [grifos do autor]).

 

Flora Süssekind, a pequena Stálin da crítica contemporânea… Seria engraçado se não fosse, como dito, ridículo. Mais ainda: interessadamente ridículo. Pois se ela não tem nenhuma necessidade de assassinar cadáveres, Affonso Romano tem todo o interesse em manter o mais vivo possível esse cadáver em particular. Tornando-se excelente, então, como caso exemplar do apequenamento interessado da crítica apontado por Süssekind.

Romano foi um dos poetas de predileção de Wilson Martins, e alçado por este aos “píncaros da glória” (ver a seguir). Portanto, não pode atacá-la de modo indignado no afã de defender o crítico recém-falecido sem, por tabela, defender o elogio à própria obra. Dito de outro modo: como o elogio à própria obra viria necessariamente de contrabando em tal situação, se o seu interesse fosse de fato defender o crítico por seus méritos próprios, tal ruído o faria desistir da empreitada. Se não desiste, é porque não se importa com tal ruído. Se não se importa, é porque não está na verdade defendendo Wilson Martins, mas resguardando o elogio à própria obra. Flora Süssekind poderia, aqui, apor sucintamente: c. q. d.

3. A (ir)relevância de Wilson Martins

Faço, para concluir, uma rápida consideração pessoal sobre Wilson Martins, para mim um crítico irrelevante. Dizê-lo não é agradável, mas é, no entanto, defensável. E defensável ao se atentar para o significado de relevante: o que tem relevo, altura, logo, profundidade. E Wilson Martins não possui tais características por ser um crítico muito ruim. Ou tão ruim quanto incapaz de dar conta das obras que critica. Digo “que critica”, e não “que analisa”, porque era virtualmente incapaz de análise. Há quem lhe aponte como defeito (ou qualidade) o ter sido solitário (ou independente) e idiossincrático (ou personalista), mas sê-lo nada tem de condenável (ou elogiável) em si. Muitas mentes geniais foram solitárias e idiossincráticas, enquanto ainda mais seres sociais são perfeitamente banais. O que há de condenável na crítica de Wilson Martins é, ao contrário, sua grande presença somada à pequena relevância, no sentido denotativo. Se dizê-lo não é agradável, é porque se trata de uma longa vida dedicada à literatura (cujos méritos paracríticos, digamos, com destaque para a história literária, são bem descritos por Pécora). Mas, infelizmente, a intenção e o esforço são apenas condições necessárias às realizações realmente relevantes, e não condições suficientes.

Não irei, portanto, estender-me sobre um crítico que, a despeito do renome e da longevidade, considero sem real relevância, apesar mesmo da altura que seus muitos tomos empilhados alcançam. Sou, porém, obrigado a embasar minimamente minhas afirmações. Limitar-me-ei, outrossim, à sua crítica de poesia, por ser a sua face crítica mais claramente inepta.

Na página de Wilson Martins da vastíssima “textoteca” virtual que é o site Jornal de poesia (http://www.revista.agulha.nom.br/wilsonmartins.html), há nada menos de 169 de seus textos de crítica literária, boa parte dedicada à poesia. Uma amostra, portanto, razoavelmente representativa (mesmo considerando a enorme extensão de sua obra), pois além de sua quantidade, há o fato de o site contar habitualmente com a iniciativa dos próprios autores para municiar suas páginas. A primeira variável que se destaca é, então, a própria seleção dos poetas contemporâneos abordados: uma extensa lista que soma, bem, a irrelevância aos poetastros. É de fato possível considerar um crítico que releva tal paideuma na poesia brasileira contemporânea? E não para ser alvo de considerações negativas, mas, como regra, positivas. E positivas não porque o crítico, genial em sua idiossincrasia eletiva, é capaz de enxergar em tais poetas qualidades tão grandiosas quanto insuspeitadas, mas porque incapaz de perceber a obviedade de sua irrelevância poética. O que, enfim, leva-o a afirmações como esta: “[Affonso Romano de Sant´Anna] é o grande poeta brasileiro que obscuramente esperávamos para a sucessão de Carlos Drummond de Andrade”. Não bastasse o puro descalabro de tal afirmação, a justificativa de Wilson Martins é espantosa:

[Tal] juízo que foi mal recebido pelos que encaravam Carlos Drummond como sagrado e insuperável […]. De minha parte, assinalei a “coincidência” espiritual dos poemas affonsinos, acentuando que a sua sensibilidade brasileira se manifestava na “consciência de Pátria”, realidade não apenas continental, mas também ancestral e ucrônica (“Poeta maior”, http://www.revista.agulha.nom.br/wilsonmartins043.html).

Naturalmente, tal juízo não foi mal recebido porque se julga Drummond “sagrado e insuperável”, mas sim porque se considera que um poetastro como Affonso Romano não pode, com um mínimo de lucidez, ser comparado a Drummond. Esta passagem, ao menos, serve para exemplificar bastante bem do que é feita a crítica poética de Wilson Martins: abundam “coincidências espirituais”, “sensibilidades brasileiras”, “consciências de Pátria”, mas naturalmente escasseia, nesse largo e raso mar de abstrações grandiloquentes, a terra firme da análise poética estrito senso.

 

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Notas


[1] De autoria de Alcir Pécora, Miguel Sanches Neto e Sérgio Rodrigues.

[2] Não é, portanto, difícil localizar alguns excelentes exemplos dessa convergência:
http://www.sibila.com.br/index.php/critica/142-capitulos-em-defesa-da-impertinencia-da-poesia
http://www.sibila.com.br/index.php/critica/116-premios-literarios
http://www.sibila.com.br/index.php/critica/107-romancistas-contemporaneos-mascam-cliches
http://www.sibila.com.br/index.php/critica/1062-o-silencio-dos-intelectuais;
http://www.sibila.com.br/index.php/critica/709-a-mediocre-cultura-qcordialq.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).