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A perfeição corrosiva de Saki

Só em raras oportunidades encontramos uma obra arrebatadora. Passado algum tempo, talvez anos, quando a revisitamos e o mesmo encantamento se repete, podemos ter certeza de que o primeiro júbilo não surgiu de uma falsa impressão, mas foi nossa resposta aos escritos de um gênio. É o que sinto sempre que volto a Hector Hugh Munro, mais conhecido pelo pseudônimo de Saki.

De acordo com minhas informações, que podem estar incompletas, Saki nunca foi traduzido no Brasil. Mas, como afirmei em meu blog, em junho de 2009 a Editora Hedra preencheu essa deplorável lacuna: lançou uma pequena, preciosa coletânea de contos desse inglês nascido na Birmânia. Claro que o ideal seria repetirmos o que ocorreu na Argentina: não satisfeita com as cinco coletâneas da Editorial Claridad, a Alpha Decay publicou, em 2005, os Cuentos completos de Saki; e, em 2009, o Alicia en Westminster, um conjunto de catorze textos que parafraseiam o clássico Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Mas esse passo civilizador, ao que parece, ainda demorará muito.

Voltando ao volume Um gato indiscreto e outros contos, da Hedra, ele serve como ótima introdução à obra desse escritor maléfico, sarcástico, impiedoso e bem-humorado, que desacredita, a cada página, da espécie humana, mas está sempre disposto a oferecer aos homens uma segunda chance, ainda que eles, reiteradamente, a menosprezem. Talvez venha daí – de encontrarmos nele um espelho zombeteiro das nossas miseráveis existências – a verdadeira compulsão que nos assalta quando começamos a ler Saki: um conto só é pouco; dois não bastam; no terceiro, rindo a valer, imaginamos o que ele ainda nos reserva; quando terminamos o quarto, à beira de um ataque apoplético, alguns talvez ainda duvidem de que as coisas possam piorar; e ao final do quinto, pobres de nós, somos seus escravos – e encontramos prazer nessa estranha devoção.

As espirituosas e às vezes macabras histórias de Saki transcorrem no chamado período eduardiano, no Reino Unido ou nas colônias inglesas. E a vivacidade desses textos talvez nasça não só da experiência de Munro como correspondente do The Morning Post na Rússia, em Paris, nos Bálcãs e em Varsóvia, de 1902 a 1908, mas também da nítida influência que ele sofre de Oscar Wilde.

De qualquer forma, Saki nos seduz com a crueldade de seus contos escarnecedores. Suas sátiras são aulas sobre como as inconveniências sociais subjazem ao verniz vitoriano – e sobre como elas podem emergir de repente, graças a fatos corriqueiros. Todas as expectativas que temos em relação aos comportamentos mais adequados à vida social são destruídas por esse escritor que, ao substituir o decoro por situações vexaminosas, cria personagens que se espojam no prazer de ludibriar seus semelhantes ou de viver segundo as regras do próprio egoísmo, doa a quem doer.

No entanto, enquanto rimos, a voz de nossa consciência parece repetir o que o escritor, ensaísta e crítico V. S. Pritchett afirmou: “Saki escreve como um inimigo. A sociedade o entediava a ponto de um assassinato. Nosso riso é apenas uma nota ou duas menor que um grito de medo”.

Reino dos animais

De fato, seu desprezo pela sociedade era tão fundo, que ele reservou aos animais os papéis dignos, inocentes ou justiceiros. No conto “Um gato indiscreto”, por exemplo, o estudioso Cornelius Appin ensina o gato Tobermory a falar; e este se torna o acusador das hipocrisias que latejam no grupo de supostos amigos de Lady Blemley. O fim de Tobermory será triste, mas ele não sofrerá a injustiça de morrer nas mãos de um espécime da raça humana. Seu professor, ao contrário, ainda que imbuído de nobre missão, terá a pena que os humanos merecem. Um pobre ratinho condenará Theodoric Voler – no conto “O camundongo” – às mais estúpidas humilhações, provando que o homem despreparado para os transtornos inevitáveis da realidade pode sofrer muito. Em “Esmé”, uma inocente hiena provocará verdadeira tragédia, transformada, contudo, em um fato corriqueiro pela leviandade da Baronesa, mulher egoísta e fútil. Na história “O tigre de Mrs. Packletide”, o velho e indefeso felino permitirá à subalterna Miss Mebbin um saboroso e lucrativo golpe. Em “Os intrusos”, uma antiga disputa de limites, entre famílias que alimentaram ódios durante gerações, acaba resolvida pelas forças da natureza: os invasores, humanos, transformam-se em vítimas dos verdadeiros donos das propriedades, aos quais de nada adiantará implorar clemência. Quando o fantástico surge, por meio de um personagem que habita a nebulosa fronteira entre o humano e o animal – em “Gabriel-Ernest” –, o simplório Van Cheele será a testemunha derrotada por forças irracionais.

O escritor satírico Tom Sharpe, portanto, está certo nos comentários que faz às narrativas de seu mestre: “Nos contos de Saki a civilização foi derrubada e substituída por uma estranha supernatureza. Nesse mundo, o animal que triunfa é a inteligência e existe a permanente suspeita de que, se os seres humanos se comportassem como animais, o mundo se organizaria de um modo muito mais harmônico”.

Saki reserva à sua espécie, quase sempre, um papel derrisório. Dois dos melhores contos da coletânea – “A cura do desassossego” e “O método Schartz-Metterklume” – apresentam humanos cujo maior prazer é perturbar a vida de seus semelhantes. E eles o fazem com hilariante perfeição, digna de ser aprendida e imitada. Já em “A omelete bizantina”, a dissimulada Sophie Chattel-Monkheim, “socialista por convicção e Chattel-Monkheim por casamento”, terá seus discursos contra o capitalismo colocados à prova pela numerosa criadagem; levada a uma crise de nervos após inesperada greve, concretiza-se o que o narrador, irônico, havia anunciado: “É um dos consolos dos reformistas de meia-idade que o bem que inculcarem, se há de existir, deve existir depois deles”.

Técnica exemplar

Há, em todos esses contos, apenas um ser verdadeiramente bom: o menino Conradin, de “Sredni Vashtar”. Sufocado pela doença e pela tirania da velha prima, esse garoto de dez anos elege para si, no pequeno mundo que lhe resta, um deus particular: o furão ao qual dá o nome que intitula a narrativa. A partir desse momento, um tipo especial de religiosidade nasce. O galpão abandonado, onde o animal permanece preso, transforma-se em um templo, sede de inocentes rituais. No início, Conradin nada implora, não faz promessas, apenas adora a criatura que lhe parece representar “o lado impaciente e terrível do mundo”. Saki reúne, no mesmo espaço, a aflição da criança torturada, o sexo e a emergência do sagrado como forma de sublimação. O instinto religioso transforma-se, lentamente, em uma experiência negativa, maléfica, não porque Conradin seja mal, mas porque é impossível não reagir, de algum modo, à prima mesquinha e opressora; afinal, o que pode a criança contra o adulto, a não ser que tenha proteção divina? Sredni Vashtar ouvirá as preces do menino, comprovando, mais do que a força do mal, que a maldade surge principalmente quando não somos amados.

História soberba, “Sredni Vashtar” é um exemplo do domínio técnico de Saki, que constrói narrativas perfeitas, “orbes cerrados, tematicamente rígidos” – para lembrar a feliz definição de Mario Lancelotti em seu sintético mas brilhante De Poe a Kafka (para una teoría del cuento) [1] –, submetidos ao “império irreversível do fato, do acontecimento, […] requisito tão simples quanto fecundo, de que deriva, forçosamente, o resto de suas exigências clássicas: unidade, originalidade, intensidade, estilo depurado”.

Saki condensa no primeiro parágrafo da narrativa todo o drama do protagonista. E a partir daí a história converge para um único ponto, resolvido páginas depois. Nada desvia a atenção do narrador, que investe sobre seu tema como um símio furioso, mas sem jamais descartar a sutileza: em pleno clímax, o leitor tem diante do olhar somente indícios, sinais, sugestões – e ainda assim pode assistir à terrível crueza da vingança.

Trata-se de um escritor que trabalha a estrutura e as nuanças das frases a ponto de transformá-las em pequenas joias de asteísmo. No início de “Um gato indiscreto”, por exemplo, o narrador descreve o cenário – “Era uma tarde fria e chuvosa de fim de agosto, aquela estação indefinida…” – e temos a impressão de ingressar em um texto leve, de imagens débeis. Mas logo a seguir ele desmantela nossa certeza, completando, de maneira inusitada: “… quando as perdizes ainda estão em segurança, ou refrigeradas, e não há nada para caçar […]”. Os dois segmentos se antagonizam na exata medida para despertar a nossa surpresa, alertando o leitor sobre o instável universo em que ele começa a penetrar. Mais à frente, Saki não pode apenas dizer que um personagem é feio. Ele revoluteia sua ácida retórica e cria uma descrição indireta da feiura, que aguilhoa não só o objeto da descrição, mas também suas observadoras: “Seu exterior […] não sugeria o tipo de homem a quem as mulheres se dispõem a perdoar uma generosa dose de deficiência mental”.

Some-se a tais habilidades um universo de personagens incomuns – o capelão burocrata de “O sanjaque perdido”; a deliciosamente sádica e imaginosa sobrinha de “A janela aberta”; o rapaz sem nome de “O contador de histórias”, e Bertha, a menina das medalhas por bom comportamento, pontualidade e obediência que protagoniza a história dentro do conto – e será inevitável lembrarmos Edgar Allan Poe e suas famosas resenhas ao Twice-Told Tales, de Nathanael Hawthorne: “Se nos pedissem para designar a classe de composição que, ao lado do poema, pudesse melhor satisfazer as exigências de grande genialidade, que pudesse oferecer a esta o mais vantajoso campo para o seu exercício, deveríamos falar, sem hesitação, do conto em prosa” [2]. Declaração que Hector Hugh Munro, conhecendo-a ou não, realizou plenamente.

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Notas:

[1] Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1965.
[2] Tradução de Charles Kiefer, em seu A poética do conto. Porto Alegre: Nova Prova Editora, 2004.