Uma experiência de banca. Me lembro de uma defesa de mestrado, na qual fui o segundo a usar a palavra. Antes de mim, arguiu um professor de mais longe, e como gostava de falar, tive tempo de procurar entender o que ali se passava. Concluí, em primeiro lugar, que era imperioso teorizar a merda, antes de mais nada pela dificuldade de diferenciá-la em vista de sua variedade, multiplicidade e ubiquidade. Neste caso, fiquei feliz em conseguir organizar a verborragia do colega em um esquema de quatro níveis, algo reminiscente da hermenêutica medieval. O primeiro era o literal, do simples nonsense, das palavras frouxas, dos conceitos gelatinosos, da falta de coerência entre as frases. Mas como é impossível deixar de fazer sentido o tempo todo, logo surgia uma segunda camada, que se referia ao simples erro, e que já era um avanço, dado que já possuía alguma determinação. Acontece que a moleza e o engano não existem como mônadas, mas interagem com o meio-ambiente, que poluem. Por isso, fui obrigado a refazer, na hora, a minha arguição, para substituir o máximo que pudesse os termos já empregados pelo falante antes de mim: “indivíduo”, em lugar de “sujeito”, “interpretação” ao invés de “hermenêutica” etc. E foi justamente quando me dei conta disso, que vi aparecer o último nível, em toda a sua feiura: tanto o candidato, quanto eu e o orientador – além, especialmente, dos outros presentes – estávamos obrigados a ouvir aquilo e era impossível que o arguidor não o percebesse. Havia, assim, inegavelmente, um gozo do falar que, dentro dos limites do ritual, não tinha limite; e com ele entrava em cena o convite para uma perniciosa mímesis negativa. Mesmo que não compreendesse nada, ou melhor, justamente por não poder compreender nada, o candidato podia aprender as delícias de se ocupar essa posição: de poder falar, e os outros terem que ouvir, de poder escrever, e os outros se verem forçados a ler, de se ver julgando os outros sem entender de maneira alguma o que está em questão; em suma: o exercício de um gozo da pura autoridade, e que tem como condição de existência a ausência de qualquer conteúdo. Isso se confirmou quando fiquei sabendo que o orientador do falante arguidor era, ele mesmo, exatamente assim. A distopia da merda não reside na falta de contornos, no erro ou na poluição conceitual, mas em sua transmissão.
Uma das consequências mais visíveis da crescente importância da teoria para os estudos literários está na dissociação cada vez maior entre a obra estudada e o aparato de análise. Essa separação mimetiza o processo de produção industrial, pois a literatura passa a assemelhar-se a matéria prima e a teoria a uma máquina confeccionadora de sentido. A comparação torna-se ainda mais convincente quando se percebe que a divisão internacional do trabalho aplica-se perfeitamente aqui: os países desenvolvidos desenvolvem códigos de leitura e os periféricos aplicam-nos às tradições locais. É assim possível escrever ensaios, dissertações e teses sobre Machado de Assis utilizando-se de Bachelard, Bakhtin, Barthes, Baudrillard, Beauvoir, Benjamin, Bhabha, Bloom, Bourdieu, ou Butler – para ficar apenas no “B”. Do ponto de vista estrito da lógica acadêmica, essa prática aplicadora é absolutamente válida, assim como absolutamente entediante. No limite, ela destrói a literatura como objeto, pois a interpretação de fato teria que respeitar o apelo da obra, que só aparece como tal por meio da interpretação, e não submetê-la a um arcabouço conceitual qualquer. No entanto, seria inútil reivindicar um retorno aos velhos tempos anteriores à febre teórica: ela é um sintoma do espírito de nossa época, e deve ser impiedosamente teorizada. Seja como for, uma possibilidade para se lidar com essa situação é inverter os vetores e investigar, por um lado, a materialidade de uma dada teoria: suas metáforas prediletas, a recorrência de estruturas argumentativas como enredo, as categorias como personagens, sua configuração do tempo e articulação do espaço das ideias; por outro, conceber a literatura como ela mesma pensante, como repositório de conceitos: uma máquina reflexiva.
“Dada a parca bibliografia sobre o escritor”: os argumentos para a relevância de uma pesquisa oriundos da escassez de estudos existentes são cada vez mais abundantes. Dificilmente se dão conta do círculo vicioso no qual se inserem, pois seu ponto de partida é o de que o objeto de que tratam é merecedor da escrita crítica, enquanto a grandeza do autor, por definição, só poderia surgir do acúmulo de tal produção textual. Que essa inconsistência lógica possa passar tão desapercebida se deve ao real pressuposto subjacente à máquina acadêmica atual, que em última instância não se importa com a grandeza ou mesmo a relevância daquilo sobre o que se volta: o pressuposto de tudo saber, de que tudo deve ser abordado e nada deve ser deixado, em silêncio, de fora.
É um fenômeno curioso que, se por um lado, a crítica vem questionando o cânone literário, desafiando seu fechamento e reivindicando a inserção de novas vozes, por outro, a teoria vem testemunhando a formação de um cânone próprio, um rol de autores que se tornaram referência obrigatória (inclusive para as novas vozes), cujos conceitos podem, sim, ser problematizados, mas não sua posição a priori como grandes nomes.
Na área de Letras, todos falam mal de todos: e todos têm razão.
Diferentemente do que se crê, não é difícil escrever um doutorado medíocre, que seja aprovado pela banca sem entusiasmo, porém sem controvérsia ou ultraje. Você pode aplicar uma teoria a um corpus específico; pode reproduzir gestos argumentativos de outros críticos; pode copiar conclusões retiradas de outras análises; parafrasear e discutir referências bibliográficas; importar (ipsis litteris, bien sûr) questões ou temas já consolidados no exterior, mas inéditos no Brasil etc.. Não faltam estratégias composicionais eficazes para sistematicamente barrar a inteligência e criatividade, substituindo-as simplesmente pelo trabalho. Por que então há tantas pessoas que não conseguem acabar a tese? Os preguiçosos são uma minoria; afinal, já passaram por uma graduação e quase sempre já têm um mestrado na bagagem. Geralmente fracassam aqueles para quem a escrita torna-se por demais pesada, justamente porque seu texto assume reverberações existenciais: ele reveste-se de um investimento pulsional forte, como se muito estivesse em jogo, nas ideias, nas hipóteses, no objeto, no ser doutor. Não há tanto que fazer aqui, além tentar de apontar a raiz do problema para o pós-graduando, que muito bem pode compreender o que se passa sem no entanto conseguir escrever. Por outro lado, o silêncio dos psiquicamente engajados deixa entrever um mecanismo de seleção natural da máquina acadêmica. A burocracia não é só um modus operandi: é também um agente formativo.
Já participei de 89 bancas de mestrado e doutorado no Brasil. Demorou bastante para que me desse conta de que o subdesenvolvimento manifesta-se também na questão da distância do foco escolhido. Com frequência você encontra, em teses e dissertações, frases do tipo: “Muito já foi historiado sobre o romance e ainda se tem discutido muito sobre seu comportamento ao longo do século.” O ponto de vista aqui é o mais amplo: “o romance”, “o século XX” – ou então: “o sujeito”, “a modernidade”, “a civilização ocidental”… É uma perspectiva quase divina, como se estivéssemos no cume de um penhasco olhando o mundo lá embaixo. Nos Estados Unidos e alhures ocorre o contrário, e o lugar de onde se fala está muito mais marcado pelos limites de uma área específica, geralmente por meio dessa cerca ou muro que é a palavras “studies”. Aqui ganha-se agilidade e coerência no debate, agora circunscrito a uma região pequena (na realidade, cada vez menor – e muito da invenção intelectual advém da criação de novos recortes: food studies, tourism studies…). A indistinção, que é distintiva do subdesenvolvimento, pode apontar para uma proximidade maior com a vida, tanto a social, quanto a do próprio pesquisador, contanto que se dê conta de que para estar em cima do penhasco você mesmo precisa construir um poderoso binóculo.
Há um cerne de inteligência na burrice, pois ela está sujeita a um princípio de autopreservação. A burrice será tão maior, quanto maior for sua inteligência para detectar aquilo que a ameaça. O ódio ao pensamento, não tão incomum na universidade, acaba sendo-lhe uma homenagem deformada.
Considerar uma obra de arte como um ser vivo é uma estratégia interpretativa interessante. Ela permite que se investigue a história de sua recepção – aquilo que se faz a ela – como resultado de uma ação sua, como se o tempo fosse seu objeto, o passado, um conteúdo. Em muitos casos, as décadas desvelam camadas de sentido totalmente ocultas para os contemporâneos, que hoje nos parecem como absolutamente constitutivas. Mas para considerar a metáfora em toda sua extensão, seria necessário refletir sobre como é possível matar uma grande obra. Não é por meio do silêncio ou esquecimento (ao lembrar-se de esquecer, você já fracassou), nem da crítica negativa (a qual a obra pode negar, facilitando assim seu vir a ser) – a forma mais eficaz é poluí-la, seja por meio da sua execução contínua, como o “Pour Elise”, de Beethoven, hoje inaudível com os caminhões de gás e no standby dos telefones, seja por meio da adaptação. É uma questão realmente séria saber se Romeu e Julieta resiste à Mônica ao Cebolinha.
O conceito de sucesso da indústria cultural tem algo de ameaçador. Ele deveria significar: “este objeto recebeu o aval, espontâneo e livre de qualquer coerção, por parte de muitos”; mas na realidade quer dizer: “esse produto será repetido tantas vezes que passará a fazer parte do cotidiano das pessoas; ele acabará convertendo-se em veículo de sociabilização. Se você não quer ficar sozinho, é melhor forçar-se a gostar dele”
O texto crítico é necessariamente argumentativo. Não há como lidar com um objeto criticamente sem tomar uma posição, sem projetar alguma espécie de antagonista. Isso é um problema para um conceito de cultura que não consegue incorporar a negatividade, que vê o mundo como uma grande celebração. Mas há pelo menos uma forma adequada de tratar essa dificuldade tão irritante: rejeitar os binarismos sufocantes e aceitar todos, abrir-se para todas as vozes, todas as minorias, todos os sujeitos oprimidos, dar boas vindas aos subalternos, não recusar ninguém. O resultado discursivo disso é sofisticado, pois esse tipo de escrita coloca na posição de antagonista, sistematicamente e com absoluto rigor, justamente o antagonismo. Isso leva a uma configuração peculiar da política das letras, pois como é a própria distinção entre amigos e inimigos que é antagonizada, as alianças e os ataques, os conchavos e as perseguições podem acontecer livremente, sem o fardo de qualquer engajamento textual.
Depois de já ter ido a muitas bancas e de ler lido inúmeros projetos de pós-graduação, percebi que com frequência está simplesmente ausente no horizonte interpretativo do aluno a possibilidade de que seu objeto de estudo possa ser deficiente. Em parte arrebatado pela força do escritor, em parte talvez ansioso para participar do mundo da cultura (e de no futuro receber um salário de professor universitário), ele constrói sua escrita como elogio. A pesquisa literária tende confundir-se com um gênero retórico antigo, o panegírico. Gostaria de ter tido a oportunidade (o tempo e a energia), em todos esses casos, de argumentar que a arte é, por definição, inferior a seu próprio conceito, e que as obras são, tomadas uma a uma, inescapavelmente inferiores à arte. Muito do que vale a pena na literatura, muito do que é realmente arrebatador, vem da imperfeição do artefato, de como suas conquistas entrelaçam-se com seus fracassos.
Quando, ao invés de crítica, o critico (já formado) só escreve louvor, ele se torna um comerciante da cultura. (Não deixa de ser engraçado imaginar o mercadão das Letras, uma feira com todo mundo aos berros: “Olha aqui a minha Clarice e o Indizível, olha aqui, tá barato hoje madame, é só hoje, olha aí a Clarice e o Indízivel.” E o outro, do lado dele: “É o nosso Machado dialógico! Compra dois leva três!” Ou: “Baratinho, é pra levar minha senhora, olha aí a recepção do romance francês no Brasil no século XIX, quem provou gostou. Prova um pouquinho aqui minha princesa. Tá docinho.” – “É o Derridaaah, é o Derridaaah, quem vai querer?” – “É só na minha mão, Adorno e a formação, é só na minha mão”.
Um brasileiro fazia uma apresentação do livro do tcheco Vilém Flusser sobre o Brasil. Chamou-me a atenção como explicavaas ideias do autor, encarando-as como objetos dotados de uma dignidade intrínseca, que justificava o árduo trabalho de análise (o esforço da atenção, o exercício do rigor, o desenvolvimento do foco ao mesmo tempo no detalhe e na coerência geral do argumento). Ele com isso performativamente desautorizava-se, abdicava de si mesmo, de sua posição, tanto de nascença quanto formativa, como brasileiro, e portanto de potencial juiz dos julgamentos do estrangeiro. Impressionou-me como um gênero discursivo – no caso, o do comentário filosófico – era capaz de produzir um sujeito contra si próprio.
O número de professores que namoram alunas é enorme – infinitamente maior, sem dúvida, do que quando os sexos são invertidos. Os casos entre mestres e discípulas aterrorizam os moralistas, que assim encontram um objeto para descarregar todas as suas frustrações e infelicidades. O argumento de que a relação é assimétrica, que envolve um exercício de poder, incontornável é, naturalmente, correto. Porém, a ira contra o gozo do outro ignora a lógica de projeção que necessariamente envolve docente e discente. O desejo da aluna pelo professor não é de todo distinguível do desejo pelo saber, que, é óbvio, poderia tomar outras formas. O mortal, no entanto, é quando o docente reconhece no olhar da estudante aquela imagem, equivocada porém necessária, de uma plenitude do saber, uma sabedoria sem falhas ou buracos: a imagem à qual ele mesmo almejava quando jovem.
Há dois eixos para se avaliar a produção acadêmica das Letras no Brasil. O primeiro é o do bom versus ruim. Se fosse uma gangorra, penderia enormemente para o último termo. É este eixo que possivelmente está na cabeça dos neoliberais, que gostariam de fechar as universidades públicas e entregar a porcaria para a iniciativa privada. O segundo eixo é o do nada versus alguma coisa. Aquilo que era amplamente deficitário, de outra maneira sem justificativa de existência, apresenta-se agora como um avanço diante da barbárie que seria sua falta. O algo é uma base de esperança, de saída do ruim em décadas vindouras. Trata-se de mais uma figuração do Brasil como aposta no futuro
Discutindo outro dia com A.P., consegui pescar uma formulação interessante, dentre as muitas que parecem sair-lhe sem dificuldade: “Não, Fabio, o pior da crise da literatura hoje não é a sua invisibilidade, o fato de que o próprio conceito de crise está em crise. A falta da crise (ou a crise como a sua falta) é agravada pela postura daqueles que se colocam como arautos e patronos da falta de crise, como pacificadores otimistas e eufóricos dos esquemas que todos conhecemos. Sempre arrumam uma justificativa superior para essa excitação pelo marasmo. A mais recorrente é recusar a crítica em nome da aceitação dos novos tempos, como se crítica fosse um apego nostálgico ao passado. Uma das artimanhas da recusa da crítica passa justamente por associá-la a passadismo. Desse ponto de vista, o oportunismo que é essa afirmação da mediocridade é sempre um… empreendedorismo. Ele ficcionaliza o presente como âmbito da ação ativa”.