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Gregório Duvivier e a nova poesia-entretenimento

O recém-lançado Ligue os pontos – poemas de amor e big bang (São Paulo, Companhia das Letras, 2013), do comediante, roteirista, ator e colunista carioca Gregório Duvivier, é seu segundo livro de poemas. De um modo um pouco incomum, começo, então, por seu primeiro livro, pois isso ajuda a aclarar e delinear as marcas e influências dominantes de uma obra ainda parca.

Seu primeiro livro tinha por título A partir de amanhã eu juro que a vida vai ser agora (Rio de Janeiro, 2008, 7Letras), título que é uma grande proeza. Uma grande proeza de diluição, ou uma proeza de grande diluição, o que não muda onde se chega: Paulo Leminski. Grosso modo, a obra poética de Leminski se divide, em seus próprios termos, em “caprichos” e “relaxos”, como este, um dos mais conhecidos: “isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”. “A partir de amanhã eu juro que a vida vai ser agora” é uma paráfrase “relaxada” (no sentido de ainda mais prosaica) do famoso verso de Leminski. Este, por sua vez, é um dos melhores exemplos do material poético que alimenta a “febre Facebook” das citações do poeta curitibano.

Paulo Leminski ter-se tornado um best-seller, a partir da difusão de seus “relaxos” na internet, que pré-alimentou a demanda por suas obras completas, ou seja, do conjunto publicado, mas não editado, dessa obra irregular, é, de um lado, um desserviço à sua recepção crítica; de outro, é uma demonstração do fato notável, mas talvez ainda não devidamente notado, de que a poesia contemporânea parece ter encontrado seu caminho até o leitor: a facilitação. O mesmo caminho que Gregório Duvivier trilha alegremente agora, tanto pela fama prévia a este novo livro (como comediante) quanto pela própria poesia deste. É fácil, de fato: basta ligar os pontos.

O título do novo livro de Duvivier revela, enfim, muito em comum com o do primeiro: Ligue os pontos mantém a mesma assertividade “simpática”, “cúmplice”, além de evocar o jogo de desenho infantil e a expressão “se ligue!”. O subtítulo, por sua vez, reforça e explicita a “esperteza” infanto-juvenil: “poemas de amor e big bang”.

No entanto, não existem pontos a ligar no novo livro de Duvivier. Pois adotando uma aparência de poesia moderna, os poemas não têm sinais de pontuação. Mas isso, quando não é a manifestação de uma sintaxe, e sim mera maquiagem de modernidade, não esconde nada, a começar da sintaxe. E a sintaxe que não se esconde é, aqui, a da prosa. “É sempre bom manter a luz acesa no fim do dia sobretudo quando o ônibus sobe a marquês e a brisa bate junto com a melancolia dos loucos da rua adolpho lutz – nesse momento pensar na luz do fim do dia é bom como acordar com o despertador às seis da manhã e lembrar que é sábado” (p. 37). O fato de este poema, no original, estar recortado em pedaços de frases margeados à esquerda nada altera, obviamente, de sua sintaxe. Sou, em todo caso, tristemente incapaz de conceber frase mais prosaica, em todos os sentidos do prosaico, do que “nesse momento pensar na luz do fim do dia é bom como acordar etc.”. Foi afinal para isso que se fizeram as revoluções dos modernismos? “After such knowledge, what forgiveness?”.Sim, qual a desculpa? Resposta: nenhuma. Não há. Nem interessa. Pois o que interessa agora é a rendição tardia mas, em compensação, gozosa da poesia aos caminhos mercadológicos do pop, da indústria cultural. Paulo Leminski indicou o caminho. É natural, além de democrático, que surja uma fila de alegres seguidores.

no princípio era o verbo
uma vaga voz sem dono
vagando pela via láctea.

depois veio o sujeito
e junto com ele todos
os erros de concordância.1

Seria um perfeito poema leminskiano, não fosse uma perfeita diluição de poemas leminskianos. Cuja fonte, da qual não bebe, mas em que mergulha, incluí dos haicais facilmente aliterados − e trocadilhescos (“nada se leva: / a não ser a vida levada / que a gente leva”)2 aos poemas “gramaticalmente expertos” (“meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente. […] um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça”).3 Tudo isso é por demais conhecido, além de ser por demais conhecido o fato de que essa linguagem não tem densidade para releituras. São “sacadas”, e “sacadas” são, ou como varandas, ou como piadas: não têm tanta graça para quem já as frequentou. Neste caso, para quem já conhece à farta o original, reconhecer a imitação é mais do que sem graça, é uma desgraça. Mas se não há aqui novas “sacadas”, ao menos há velhas varandas:

o bairro de botafogo
se fosse um senhor
usaria óculos fundo
de garrafa e daria
bom-dia aos pássaros
cantores que já não
moram na varanda4

Enfim, como o autor é um comediante, os poemas de Ligue os pontos são “engraçadinhos”:

felizes são as pessoas nas fotos
de escola da minha avó
que não sabem ainda
que vão ser avós

e isso se tudo der certo
e elas não morrerem antes5

Recentemente, referindo-me a outro livro de poesia “gracioso”, escrevi:

No início do século XXI, depois do paroxismo de barbárie e do paroxismo crítico dos modernismos do século XX, em tempos de urbanidade caótica, de tecnologia avassaladora, de crise ambiental, de terrorismo internacional e de confusão cultural, com o futuro transformado em um monte de cinzas pelo cadáver das utopias, com o mundo muçulmano numa cruenta guerra civil contra seus próprios modernizadores, com a Europa em decadência econômica, cultural e política, com a democracia reduzida a um impotente politiquismo administrativo e chão, com o Brasil patinando em aumentos não tão aumentativos do PIB e do consumo, enquanto mais uma vez perde o trem-bala da modernidade pelo nível abissal da educação pública e pela inépcia monstruosa do Estado idem, o aparecimento de um livro de poesia com o título de Alumbramentos é muito difícil de compreender.6

Mas afinal compreendo, devidamente iluminado não só pelo título e pelos poemas do livro de Duvivier, como também por seus intertítulos. Pois o livro se divide em duas partes, a saber: “Cartografia afetiva” e “Aprender a gostar muito”. O que eu afinal compreendo é que sou incapaz de entender. “Aprender a gostar muito” talvez ainda fizesse algum sentido no diário de uma adolescente virgem, considerando que ainda haja adolescentes virgens e que elas ainda escrevam diários. Mas o mesmo motivo pelo qual elas inexistem ou escasseiam, além de não escreverem mais diários, e sim torpedos em smartphones, explica porque nem uma adolescente por acaso ainda virgem escreveria uma frase inacreditavelmente adolescente e virgem como essa: a presença do mundo, o mundo real, a realidade imediata, o pesadelo da história, essa merda toda. Acontece que a poesia-entretenimento não existe para dar a ver, de que forma for, o mundo, mas o contrário. Entretenimento é sinônimo de divertimento, e divertimento, etimologicamente (diverto), significa deixar a via, separar-se, afastar-se. O exemplo maior e mais evidente é, naturalmente, o carnaval. Como diz Duvivier, “o que antes parava agora não para não”:

a palavra para que antes fazia as pessoas
pararem agora já não tem acento igual
à palavra para que indica que as pessoas
estão indo para algum lugar geralmente
sem parar isso é um sinal dos tempos
o que antes parava agora não para não

Sim, há de ser um “sinal dos tempos”. Com certeza, é um clichê embrulhando um trocadilho (“sinal”, acento gráfico). Com mais certeza ainda, trocadilhos e clichês são a coisa menos poética depois da lista telefônica.

Um dos papéis mais importantes, além de mais inglórios, da crítica é tentar apontar para onde a maré vai. Ou, para falar como Duvivier, ler os sinais dos tempos. E a maré parece mesmo apontar para a poesia fácil, a poesia de baixos teores, a poesia sem calorias, a poesia sem contraindicação. Poesia, enfim, de entretenimento. Uma andorinha não faz verão. Mas dois autores seguidos de poesia facilitada bem vendidos (segundo informações passadas por várias livrarias, no caso de Duvivier) sugerem fortemente a realidade da nova facilitação em poesia. “Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”. “A partir de amanhã eu juro que a vida vai ser agora”. Um fim surpreendente para a mais resistente das linguagens, mas que não deixa de ter algum sentido (histórico-cultural). Mesmo que não tenha nenhuma graça.

Até aqui, a poesia predominante no país era uma poesia prosaísta, em que cortes e recortes aleatórios de frases prosaicas fazem as honras de versos. Mas, além disso, disputavam a cena e os prêmios vários tipos de “literalização” dessa poesia prosaica, fosse pelo uso de um vocabulário “raro”, pela utilização idiossincrática dos vocábulos, por enxertos multiculturais ou por certo “abstracionismo” verbal, em que as palavras e os textos evocam referentes distanciados. A nova poesia, simples e simplesmente fácil, parece tornar tudo isso ocioso e ultrapassado.

A poesia, ou, ao menos, certa poesia, vai mesmo se tornando um fenômeno de massa, ou quase, no país. Pena que não se trate da massa de Oswald. Por falar em Oswald, ele é (in)devidamente referido na orelha sem assinatura, na orelha institucional, na orelha-release… É verdade que isso não significa rigorosamente nada, pois qualquer um que comete hoje um livro de poemas parece ter direito a receber um brinde, um mimo: o de ser aproximado, seja em orelhas, releases, resenhas ou resenhas-release, de Oswald, Drummond, Bandeira, Cabral e quem mais se queira, ao gosto do freguês. A facilitação que parece ter-se tornado ou estar se tornando a marca e o caminho da poesia brasileira até o chamado “público leitor” não poupa nada e ninguém. Nem poderia, ou não seria uma facilitação.

Torna-se irresistível, então, aproximar esse fato particular do fenômeno geral da “inclusão pelo consumo” em que decaíram as antigas demandas das “forças políticas progressistas”. Se antes se falava em “inclusão social” e “ampliação da cidadania”, hoje se vai de “inclusão no mercado” e “ampliação do consumo”. A poesia, que até recentemente ainda era a vanguarda da vanguarda artística, afinal também parece ter chegado lá. Lá, ou seja, esse lugar-nenhum que em francês se diz (ou se dizia) laisser faire. Vale tudo: afinal, marxistamente, nada tem valor real além do preço de capa.

Daí talvez se explique, embora não se justifique, o arroubo publicitário do final da orelha-release, que pragmaticamente visa o mercado sem dar a mínima para a história literária: “ao fim desse jogo de ligar os pontos, o que emerge é uma constelação de imagens que apontam novas direções para a poesia brasileira contemporânea”. O livro tem ao menos uma boa piada, afinal.

P. S.

A despeito do meu julgamento sobre sua poesia, Gregório Duvivier, como se sabe, é um dos atores e autores do grupo Porta dos Fundos, que trouxe recentemente para a comédia brasileira uma maturidade e uma modernidade até então inexistentes. O humor brasileiro, como outras manifestações artísticas e culturais, é como regra atrasado, baseado em estereótipos sociais cuja interação é contaminada pela brutalidade da separação de classes que marca o país. Baseia-se, de hábito, no efeito burro e fácil, em lugar da inteligência e do bom texto – caso do Porta dos Fundos. Outra diferença é a amplitude temática. Enquanto o humor brasileiro habitual, pelo predomínio dos tipos e estereótipos, repete até a náusea temas e situações igualmente conhecidos e previsíveis, o Porta dos Fundos é mais urbano e realista. Isto inclui situações privadas – em mais de um sentido – e temas “tabu”, como a sátira re ligiosa ao estilo Monty Python, ainda que em versão “de câmera”, em pequenos esquetes. Tais esquetes, numa indicação de sua força satírica, têm incomodado alguns representantes dos setores mais atrasados da sociedade brasileira, incluindo, obviamente, religiosos, que começam a lançar na imprensa a sombra de ameaças judiciais (ou seja, ameaças de censura, que têm se tornado sinistramente comuns no país). Caso isto ocorra, manifesto de antemão meu apoio irrestrito à liberdade de expressão idem (que não é liberdade se não incluir a liberdade da ofensa – ou de sua recepção enquanto tal −, pois o elogio dela prescinde) e ao moderno e inteligente humor satírico do Porta dos Fundos em particular.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).