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Hollywood por Blaise Cendrars

Título: Hollywood: a meca do cinema

Autor: Blaise Cendrars

Editora: José Olympio

Ano de lançamento: 2009

Coleção: Sabor Literário

Gênero: Reportagem

Páginas: 152

 

Muitos livros foram escritos sobre Hollywood, cada um explorando uma ou mais facetas daquela terra da magia, cada qual com seu corte específico sobre a indiscutível importância econômica e artística de uma cidade que desde os primórdios – quando ainda era um projeto de loteamento em Los Angeles – começava a atrair uma legião de pessoas que, por uma força insondável, se deixavam enredar pelo desejo de conviver com a ilusão e a fama.

Não é outra a impressão colhida da leitura de Hollywood: a meca do cinema, livro que resultou de uma série de reportagens escritas p

elo poeta e romancista francês Blaise Cendrars (1887-1961), durante os quinze dias que duraram sua visita à cidade, em 1936. Na época o escritor tinha 49 anos e estava no auge da carreira intelectual; era um viajante inveterado e jornalista bissexto. Mutilado da Primeira Guerra Mundial, nessa época já havia amputado o braço direito.

Os textos originais de Blaise foram encomendados e publicados pelo jornal Paris-Soir, tornando-se quase impossível acreditar no fato de que “o pequeno livro” – como o definiu o próprio autor – foi escrito em exíguas duas semanas. Ainda mais quando o próprio Blaise confessa: “Nunca tomo notas em viagem. Não quero cumular o espírito com uma multidão de detalhes contraditórios. Quero poder relatar somente o essencial das coisas vistas”. Para um jornalista eventual torna-se também digna de nota a conspícua receita do comunicador talhado para a missão: “Um repórter não é um simples caçador de imagens, deve saber captar as visões do espírito”.

Batizando-a de “fábrica de ilusões”, ou a capital da fotografia e das objetivas, Blaise logo percebeu que em Hollywood não se viam velhos nas ruas ou nos estúdios, pois a cidade pertence aos moços, como é a maioria dos visitantes que para ela afluem, “estimulados pela fé, pelo ardor e pelo desejo de visitar a última maravilha do mundo”. O escritor francês passou apenas alguns dias na cidade, mas descobriu também que grande parte dos turistas dá ouvidos às conversas dos charlatões que os abordam, deixando-se arrastar para Beverly Hills, “sob o pretexto falacioso de visitar as residências das estrelas mais famosas, e à noite os encontramos pelas ruas sinuosas das colinas, entregues a guias clandestinos”.

Blaise deve ter se divertido com a informação de que tais espertalhões se especializaram na arte de vender aos basbaques lembranças de Hollywood, antes que estes embarquem de volta para casa. A lista é longa: “Bonecos e brinquedos de Mickey Mouse, o bigodinho do Carlitos, preso num elástico, os dentes do siso (sic) de Greta Garbo, as unhas de Mae West num porta-joias (sic), cachos de cabelo, fotografias inéditas, saquinhos contendo uma luva, uma meia de seda ou uma flor usadas por tal ou qual estrela nesse ou naquele filme”. Passados mais de setenta anos, quem já esteve numa cidade turística por excelência terá também boas histórias para contar, concordando com a ferina observação de Blaise.

O assédio aos visitantes de Hollywood é feito, por telefone, até nos quartos dos hotéis onde estão hospedados. Blaise concluiu que a cidade deve ser um lugar de peregrinação tão frequentado quanto Jerusalém, “onde os guias poliglotas e os vendedores de quinquilharias bentas são uma praga, e perseguem as pessoas até no recinto dos Lugares Santos e no túmulo de Cristo, oferecendo seus serviços, amiúde dos mais duvidosos”.

Modigliani

Em meio a muitas outras sacadas sobre a meca do cinema, Blaise sugeriu que um ramo de azevinho deveria ser adotado como símbolo de Hollywood ou figurar no brasão da cidade. Arriscou-se a palpitar que o arbusto deveria constar da marca registrada de cada película editada pelos grandes trustes cinematográficos. A sra. H. H. Wilcox, madrinha de Hollywood, como logo descobriu Blaise, costumava responder aos que lhe perguntavam a razão de ter escolhido esse nome para os loteamentos de seu marido que deram origem à cidade, que esse era o significado da palavra “azevinho”, uma árvore pequena originária da Europa, da família das aquifoliáceas. Dizia ela que o nome Hollywood (Bosque de Azevinhos, na tradução de Vera Ribeiro) soava bem, e como era supersticiosa acreditava que o azevinho traria sorte: “Como vocês podem ver, a cidade prosperou; infelizmente, todos os arbustos de azevinho que mandei vir da Inglaterra, com grande despesa, e que plantei na orla de nosso primeiro loteamento, morreram, o que me deixou desconsolada”. O símbolo atual mais conhecido da cidade, mas isso provavelmente só veio a existir muitos anos depois da visita de Blaise Cendrars, é o imenso letreiro avistado desde muito longe pelas pessoas que se aproximam da cidade.

Outro dado curioso anotado por Blaise é que a jovem indústria do cinema já era estrangulada – essa é a palavra – pelo fisco, “pelos impostos federais e por uma rede fechada e complexa de impostos estaduais e seguros sociais que comprometem singularmente seu futuro”. Felizmente para os fãs da sétima arte ainda não se tornou realidade a “profecia” do irrequieto escritor, de que “um belo dia, os magnatas do cinema californiano são bem capazes de fechar as portas e, sem aviso prévio, realizar uma das mais formidáveis operações financeiras que se possa conceber, indo implantar seus estúdios em outro estado – na Flórida, por exemplo, ou noutro lugar, como se cogitou”. E aproveitou para elaborar uma espirituosa pilhéria, talvez a parte mais saborosa do livro, entre as inúmeras que sua copiosa inventividade derramou em tão poucas páginas.

Blaise fez questão de afirmar sua crença no futuro da cidade ao lembrar que “centenas de milhares anos antes de a sra. Wilcox dar nome a essa região, a área em que hoje se eleva Hollywood já era um centro inesgotável de atividade e de vida”. A prova invocada foram os inúmeros esqueletos de mamutes desenterrados nos últimos 25 anos, à medida que a cidade atual foi sendo edificada, “e os que ainda são encontrados (e levados intactos para o museu de Los Angeles, que tem deles uma coleção muito mais impressionante que o museu de Leningrado), toda vez que se escavam as fundações de um novo arranha-céu”. Blaise evitou, porém, fazer qualquer ilação entre os esqueletos dos mamutes e os poderosos magnatas da indústria do cinema.

Blaise lamentou, no prefácio, não ter falado mais do “meu velho camarada Chaplin, por quem tenho enorme admiração, nem de Louise Fazenda”, que não tiveram “tempo nem folga para me receber”. A comediante Louise, aos 42 anos, acabara de dar à luz seu primeiro filho, “o que primeiro tomei por uma boa piada ou por publicidade, mas depois revelou ser verdade”. No caso de Carlitos a situação era outra, embora seja quase certa a zombaria blaiseana, pois ele “estava nervoso demais na minha chegada, por se achar às vésperas da estreia de seu último filme, e continuava nervoso demais na minha partida, porque era o dia seguinte a essa estreia, na qual ele se sentira, como declarou no rádio, ‘tão desconfortável quanto se estivesse na cadeira elétrica’”.

A Nova Bizâncio

Todavia, houve ótimas revelações, como a do maquiador Max Factor, estabelecido há 25 anos em Hollywood, mais tarde uma grife que assumiria charme e fama mundiais em cosméticos e tratamentos de beleza. Divertidas são as anotações de Blaise em relação às dificuldades quase intransponíveis para adentrar os grandes estúdios, sintetizadas no verso de Dante: “deixai aqui todas as esperanças, ó vós que entrais”, sobretudo para aqueles que pretendiam ter uma entrevista pessoal com os magnatas da indústria e os grandes diretores. Assim era na Universal, na Paramount, na United Artists, na Metro Goldwyn-Mayer, nas quais verdadeiros Cérberos comandavam as portarias com arrogante prepotência. Por isso, Blaise também lamenta a coleção de frustrações por não ter tido oportunidade se avistar com Charles Boyer, Marie Pickford, Douglas Fairbanks ou a “fulgurante Norma Shearer”, protagonista de Romeu e Julieta.

A Nova Bizâncio, segundo a adequada qualificação do visitante francês, à vista do fascínio exercido sobre incontáveis adeptos fervorosos do cinema, atraídos por “razões de amor, dinheiro, glória, poder e prestígio, de posições a buscar e ideias a trocar, de futuro, criação e arte”, somente em 1935 (a Paramount sozinha) postou 750 mil fotografias de artistas, endereçadas à imprensa e aos fãs, “com Clara Bow,  batendo todos os recordes do sex appeal”. No auge da fama, a atriz recebia até 35 mil cartas de amor numa única semana!

Ao contrário de uma fábrica onde cada um sabe exatamente o que tem de fazer, Blaise se impressionou ao observar que na indústria do cinema faltava entusiasmo, escrevendo que, num ritmo contínuo e apressado, cada homem “executa seu trabalho quase automaticamente”, como se não estivesse interessado no conjunto e sem pensar “nem por um minuto no resultado final, que é, no final das contas, uma obra de arte”. A descrição de uma cena banal e minúscula, onde um jovem casal apaixonado se beija numa clareira é hilariante. Além dos atores, Blaise anotou a presença de pelo menos cinquenta pessoas, passando pelo diretor, assistentes de direção, secretárias, operadores de filmagem, fotógrafo, maquinistas, pintores, eletricistas e dublês dos protagonistas, e mais uma farândola de funcionários que nem sequer sabem o que está sendo filmado.

Passados exatos 73 anos do aparecimento do indispensável livro de Blaise Cendrars sobre Hollywood, talvez o mais brilhante conceito sobre a meca do cinema tenha sido imortalizado pelo diretor de fama mundial, Ernst Lubitsch, da Paramount, que três dias depois do pedido de entrevista “havia caído em desgraça”. Ele fora responsável pelos sessenta filmes editados pela companhia no ano de 1935, segundo cálculos do autor, uns 18,5 mil quilômetros de fitas concluídas. Em síntese, Blaise pretendia discutir com o diretor uma questão básica: a alardeada crise das estrelas. Depois de uma longa conversa, Lubitsch foi categórico: “Se não houver mais estrelas, inventaremos outra coisa”. Poucos definiram com tamanha propriedade a cidade da ilusão.

 


*Ivan Schmidt é jornalista e escritor; autor da biografia Edgar Allan Poe, nunca estive realmente louco.

Retrato de Blaise Cendrars por Amedeo Modigliani.


 Sobre Ivan Schmidt

Jornalista e escritor; autor da biografia “Edgar Allan Poe: Nunca estive realmente louco”.