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Mário de Andrade e Álvaro de Campos: Uma Identidade

No meio do caudal que jorra da torrente sensacionista de Álvaro de Campos, no início de um pequeno verso (o 41º) do poema “A Passagem das Horas”, surge a revelação e o estímulo para um entendimento de Fernando Pessoa, o seu retrato psicológico em que se consubstancia a sua heteronímia.

“Multipliquei-me para me sentir “.

Em determinada ocasião, o Poeta afirmou, a propósito do seu refúgio nos filósofos gregos e alemães, no ambiente austeramente cultural britânico e do seu consequente bilinguismo, que se “libertou para dentro”. Exceptuadas outras causas psicológicas, do foro da auto-psicografia pessoana, o seu esoterismo, o seu gosto pelas ciências ocultas, esta libertação para o seu interior, também esteve na base da criação dos heterónimos.

Outros poetas de língua portuguesa e igualmente de “Eu atormentado”, elaboraram um discurso poético escondido por detrás da multiplicidade de máscaras, ouvindo vozes múltiplas, afinando cores arlequinais, que se resolvem em um processo poético curioso sem que para tanto tenham feito nascer heterónimos, como “teve” que acontecer com o autor de “Mensagem”.

Mas a identificação com o Poeta brasileiro Mário de Andrade consiste na leitura de alguns versos do autor de “Pauliceia Desvairada”, que decalcam um vocabulário e um estilo sensacionista.

Por exemplo, MA em “Louvação da Tarde”, cujo processo poético liga um sentimento do Eu integrado na paisagem, escreve:

“O doce respirar do forde se une / Aos gritos ponteagudos das graúnas”.

Por seu lado, da outra banda do Atlântico, acima do Cruzeiro do Sul, Álvaro de Campos ao descrever também uma viagem ( hipotética, fingida) a Sintra, com o mesmo sentimento de evasão integrador na paisagem, escreveu:

“Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra / Ao luar e ao sonho, na estrada deserta ”

Mas à parte estes poemas modernistas de glorificação da maquinaria emergente na primeira década do Século XX, é, sobretudo, um poema escrito em 1929 por Mário de Andrade que nos confere a ideia da sua personalidade desdobrada. Trata-se do poema ” Eu sou trezentos…”.

Versos de desdobramento, considerados autobiográficos, em que MA se torna muitos, eles aludem à multiplicação das sensações, relacionam sentimentos perante a paisagem com estados afectivos, marcam pela referência uma época de sensacionismo modernista.

O poema que citamos de Mário de Andrade terá obviamente outras leituras, não deixando de ser porém um paradigma da multiplicação do Eu.

Esses versos expõem, com efeito, o autor do romance “Macunaíma” através de uma linguagem muito pessoal, de uma dicção folclórica, o qual vai falando da dispersão do Eu, utilizando a nosso ver o caminho dos segundos sentidos de que a etnografia pode dispor.

Vulgarizado em antologias do autor como poema pertencente à classe da poesia biográfica, “Eu sou trezentos…” traduz a variedade e a multiplicação, e remata uma análise psicológica que foi bem sublinhada pela releitura que fez essa enorme poeta Cecília Meireles, que classificou o poema como a imagem da abundância.

Mas a chave do poema de Mário de Andrade, reside na expressão da promessa do poeta, que apesar da sua dispersão em “trezentos ou trezentos e cinquenta”, não obstante este número aleatório que vale pela declaração de variedade, garante que um dia se encontrará consigo mesmo.

“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta… Mas um dia, afinal, eu toparei comigo”.

*Lisboa, 1947. Poeta, do Grupo Poético de Aveiro

 

 

Poemas:

Foto Antiga

Lembrou-se nesse dia de passar a eternidade
na cara dos rapazes, manter o tamanho
das suas cabeças, as pernas
dentro dos calções, roupa no fim
de século
Era o que tinham
um olhar
Não sabiam que assim
iluminariam o quarto escuro
Do futuro.

 

Visita

Chegas todos os dias na prata
do ar, por tua causa os jardins
movimentam-se de abelhas
o estame das flores
vai tecer raízes em novos lugares

Chegas e fazes saltar os pássaros
das linhas da noite

És poderoso e todavia
mesmo a mão de uma criança
te fecha

As transparências são a tua água
navegável ainda pelo mais fundo
a que os olhos chegam

Chegas todas as manhãs e fecundas
na palidez dos frutos a tua cor

E cada fruto acorda sem precisar de espelhos

Chegas e endireitas o arco
das nossas costas e a nossa alma
foge para ti.

 

Pessoa Drummondiano

No meio da calçada tem um poeta
tem uma mesa no meio da calçada
no meio da mesa
tem a mão cheia dos chuviscos da manhã
Na ponta de um braço tem outra mão
indicando o caminho
ao lado da mesa que está em bronze
Ninguém se esquecerá que no meio da calçada
tem um poeta que está em fogo
quando o ilumina o sol ao longe


Os Amantes
Depois do violino arrebatar o público
começaram a tocar
os dedos um ao outro
até ao fundo das mãos

A mão esquerda dela disse sim
e a direita dele aprisionou-se
parecia
para sempre.

Obituário
Fernando Pessoa morreu
no Bairro Alto
ele colocou os óculos para sempre
sobre a mesa, três dias antes
ainda O viram a dobrar
uma esquina na Baixa lisboeta
risos soltos, uma tosse
a dobrar o corpo para a frente.

Sylvia Plath
Quando meteu a cabeça no forno de gás
como um leão caindo sobre a presa
todos os poemas estavam prontos
dirigidos
para a morte sobre a mesa
Ela fê-lo de novo, e de novo
toda a manhã escureceu
a sua pele brilhante e o cabelo
como um sol loiro.

J.T.Parreira