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MANIFESTO ANTROPÓFAGO, UM JOVEM CLÁSSICO DE 80 ANOS

O Plano-piloto para poesia concreta, a Tropicália, o teatro de José Celso Martinez, o Antunes Filho da consagrada e transgressiva montagem teatral do Macunaíma

(derivação canibal da linguagem do outro Andrade)da década de 1980, a XXIV Bienal de 1998, cujo tema oficial foi a “Antropofagia”, são exemplos consumados e objetivos que por si mesmos já se revelariam suficientes para comprovar, para o bem e para o mal, a efetiva permanência do pensamento-arte do poeta Oswald de Andrade no panorama das reflexões e fatos culturais brasileiros que atravessam o anterior e alcançam, inclusive, o presente século.

Com efeito, a álacre vivacidade sintético-crítica da ensaística do movimento concreto da primeira hora é haurida na doutrinação cubo-futurista da prosa por justaposição dos Manifestos de Oswald. De outra parte, a canção popular a partir das décadas de 1950/60 ganha outras dimensões com as radicalizações da Bossa nova e da Tropicália. Evoco aqui o trocadilho intertextual de Jardes Macalé, “a bossa nova é o luxo da tropicália”, que, por seu turno, parece reverenciar, com essa equação verbal, o vietcong concreto Augusto de Campos. O virtual xadrez oximoresco luxo-lixo vislumbrado na tirada do compositor, representa para todos os efeitos um pouco do que seria o diálogo mixado entre alto e baixo repertórios no embate potencialmente antropofágico da música popular. A “geração mimeógrafo” dos anos 70, objeto de estudo e de culto de Heloísa Buarque de Hollanda, vive seu desbunde poético-existencial sob a égide do autor de Serafim Ponte Grande que em algum lugar refere o gênio como “uma grande besteira”. O campo estético das artes contemporâneas, que dissipa fronteiras sígnicas e identitárias, expandindo, quer pela apropriação, quer pela expropriação críticas, a imagem do legado cultural universal, aponta para a questão de fundo da “Antropofagia” oswaldiana: o instinto, ou melhor, a “razão” antropofágica, como prefere referir Haroldo de Campos, pensa a identidade e o verismo nacionais em diálogo com os insumos “inimigos”, mas na perspectiva da invenção. Isto é, o que importa é a margem de liberdade e de apetite com que trabalha a persona do canibal cultural na re-acomodação dos dados do outro ou da herança universal visando à criação original.

Para Oswald de Andrade é graças a isso que “o instinto antropofágico” de carnal se torna eletivo e cria a amizade: “Afetivo, o amor”. Este “mau selvagem”, macunaímico até o tutano, paradoxalmente, observa a sua comida que se aproxima pulando, mas a contrapelo da “baixa antropofagia” submetida por sua vez à moralidade simplista do catecismo. Ele não simpatiza com “a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato”; o antropófago oswaldiano se aplica na absorção amorosa do inimigo sacro. Segundo consta no Manifesto Antropófago foi o barroco Antonio Vieira, o padre do sermão das “madrugadas de amor”, quem “nos trouxe a lábia”. A cabeça do antropófago deglutidor de signos, metaforizada por Machado de Assis como um “bucho ruminante” (apud Haroldo de Campos), não pára de funcionar porquanto visa a sintetizar sempre uma renovada resposta dialógica como “reação a todas as indigestões da sabedoria” (Manifesto da Poesia Pau-Brasil). No poema “Câmara de ecos” de Waly Salomão (Algaravias, 1996) vislumbro essa mitológica cabeça-bucho em que se transforma o aparelho de assimilação do antropófago-tipo. E ele bem poderia dizer, dublando e expropriando o poeta baiano: “Agora, entre o meu ser e o ser alheio/ a linha de fronteira se rompeu”.

 

Capa do LP Chega de Saudade, de João Gilberto

 

O futuro

A lembrança, ainda que de passagem, desses eventos – e de outros aqui omitidos apenas em respeito à paciência do leitor -, e de sua importância na formação da nossa mitopoética, afirma por um lado, que as representações do alto modernismo experimentam um processo muito amplo e profundo de canonização. Em outras palavras, ele se historiciza – se a afirmação no fosse um pouco absurda – de uma maneira bastante ágil e surpreendente, inclusive porque, não podemos nos esquecer, os registros ou o anedotário da resistência, seja ao modernismo, seja aos seus estilemas que vão moldar os movimentos subseqüentes, formam uma pequena história à parte. E tal resistência, pelo forte teor arrivista assumido por suas posições e contraposições, não dava sinais de fácil assimilação ou trégua. Toda a polêmica em torno dos dilemas em jogo contribuiu, ao fim e ao cabo, para fazer da recusa conservadora e alarmista, aceitação incondicional. Cedendo, o senso comum ofereceu as condições necessárias para que o alto modernismo viesse a se tornar “uma das manifestações mais oficiais da cultura ocidental”.

Oswald de Andrade, tal como uma série de poetas modernos, se volta para o futuro numa simulação, pois na verdade, seu escrutínio de caráter enviesado, irônico e burlesco se projeta – a contragosto e em fim de contas – para o presente, mesmo. A bem da verdade, os iguais modernistas do autor de Os condenados escavam em suas obras os sambaquis, as tumbas e os despojos do passado original ou primitivo. Abro aqui um parêntese. Com efeito, mesmo nos discursos da história, da antropologia e da sociologia adjacentes ao período, encontramos também esses traços, por assim dizer, problematizadores ou pessimistas, não obstante utópicos, com que os “modernistas” extra-literários acabam configurando suas linhas de investigação apontadas para a formação da paidéia brasileira. Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Paulo Prado, entre outros, estruturam seu pensamento a partir de tal enfoque. Fecho parêntese.

O presente dos autores do alto modernismo, calcado sobre as ruínas de duas guerras, se resolve parcialmente na pureza férrea de um futuro opaco. A mitopoética moderna conhece os desterros de tempo e lugar. Olhando daqui para fora, cabe mencionar, ainda que reconhecendo a impertinência da lembrança, Ezra Pound e T. S. Eliot, dois poetas modernos de língua inglesa, que descobrem sob as ruínas do seu momento histórico, os índices fantasmáticos de uma tradição mais heróica, ática, clássica e ordenada. Também como outros nomes do alto modernismo, cujas análises e manifestações artísticas denunciam uma vocação contraditória na afirmação de suas narrativas e de seus discursos fundadores, Oswald de Andrade tenta o seu “lance de dados” utópico. Nos anos 50, com a tese A Crise da Filosofia Messiânica, procura recuperar em tom mais filosófico os temas que no Manifesto Antropófago estão como que em estado bruto ou de esboço, e participando mais da provocação e da polêmica reativa do que da elaboração de um corpus conceitual capaz de oferecer uma leitura consistente a propósito das condições ideológicas de seu tempo.

 

Oswald, por Tarsila, 1922

 

Manifestos

O Manifesto Antropófago (1928), tanto no que diz respeito aosaspectos de linguagem (o telegráfico de sua prosa cubo-sintagmática, por exemplo) quanto às questões de fundo do plano filosofal que informam o “conteúdo duro” da sua falação, representa a tradução ou a transculturação do Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924). Um está enovelado no outro. A face estética da poética pau-brasil e o avesso ético da pilhagem intelectual antropofágica compõem os dois lados da moeda. Assim como o sentido de um poema está no anterior, no posterior ou mesmo no poema lateral a ele, o sentido de um Manifesto está imbricado no outro. A relação entre eles é menos diacrônica que sincrônica. O mais remoto não se trata apenas de um ensaio prospectivo ao lance mais arrojado do segundo, levado a efeito quatro anos depois. O que resulta do atrito dialético entre os Manifestos Antropófago e da Poesia Pau-Brasil é uma di-versão, isto é, algo que envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos que se encontram no plano de fuga das suas diferenças.  No Manifesto Poesia Pau-Brasil, o que está em causa não é nem tanto a afirmação pura e simples do primitivismo, mas sim a instauração de uma oposição ao pensamento cultivado e domesticado da Europa colonizadora, e de modo a tencionar a sensibilidade moderna do período que, por sua vez, se apresentava em conflito com a hibridez das identidades culturais brasileiras. Algo da “razão antropofágica” já está, portanto, anunciada na poética pau-brasil.

Mas antes de se expandirem em direção a outros tempos e espaços, as idéias do antropófago também serviram de combustível a alguns poetas e autores de sua convivência, irrigaram seus dilemas e apontaram desfechos: o tedesco-gaúcho Raul Bopp bate em retirada de um sul-sudeste que se industrializa e topa a selva e a “água inchada” do mundo amazônico pré-lógico. Mário de Andrade alarga os limites do desvairismo da sua e da poesia do seu tempo, inventando, em prosa, a rapsódia de um índio negro que vira um branco macumbeiro. Macunaíma migra do sertão selval para a cidade modernista, multissígnica e art déco, e, ali, sua utopia é triturada como num moinho.

Já para o olhar sincrônico de agora-agora, e operando uma espécie de tresleitura de extração oswaldiana, a poética-política da “Antropofagia” se constitui num marco desde o qual avança em todas as direções, em ondas ou em círculos concêntricos, a mauvaise conscience da pulsão canibalesca.

Sousândrade, por exemplo, posa de antropófago avant la lettre quando escreve O Tatuturema ou quando coloca o tema econômico-financeiro na ordem do dia da poesia, e desde o círculo ínfero de Wall Street,  escreve: “- Brasil, é braseiro de rosas;/ A União, estados de amor:/ Floral… sub espinhos/ Daninhos;/ Espinhal…. sub flor e mais flor”. Deste ponto de vista, Sousândrade também se antecipa às temáticas de Pound.

De outra parte – retroagindo para radicalizar -, em Charles Baudelaire vamos encontrar essa figura entre duchampiana e antropofágica do poeta-trapeiro. Trata-se do sujeito que fuça o moderno da vulgaridade quotidiana sob os despojos da ideologia, das relações culturais e do étimo, em busca de um eco épico, ou de um heroísmo seduzido pela entropia do trágico, ouçamos o teórico e esteta da modernidade: “Temos aqui um homem – ele deve apanhar na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a grande cidade deitou fora, tudo o que perdeu, tudo o que despreza, tudo o que destrói – ele registra e coleciona. Coleciona os anais da desordem, o Cafarnaum da devassidão, seleciona as coisas, escolhe-as com inteligência; procede como um avarento em relação a um tesouro e agarra o entulho que nas maxilas da deusa da indústria tomará a forma de objetos úteis ou agradáveis” (apud Walter Benjamin). O antropófago-trapeiro baudelairiano esquadrinha a metrópole a partir de um escrutínio semiótico, seleciona e combina sintagmas-coisas, fragmentos, objetos-antiguidades colecionáveis, desentranhados pósteros à dissolução do presente, objetivando um poema, um modelo de sensibilidade, um sonho exato sob pórticos voluptuosos: “A experiência pessoal renovada” imbricada no canibalismo cultural por meio do qual irrompe a diferença como reversão de valores hegemônicos. Esta síntese cultural do antropófago se extravia de todos os referenciais de que um dia se nutriu e logo assume de novo a forma instável de uma (anti)tradição prestes a se romper, ou em vias de plasmar-se, guiando-se por transvalores (Nietzsche) e padrões ainda não abonados: “O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César”.

 

Tela Antropofagia, Tarsila

 

Machado, antropófago

Arrisco-me a interpretar o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, como uma obra “filiada” ao instinto antropofágico. Com este livro vincado por ironias extravagantes, Machado inventa a melhor e mais radical prosa de vanguarda produzida no Brasil do Oitocentos. Deste modo, o reivindico como um precursor do pensamento de Oswald de Andrade. Machado ultrapassa a escala e a escola da prosa dita realista para encontrar a visualidade caligráfica e o espacialismo tipográfico, se antecipando, assim, aos experimentos do Mallarmé do poema-contelação Un Coup de Dés (1897). Com efeito, o autor de Miramar é o herdeiro mais desabusadamente aplicado e inventivo do legado desse Machado de Assis, por assim dizer, pansemiótico.

A desmesura de Friedrich Nietzsche me induz do mesmo modo a uma interpretação carnavalesca. Em Ecce homo, um livro fora da medida, o filósofo e crítico da decadência faz a autopropaganda e a autodevoração da vida-obra de uma maneira algo transviada. Um estilo-insulto logopaico em busca de um leitor tão bárbaro e perturbador quanto ele. Minha leitura-deglutição o identifica a Vincent Van Gogh. A hiperestesia na hiperfilosofia do filósofo-filólogo: “a mão que hesita e prende”. Sua misoginia, para o paladar atual, tão impertinente quanto genial e cruelmente feminina, vira ao avesso as entranhas do Matriarcado do modernista de 22. E indo mais longe, penso também – e não estou de brincadeira – na música do Tim Maia racional. O músico inventou um disco “fora do lugar”. Mas, aqui, a expressão não objeta a inigualável criação do “síndico”. Um disco-risco raro, condenado à extinção e sempiterno, porque não pode ser repetido, isto é, apenas artistas medíocres tentarão emulá-lo. Pois o Tim Maia racional comparece no meu imaginário como um misto tropicalista de idealismo e Zaratustra anticristo. Este álbum é uma grande obra de arte, e como qualquer outra, contraditória, multifária, que rompe linhas de fronteira. E como diria, quem sabe, Nietzsche: obra para estômagos, ou buchos ruminantes, sadios.

A razão e o instinto antropofágicos rasuram a idéia de pureza sem mestiçagem; a presunção da tela em branco. O continuum dos gestos culturais se estabelece a partir do dilema permutacional entre a cópia e o original, o próprio e o alheio, o eu e o outro, o individual e o dúplice do antagonista canônico. A cópia (ou a versão paródica), como topos, representa o nutrimento necessário para a figuração do original, e a recíproca pode ser reclamada aqui sem receio. Inventores e diluidores mantêm, assim, uma relação inextrincável de mútua devoração. Estranha cadeia alimentar cuja metáfora apropriada seria a da serpente que morde a própria cauda.

No entanto, o que garante ao Manifesto Antropófago essa situação curiosa de ser um jovem clássico de 80 anos é a sua condição de objeto verbal produtor de lugares “arte-feitos”. Não obstante esse panfleto tenha servido de plataforma de lançamento para uma série de investigações relativas, por exemplo, à diferença, às identidades nacionais, à intertextualidade, ao sincretismo estético-religioso, à filosofia dos trópicos, etc., ele não é senão uma obra de invenção. E, portanto, se o Manifesto for submetido eventualmente a algum juízo de valor, antes de tudo, ele deve ser considerado a partir da sua realidade de objeto estético construído seja lá sob que motivação social, individual ou metafísica, mas, enfim, desde os contornos de uma objetividade definida ou, ainda, desde uma subjetividade tornada precisa ou encarnada numa orgânica estrutura de signos: sua irredutível materialidade literária, verdadeira assemblage de fundo-forma. A alegria construtiva é a sua prova dos nove. No Manifesto Antropófago o poeta-pensador dispõe dos efeitos de linguagem de maneira a que eles sugiram certas idéias ou assuntos mais pelas relações paratáticas e imprevistas que os ligam do que pela argumentação derivada deles, que desdobra uma rosácea de significações (às vezes anuladas pela rapidez equívoca com que vão acabar à superfície do discurso) ou pelos sentidos dicionários apreendidos de modo mais fácil pelo afeto do senso comum.

 

* Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista, editor e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Dá exepdiente no blog www.poesia-pau.blogspot.com

 

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Recuperações

Entrevista de Geraldo Ferraz a Maria Eugenia Boaventura
(abril de 1977)

Benedito Geraldo Ferraz Gonçalves foi repórter, redator, crítico de arte, romancista. Colaborou na Tribuna, n’O Estado de S. Paulo, na Folha da Noite e trabalhou nos Diários Associados. Fundou e foi secretário do Correio da Tarde. Em 1933, fundou o Homem Livre e, juntamente com Mário Pedrosa (l945-46), a Vanguarda Socialista. Foi secretário da Revista de Antropofagia.

 

Gostaria de que o Sr. situasse a Antropofagia no contexto do Modernismo.

Depois de 1929, Raul Bopp foi ser embaixador pelo mundo afora, enquanto Oswald de Andrade continuou por muito tempo o trabalho. A últirna fase da Revista de Antropofagia foi a mais importante, decisiva e combatida. Em 1929 houve a cisão, surgindo em uma simples página de jornal a segunda fase, onde emergia uma grande radicalização, com a saída de Mário de Andrade e outros. Em suma, todo mundo que achava o movimento radical caía fora… Na primeira fase ninguém gostava de fazer um movimento político-sociológico, de natureza filosófica. Ficaram uns poucos com Raul Bopp, Oswald de Andrade, Oswaldo Costa (uma figura importante e preponderante, que explorou a maior parte do “negócio” e mais por sua causa foi mantida a segunda fase). Definimos alguma coisa. Por exemplo: fomos a favor do divórcio, porém sem nenhum significado. O pessoal não queria fazer a revolução, não queria nada… Oswald de Andrade achava que até poderia incluir idéias marxistas… Quando chegaram os tenentes em 1930, Oswald falou com Juarez Távora sobre a Antropofagia, conseguindo fazer entender que tudo era somente literatura. O movimento radicalizou mais ainda em 1929 e, praticamente, só Oswald permaneceu fazendo barulho. Mas era muito volúvel. Mais ou menos em 1931, já estava no Partido Comunista, mas em termos. Pois até havia uma piada muito engraçada: Oswald de Andrade era um comunista que ninguém acreditava, nem o partido, nem a polícia.

O que tenho a dizer é muito pouco. Participei estreitamente somente em 1929, como secretário da Revista de Antropofagia. Pois eles não sabiam lidar com a imprensa e, além disso, eu era amigo do Oswald, Bopp. O Bopp era dono e um dos chefes de uma agência telegráfica (Agência Brasileira). Eu trabalhava no Diário da Noite e Diário Nacional, com Oswald. Sabia manejar o material, para pôr em ordem para publicar. Eles não tinham prática de nada. Daí fiquei participando quase que materialmente.

 

Gravura de Theodore de Bry, 1592, retratando ritual de canibalismo de índios tupinambás

 

Nunca pensou em escrever na Revista?

Não, eu fiquei mais trabalhando como técnico. Eu estava com eles e achava simplesmente engraçado. Porém, não acreditava no trabalho. Quando Yan de Almeida Prado processou a Revista de Antropofagia, como eu era o secretário, ele também me processou por injúria, difamação. O advogado, Vicente Rao, foi me defender. Yan não compareceu e o juiz, que não entendia nada de literatura moderna, condenou Yan nas custas. Ele era rico, mas muito pão-duro. Muito furioso pagou os 612 mil-réis. Então, eu fiz uma notinha logo depois: o Sr. Yan de Almeida Prado passava agora a ser o sentenciado 612. Muda de nome, não tem mais nome: o sentenciado 612.

A revista teve a função de popularizarão das forças revoltadas antes de 1930. Porque havia esta coisa de revolta. Oswald era um revoltoso muito esquisito. Até 1930 era adepto do PRP. No livro de poemas encontram-se poemas dedicados a Washington Luís (presidente do Estado e da República), poemas com o nome de Júlio Prestes, que era seu amigo. Todas essas coisas ficavam muito incongruentes. Oswald era um tipo volúvel, com uma certa revolta. Tanto que depois disso abraçou a linha marxista. Mas ninguém acreditava, porque sempre foi um sujeito bem abonado, rico, da classe alta de São Paulo. Ninguém acreditava que pudesse fazer revolução. Oswald morava com Tarsila numa casa muito bonita na Barão de Piracicaba, a dois passos do palácio dos Campos Elísios. Eu tenho uma fotografia. Em 1931, ele foi morar numa casinha, no fim da linha do bonde do Bosque da Saúde, pra lá da Vila Mariana. Era um disfarce, coisa assim … Enfim, foi um elemento muito interessante, porque tinha uma linha literária de posição antiburguesa, embora fosse burguês, mas de uma sinceridade meio duvidosa. Mário de Andrade fez mais para abrir o campo. Mário tinha mais base (eu era vizinho de Mário de Andrade), Mário pertencia ao Partido Democrático, era em tudo contrário ao Oswald. Eles foram amigos apenas pela Semana de Arte Moderna. Eu não participei da Semana.

 

Existiu realmente uma literatura antropofágica nesse período?

É interessante que certas coisas de Oswald predominaram sobre a linha literária de Mário de Andrade. Mário me dizia: quando saiu o tal Pau-brasil, todo mundo achou que a Paulicéia desvairada era o Pau-brasil. Não era. Não tinha nada. Porém Pau-brasil soava mais, tinha mais conotação literária do que Paulicéia desvairada. Mário dizia: “Eu entrei na Antropofagia para manter o aplomb, pois já passou o período destrutivo da literatura moderna, mas Oswald inventou esse negócio, eu estava lá. E eu lanço Macunaíma, aí, ela vira literatura antropofágica, não tem cabimento”. A coincidência é muito grande. No mesmo ano (l928) saem Macunaíma e a Antropofagia. Era um azar do Mário. – Nesse período, 1928-29, o que existiu de obra verdadeiramente representativa? Só dois livros: Macunaíma e Cobra Norato. – Mas Cobra Norato é de 1931. Mas ele já estava escrito. Demorou muito pra ser publicado. Bopp era muito dispersivo. Aquilo. tudo já tinha sido conhecido, publicado em jornal, tudo mastigado. Nós conhecíamos tudo aquilo e alguma coisa mais da poesia de Raul Bopp. Coincidiu neste mesmo ano de 1928, e ajudou muito a Raul Bopp, foi a publicação do Nheengatu, de Antônio Amorim, do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (Lendas em nheengatu e em português. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 100 (l54), 1928). O boletim número 100 trouxe na íntegra o Nheengatu. Ajudou como o diabo. Além de Tarsila e eu termos tido em mãos o Dicionário, de Montoya, para descobrir o Abaporu. Em 1928 saíram todas essas coisas. A primeira edição de Macunaíma foram seiscentos exemplares editados pelo autor. Essas coisas ficaram como publicações antropofágicas. Mas não, não. O único que restou é o livro do Bopp. O Serafim Ponte Grande não tem nada de Antropofagia. Aliás, já saiu na linha marxista do Oswald, por causa do prefácio. O livro estava sendo elaborado desde 1924, desde a revolução de 24, que germinou a possibilidade de os revolucionários terem deixado um saco de dinheiro no quintal do Serafim. Este achou o dinheiro, ficou rico, depois fugiu para a Europa. Mas é 24, antes da Antropofagia. Quando chegou a Antropofagia, Oswald achou de misturar as coisas, e reeditar o material do Serafim Ponte Grande, em que a dedicatória para D. Olívia Guedes Penteado foi cortada. D. Olívia financiou a ação integralista, doando 300 contos para a ação integralista. Bonito, né? São Paulo tem isto tudo, pois aqui é uma misturada. Tem esses extremos todos. Uma parte mais radical, mais operária, mais revolucionária, mais socialmente interessada. E outra parte, que é a parte aristocrática, burguesa, essas coisas todas. Paulo Prado, por exemplo, era um milionário, mas era um sujeito de esquerda. A carta que ele escreveu para o filho, publicado em Retrato do Brasil, mostra isto.

 

O Sr. acompanhou a vida de Oswaldo Costa?

Esteve no Partido, participou do Partido. Andou sendo perseguido, fugindo e, não sei por que, foi parar no Rio de Janeiro. Tem uma revista que publicou sua biografia, não me lembro qual. Ele já faleceu.

 

Ele tem algum trabalho sobre a Antropofagia, além das publicações da Revista?

Não, só o que saiu na Revista, com o nome de Tamandaré.

 

É difícil, com o tempo, saber de quem são certos pseudônimos?

Usavam-se até três pseudônimos. Oswaldo Costa era mais fiel. Tudo o que escrevia colocava Tamandaré. Mas os outros (Bopp, Oswald, Gusmão) escreviam com vários pseudônimos.

 

Com que intenção?

O pessoal não queria aparecer. Compreende? Qualquer coisa naquele tempo era escândalo. Imagine que chegou gente que devolveu o jornal, no dia em que saiu um poeminha besta do Fernando Mendes de Almeida. O nome do poema era “0 camarão” (referência ao nome do bonde vermelho). “0 camarão abriu a boca quando viu a liga azul da normalista da praça” ( Na verdade, o poema charna-se “A cidade”, e é assinado por Sylvio Caro. RA. 13.4.4.). Não tinha motivo para escândalo. É que a cidade era muito provinciana, provinciana mesmo.

 

O congresso anunciado na Revista chegou a ser realizado?

Tudo conversa, papo-furado. Aliás, Raul Bopp refere-se ao congresso nos seus livros. A Revista, no número 15 (l9 jul. 1929), expõe as teses do congresso. Lendo depois Plínio Salgado, percebe-se o mesmo apelo em prol da organização tribal do País. Não acha? Mas depois Reale modificou essas frases. O do Plínio era muito mais literato. O Miguel Reale era o teórico fascista do movimento.

 

Não acha estranha essa coincidência de propostas e de idéias?

A coincidência era que, antes de 1928, Plínio já tinha um movimento (a Anta), e este movimento era também ligado às idéias indianistas. Eu era contra o indianismo.

 

Por quê?

Porque não há motivo para ser indianista no Brasil. O nosso índio não tem fixação cultural, como o índio asteca, inca. É um índio nômade. O nomadismo não dá base para qualquer coisa, para nenhuma organização. Ele vai atrás da caça, não deixa contribuição. Nós então buscávamos uma coisa para evitar as outras …

 

Isso aí teria sido um decalque de outra realidade latino-americana?

Desde Alencar até Plínio, e até os antropofagistas, a turrna queria mesmo era identificar-se com as outras partes. Muitos lugares que têm índio mesmo, como a Bolívia, onde até hoje encontram-se traços fortes. No Chile também. Mas no Brasil, eu não vejo o mesmo. Se você procurar um objeto por toda esta área, do Rio Grande do Sul até o Norte, você encontra uns saquinhos. Muito pouca coisa, restos, pedras. São resíduos muito pobres.

 

O negro dominou mais?

Sim. O negro preponderou muito mais, como no Rio, na Bahia. Mas numa faixa como Goiás não tem nada. Goiás não tem negro. Não houve trabalho escravo em Goiás. Oswald de Andrade achava que o índio era o nosso padrão. Mas não podia ser o índio, como?

 

A Revista deu maior peso ao índio, através das colagens da literatura de viajantes e cronistas dos séculos XVI-XVII. Não é?

Deu, mas afinal de contas aquilo tinha acabado. Quando surge o Estado brasileiro uniforme em 1822, o que você tem é uma porção de portugueses e negros. Eu não me preocupo em me aprofundar nessas coisas, pois há um preconceito na defesa do índio. Verdadeiramente, o nosso contingente populacional é muito pobre. Aquela gente que se fixou nos Andes tinha a condição climática, talvez seja o clima. Eles se fixaram lá, fizeram uma civilização lá.

 

Alguns críticos acham que o embasamento teórico da Antropofagia, as idéias, os postulados são calcados na Vanguarda européia da época.

Houve coincidência. Oswald de fato tinha… Mais coincidência do que outra coisa. Naturalmente Oswald tinha esta ligação com a Europa. Oswald era muito europeu. Ele queria fazer analogia do Serafim com os livros do Aragon. Mas não tem propósito.

 

E esta insistência em usar Freud e as conquistas da psicanálise moderna?

Bem, aí porque Freud apresenta de fato uma libertação da parte sexual de toda a sociedade européia. Então reflete, porque são os mesmos males. De lá foram trazidos para cá, para a parte urbana. A parte rural ficou ignorada, não existe. Só em São Paulo, Rio. Aqui, desde 1925, havia um sujeito como Franco da Rocha (que se correspondia com Freud). Eu o conheci.

 

Houve uma leitura sistemática sobre este assunto pelo pessoal?

Sim, porque chegaram, antes de 1930, traduzidos do espanhol, as obras de Freud.

 

Hoje os críticos costumam ver em Freud, Marx e Nietzsche os possíveis inspiradores da Antropofagia. Como o Sr. vê isso? E em relação às obras de Marx, houve intenção de se realizar leitura sistemática?

Não havia nenhuma sistematização. Eu, por exemplo, não tinha nenhuma fundamentação (tinha apenas vinte e poucos anos). Oswald, que poderia ter tido muito mais, ignorou Marx até 1930.

 

Clóvis de Gusmão escreveu alguma coisa, depois da extinção da RA?

Ele era muito fraco, muito doente.

 

Como o Sr. analisa a afirmação de alguns críticos de que o Concretismo na década de 50 e o Tropicalismo na década de 60 foram na literatura e na música, respectivamente, uma retomada ou reaproveitamento de idéias antropofágicas?

Eles quiseram fazer com o Concretismo uma renovação do movimento literário, mas houve antes disso a turma da Universidade. A Universidade surge em 1934. Em 1937-38 já temos uma geração da Universidade, que é a geração de Lourival Gomes de Machado, Antonio Candido, o pessoal da revista Clima, Paulo Emílio Salles Gomes etc… Mas houve a peste dos integralistas no meio. Então, houve uma cisão também nesse pessoal que saiu da Universidade. Uma parte ficou integralista, como todos os Silva Telles. Marcelo Silva Telles era o chefe provincial de São Paulo. Então em São Paulo o movimento intelectual sofreu muito com esta cisão. Depois veio a guerra … a democracia. . ., de maneira que a geração que vem depois da guerra é que começa a se inquietar, em 1950, parece procurar um caminho novo. O Concretismo nada mais é que a retomada das idéias de um grupo holandês, suíço …

 

E em relação à música?

Isto são as comichões nacionalistas que dão aqui no Brasil. É que, de vez em quando, a turma se lembra que é brasileira, então…

 

Esta mesma comichão deu na Antropofagia em 1928?

Sim, deu na Antropofagia, deu no Oswald, no Mário de Andrade, que queria a língua nacional. Para ele, a língua era tudo, até fez um congresso da língua falada com a preocupação de elaborar uma língua nacional com uma melhor pronúncia, sintaxe, articulação. Descobriu que o Rio de Janeiro é uma confluência do Brasil.

 

Na sua atividade de criação, o Sr. nunca tentou pôr em prática algumas destas idéias?

Não, acho que a linguagem devia ser, do ponto de vista literário, atualizada. Não temos nada que indicar que somos atrasados. Não se pode escrever da mesma forma como no início do século. Tem que se estar informado. Se o povo não acompanha, paciência. Você pensa que o Doramundo teve sucesso? A segunda edição pela José Olympio foi de I 000 exemplares. E dezessete anos depois, ainda se encontra uma exemplar desta edição de l 000 para se comprar. O grande sucesso de Doramundo foi a edição de 5 000 exemplares que a Melhoramentos fez. Mas se estrepou completamente, pois não vendeu nem a metade. Está com 2 000 exemplares encalhados. O Carlos Lacerda me escreveu para editar o Doramundo. Eu nem respondi. Num país que não se lê nada … Pois uma edição de 5 000 exemplares para I 10 milhões de habitantes é uma vergonha. Nem mesmo com reclames. Foram publicados anúncios no Estadão, no Globo, no Jornal do Brasil e daí… foi um prejuízo total, pois só fez onda.

 

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 Sobre Ronald Augusto

poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS e mestrando em Teoria Literária na mesma instituição. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015), À Ipásia que o espera (2016) e A Contragosto do Solo (2021). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com