Uma caixa contendo dois exemplares do romance-monumento O Homem sem Qualidades do escritor austríaco Robert Musil (1880-1942), com mais de trinta mil e trezentos dos seus adjetivos riscados com meticulosidade do mapa do texto, constitui a obra em dobro O Homem sem Qualidades, Mesmo e O Homem sem Qualidades, Mesmo Assim…, de Elida Tessler, exposta em Heteronímia Brasil, coletiva realizada no Museu da América na cidade de Madri (de maio a setembro de 2008).
O trabalho em questão da criadora do Torreão – um importante espaço do pensamento-arte em Porto Alegre -, me induz, para começo de conversa, a uma interpretação que, em certa medida, não traz em si grande novidade, nem chega a ser, por outro lado, impertinente o suficiente a ponto de vedar novas veredas hermenêuticas a serem exploradas, inclusive por outros interessados. Vale dizer, temos aí uma calculada disrupção duchampiana implicada na intenção da artista ao riscar todos (ou quase todos) os adjetivos utilizados pelo romancista na fatura da sua obra. Essa sorte de “mutilação” indicial representa mais um lance interessante na dialética da iconofilia e da iconoclastia encravada nas pulsões da representação contemporânea. A prosa preparada que exsurge por entre as rasuras, se limita, ao fim e ao cabo, com a reprodução kitsch do modelo canônico dessacralizado sob bigodes-pinceladas perpetrados, por sua vez, pelos irreverentes artistas do alto modernismo, hoje, um lance antológico integrado ao museu de tudo da arte.
A obra-boutade da artista gaúchafaz as vezes de uma interpretação como que “ao pé da letra”, uma hesitação entre a metalinguagem e o simulacro de um gesto naïf. Elida, como que num transe determinado pela hipnose romanesca, com um olho na blague duchampiana, e outro na credulidade que define o afazer do leitor fiel, borra perspectivas de sentido e corrobora a divisa-título da obra. As experiências mais corajosas das poéticas contemporâneas tocam as margens da derrisão. O livro-caixa de Elida Tessler contendo os dois volumes adúlteros do romance de Musil em versão pocket – livros-objetos a contrapelo da reprodutibilidade massiva -, desestabilizam a categoria da predicação e as reações semânticas a ela associadas. Desprezando os qualificativos, Elida põe em cheque elementos metafísicos que atribuem ao personagem-texto uma identidade. A estrutura aristotélica do discurso, por meio da qual estabelecemos nossos “modos de pensar”, sucumbe diante de uma vontade de linguagem que se demora em simulações de engano varrendo a predicação do seu horizonte imediato.
Não obstante a artista revelar que “foram três leituras integrais de todo o romance para chegar a esse resultado” (grifo nosso), in Contracapa/Zero Hora, 29 de maio de 2008, poder-se-ia dizer que a idéia de “leitura integral” – no que há nela de presunção de captura do sentido completo do que quer que seja – não dá conta do que de fato está em jogo em tal operação. Elida Tessler agencia uma leitura que não é bem leitura – naquele sentido consagrado pelo termo. O procedimento revela tratar-se de uma leitura parcial, ou interessada, isto é, uma leitura regida por um interesse em especial. A artista leva a cabo, e a contrapelo do “controle institucional da interpretação”, uma possibilidade do que costumo referir como leitura tresloucada, isto é, a leitura equívoca; a tresleitura à revelia das boas ou más intenções do autor. Enfim, qualquer leitura – e seria injusto dissociá-la das mínimas circunstâncias que nos estimulam a moldar e cristalizar um sentido para esse dispêndio de atenção exigido pelo texto, sentido que é inextrincável da perturbação do instante precário –, qualquer leitura tosca, imprecisa, ou, por assim dizer, mais arriscada, é preferível à exegese consagrada e consagradora ratificada pelo senso comum.
Elida esquadrinha, por apagamento, exemplares dessa classe de vocábulos, visando a compor uma coleção negativa. Rerum rasura: Elida procede a uma rasura das coisas; salta dessas páginas um mundo desprovido de seus nomes-atributos, receptáculos de juízos. A substantivação, pretendida ou não, é levada a efeito por meio de recusas cirúrgicas. Sob as raspagens-sombras vislumbramos diminutos fantasmas de significantes negaceando virtudes ou defeitos, dimensões ou volumes, aspectos ou aparências, estados, cores, etc. Nesses “romances” assignados por Elida Tessler, o homem não fede nem cheira e, por outro lado, a monumentalidade textual do entrecho romanesco de partida, transformado em fracasso, já não condena nem absolve. As páginas caprichosamente riscadas tanto afirmam a impossibilidade da leitura (obediente), quanto põem em suspeição o ponto terminal do julgamento. Elida inventa um heterônimo: um calígrafo entre afásico e surreal que, em resposta a “escrita automática”, se dedica à rasura automática da adjetivação, insumo inescapável de qualquer escrita estabelecida ou de inclinação taxonômica. É como se a artista inventara a antinomia irônica à conhecida chapa, ao clichê “rios de tinta”, que se utiliza com o intuito de figurar tudo o que se escreveu e se debateu a respeito de algo. À diferença desse esforço para compreender o objeto que fez correr “rios de tinta” em torno do seu significado, Elida despende rios-rasuras de tinta, num tatear cego, apenas para anular, para (des)dizer e rejubilar-se com a chance de um ruído aberto no interior da mesmidade canônica que se basta a si mesma.
Leitura-escarificação na crosta da materialidade do discurso verbal. Ou, melhor, interferências de uma poética do não-verbal sobre a physis da mancha gráfica. Recordo, a propósito, a idéia de Borges segundo a qual a forma, o desenho diagramático do poema na página já predispõe a percepção do leitor-fruidor a um tipo de conotação; escreve o argentino: “a forma tipográfica do versículo serve para anunciar ao leitor que a emoção poética, não a informação ou o raciocínio, é o que o espera”. A imensa logopéia desse romance de formação de Robert Musil – images/stories resolvidas em silogismos, descrições informadas por argumentos –, sofre uma metamorfose sob as mãos de Elida Tessler: leitora indisciplinada, a artista convida o seu igual e hipócrita leitor a experimentar uma leitura analógica, icônica, entremeada de lacunas, e que são presentificadas num negror de partículas cujos sons e sentidos in absentia afloram à superfície da página. Pois Elida, numa espécie de versão brutalista do leitor de lápis em punho, não se aplica a uma leitura em close reading, esclarecedora, característica do especialista – e que talvez fizesse jus, ou rivalizasse com o espetáculo dessa razão quase luciferina que Robert Musil nos ministra em seu romance. Elida Tessler traz a público sua irredutível leitura, na forma de inscrições neográficas. Sua iluminação grafológica redesenha o romance desescrevendo-o ao modo de um tatoomaker descontente de certa eloqüência pictórica. Com uma obsedante intimidade, Elida treslê, relê e lê um par de livros-coisa que após passar por seu manuseio de cunho criptográfico, torna ao mundo com parte importante do corpo do texto delido no limite da usura e do deleite.
* Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista, editor e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004) e No Assoalho Duro (2007). Dá exepdiente no blog www.poesia-pau.blogspot.com