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Observava Aristóteles, na Poética, que o (bom) poeta deve ser antes um fabulador do que um versificador. Com isso, não ignorando as exigências da técnica, procurava enfatizar a importância da imaginação criadora num texto literário.
Ocorre-me relacionar a observação do filósofo com esta Metaformose de Paulo Leminski, por ele também batizada de “uma viagem pelo imaginário grego”. Viagem livre que se utiliza dos mitos como ponto de partida para fabulações ficcionais e poéticas.
O texto – um inédito – alterna-se entre a prosa didática (foi imaginado como uma introdução ao mundo grego), a prosa de ficção – e aí, em alguns momentos, se aproxima do Catatau, e a poesia em prosa – e a poesia que se oculta em frases aparentemente neutras.
Metaformose pode ser visto, também, como um diálogo de Leminski com o poeta simbolista, radicado em Curitiba, Dario Vellozo, que fundou em 1909 o Templo Neo-Pitagórico naquela cidade. É a vertente mais erudita – menos pop – de sua personalidade, que avançou em muitos universos da criação.
O título do presente volume foi pinçado de um poema concreto, de Leminski, do início dos anos 60, no qual as letras da palavra metamorfose vão se recombinando para – ao forjar sentidos imprevistos – traduzir a ideia dinâmica de mutação. Algumas palavras saltam do corpo do poema: tema, termos, treme, metro etc. Porém, algumas delas são fundamentais para a estruturação do texto: mãe, mater, feto, ser e morte.
De algum modo, é este ciclo dinâmico da quase vida até a morte que Leminski procura recortar em sua fabulação dos mitos gregos. Assim é descrito o nascimento do Minotauro: “Desta monstruosidade, nasceu o Minotauro, o híbrido com o corpo de homem e cabeça de touro, em volta do qual Dédalo construiu o labirinto, a casa monstruosa para um ser monstruoso”. Adiante, Leminski reconta o fim do mito: “ao morrer o Minotauro chora como uma criança, por fim se enrosca como um feto, e se aquieta no definitivo da morte”. Aqui, neste pequeno trecho, da morte do Minotauro, pode-se constatar a elocução poética da frase. Imagino-o então agora como um poema estrito senso:
ao morrer
Minotauro chora
como uma criança
por fim se enrosca
como um feto
e se aquieta
no definitivo
da morte
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Na verdade, Leminski transforma os mitos – desarticulando-os e rearticulando-os numa nova ordem – em personagens de sua fábula: “Não há ser, tudo é mudança, revérberos, câmbios perpétuos”. No entanto, este câmbio perpétuo não é destituído de sentidos: “Toda fonte é uma moça bonita que foi amada por um deus, que disse não a um rio, que fugiu de um sátiro, nada é real, nada é apenas isso, tudo é transformação, […] tudo vibra de significar”.
Logo em seguida, neste passo, Leminski arrisca uma definição de fábula, que merece ser destacada: “A fábula é o desabrochar da estrutura, arquétipo em flor”.
A inexistência de um ser mais recortado, mais definido, esta inexistência busca, no texto, por meio da fábula – único meio possível – uma explicação para si mesma: “Toda transformação exige uma explicação. O ser, sim, é inexplicável”.
Cabe lembrar Aristóteles: o homem diante do enigma, coligindo absurdos e dizendo coisas acertadas, por meio de metáforas. E assim Leminski refabula o mito da Esfinge: “Édipo resolveu enfrentar a Esfinge, o monstro interrogador, o monstro-pergunta, o proponente, o primeiro filósofo, o ser questionário. […] Édipo ouve a pergunta fatal (‘decifra-me ou devoro-te’), levanta o rosto a responde. A Esfinge furiosa atira-se no abismo…”.
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Metaformose é destes textos que se colocam na zona de intersecção entre, como já se disse, a prosa de ficção, a prosa crítica, a poesia – com amparo em pesquisa de história. Sua leitura, além de valer por si, pela plasticidade de suas frases e elegância de estilo, auxilia no desvendamento imediato do Catatau e na compreensão de Agora é que são elas. Porém, o maior mérito de Metaformose consiste na reiteração da liberdade como ousadia de criação, com parâmetros definidos, o que afasta o texto de qualquer gratuidade. A monotonia, que é a máscara gratuita do conservadorismo, está longe deste texto, que reinventa a fábula como se ela fosse a ação do tempo sobre uma planta, criando flores, flores das flores: “qualquer fábula vive mais do que uma pirâmide do Egito”.
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Está na essência de Metaformose pensar o mito como narrativa, deslocando a ênfase da filosofia para a fábula, da interpretação mais imediata para a mais mediata. O homem lúdico toma o lugar do explicador e as explicações vão se dando por sentidos imprevistos criados nas palavras e na estória: “Narro, logo existo”. Descartes, como no Catatau, cede lugar ao poeta: “Heródoto buscou, entre miríades de povos, uma fábula que, como o ímã, fosse o centro e a raiz de todas. Mas fábulas não têm centro…”.
Descentradas, as fábulas, refabulações de Leminski, podem ser transformadas em poemas:
caos massa rude e indigesta
apenas peso inerte
desconjuntada semente da discórdia das coisas
terra, mar e ar
ciciam
confundidos
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Gostaria, por fim, de destacar os momentos em que as prosas críticas e de ficção e a poesia se fundem num gênero autônomo, com sabor próprio. Veja-se a refabulação de Cadmo: “Que é um eco senão a transformação de uma voz em pedra, no eternamente idêntico a si mesmo, como fazem as letras do alfabeto, inventadas por aquele Cadmo […] arranca os dentes do dragão e semeia. Dos dentes brotam heróis furiosos que atacam o herói. Cadmo consegue que se destruam entre si. Letras do alfabeto, dentes do dragão, […] o aleph, o beit, delta, poeiras de sons, átomos soltos, épsilon […]”. Há a refinada percepção das letras do alfabeto como entes eternamente idênticos a si mesmos – uma fábula vivendo mais do que uma pirâmide.
“Quem me dera uma máscara para repousar meu rosto de todo esse vão mudar. Não se pense que vou ficar assim a vida toda. Um dia eu mudo, vão ver. No carnaval das transformações, passa a sombra da Medusa, dor sem fim de virar pedra […]. Mas a lei, Nemesis, chama as pedras e todo o corpo de volta para o chão me devolve a meu rosto, máscara boiando na treva […]”.
“O mais horrendo dos monstros, filho do susto e do desassossego, a alma atravessada por uma sombra, eis com que me defronto. A Moira escreve letras fenícias por tortas veredas do Peloponeso. Carniça de Narciso. Sabe o que eu pensei? Vai tentar o que não consigo […]”.
O final de Metaformose remete ao final de Catatau. Neste, o narrador indaga, na última linha, “bêbado, quem me compreenderá?”. Em Metaformose a pergunta é: “em que fábula me transformo?”. Porém,
cai a noite
das noites
a noite de dentro
da noite de dentro
da noite
a noite que só se transforma em si mesma
(a voz do eco me chama
mas já não tenho nome)
e anoitece
mas que deuses me tomam como matéria prima? Em que fábula matersmofo? Em que fábula mesamorfeto? Em que fábula maemortosem? Em que fábula matermofeso?
O leitor, além de mitologia grega, vai encontrar em Metaformose o poeta Paulo Leminski – vivo.