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Na quarta tentativa, Chico escreve livro decente

Chamado de “poeta” por um entrevistador, Chico Buarque de Hollanda corrige-o para afirmar ser um compositor popular. Dizer-se compositor popular em lugar de poeta não é, porém, nem falsa modéstia nem humildade, apenas consciência de linguagem (mesmo porque, há poetas medíocres e compositores brilhantes).

Chico BuarquePois a forma canção, à qual Chico Buarque se dedica, difere da poesia ao usar os elementos da linguagem poética de forma codeterminada pela melodia (além de possuir uma tradição, isto é, uma história própria). Diferentemente – e determinantemente –, na poesia é a própria linguagem poética que se realiza até os limites de suas possibilidades intrínsecas. Daí não ser suficiente, ao contrário do que creem os ingênuos, os “pós-modernos” e os relativistas, usar elementos da linguagem poética para fazer poesia (mesmo porque, neste caso provérbios ritmados e slogans rimados seriam poemas).

Mas se as letras das canções não são poemas, utilizam de fato a linguagem poética, e não a prosaica. Acontece que as diferenças entre estas duas linguagens (que são, mais uma vez, reais, negando mais uma vez os relativistas, os “pós-modernos” e os ingênuos) resultam ser tão profundas que, como regra, refletem-se nas próprias biografias dos criadores. Daí ser raro, na verdade raríssimo, um grande escritor ser um grande poeta, ou vice-versa, pelo simples fato de as competências prosaicas e poéticas serem muito distintas – tão distintas quanto são as duas linguagens, apesar de igualmente verbais (pois se trata de diferentes modos de organizar a sintaxe verbal). Os exemplos são incontáveis. Grandes prosadores, como Joyce e Machado, costumam fazer poesia medíocre, enquanto grandes poetas raramente se dedicam à prosa, principalmente à prosa de ficção.

Chico Buarque dedica-se, com grande competência, se não à poesia, à linguagem poética. Ser competente também em prosa de ficção, apesar de não ser uma impossibilidade, é no mínimo uma improbabilidade. O recém-lançado Leite derramado (SP, Cia das Letras, 2009, 195 pp.) é sua quarta e melhor tentativa de contrapor-se a ela.

Obsessão equivocada de Roberto Schwartz pela sociologia

Mesmo muito recente, o lançamento já mereceu da imprensa uma repercussão bem maior do que seria habitual se o autor fosse tão-somente um escritor. Portanto, escrevo depois de ler as primeiras resenhas. Como regra, os comentaristas têm se dedicado, até aqui (o que não é surpresa), aos aspectos mais óbvios da situação ficcional. Basicamente, ao fato de o personagem central, Eulálio Montenegro D´Assumpção, ser uma encarnação explícita da parasitária, preconceituosa e provinciana elite brasileira. Assim, relevam por exemplo a circunstância de que o herdeiro orgulhoso da elite branca se casa, no meio do caminho de sua decadência social, com uma mulher de pele mais escura (“moreninha”), pela qual é apaixonado mas a quem, no fundo, desprezaria. Ele, no entanto, a adora, ainda que essa adoração se baseie principalmente em sexo. Bastante compreensível, acredito, pois Matilde, quando se casa com o narrador, tem 19 anos. Já a súbita desaparição da garota, deixando-o com uma filhinha recém-nascida, explica suficientemente ela se tornar sua obsessão. O que não se justifica é essa obsessão dos resenhistas pela sociologia, não do romance, mas do personagem – ao mesmo tempo em que alguns condenam certo excesso de sociologismo que seria do romance através do personagem.

Não há nada de novo sobre as elites brasileiras no livro. E ao dizer isto não faço uma ressalva, mas aponto uma qualidade. Pois o autor na verdade não faz sociologia, ao contrário do que foi apontado, por exemplo, por Eduardo Gianetti (“A vida desde o fim”, FSP, 28/03/2009), no que me parece então um pré-julgamento – pré-julgamento que resiste assim à própria leitura do livro, não por esta não ser marcante, mas por aquele ser muito marcado. É como se Chico Buarque, com seu notório histórico de “homem de esquerda”, estivesse condenado a não poder livrar-se de sua ideologia ao escrever. De fato, não há nada pior do que a ideologia na arte (isto não vale apenas para velhas rusticidades sociológicas de esquerda, mas também para “conceituais” criações “pós-modernas” antiqualquercoisa). Não porque a arte não possa ou não deva tratar de temas políticos. Mas porque do que trata a arte pouco importa, desde que o trate de forma artisticamente relevante. Dito de outro modo: a correção política não é minimamente suficiente em arte. Isto posto, não há ideologia, ou melhor, ideologismo, no romance. Ao contrário, há uma surpreendente consistência do personagem principal que lhe vertebra o texto, a partir de suas características biográficas.

Uma vez que se trata das memórias de um longevo e moribundo filho da elite carioca, tudo o que é por ele próprio relatado se justifica a partir desse pressuposto ficcional. Alguns resenhistas, porém, tomaram a escolha em si desse recorte, primeiro, como certa pretensão historiográfica, e segundo, como certa presunção de “denúncia” da história da elite brasileira. Porém o próprio livro o nega. Assim, se essa pretensão e se essa presunção estavam de fato na mente do autor, ele fracassou. Fracassou por ter sido então subjugado pela qualidade propriamente ficcional do texto. Mesmo isso, porém, não é certo, ou seja, não é certo que fossem esses seus motivos, ou que não fossem esses somados a outros, por exemplo, a chance de explorar ficcionalmente um arco extenso de tempo, ou a organização e a desorganização da memória, ou de sua própria memória da cidade do Rio de Janeiro. Como não se trata de possibilidades excludentes, mas confluentes, e como nenhuma dessas possibilidades foi excluída do tratamento ficcional do personagem, é inevitável concluir, por justiça e cautela, que estivessem todas em foco na criação do romance. É nessa confluência, em todo caso, que o livro se livra de qualquer pretensão historiográfica e de qualquer presunção ideológica, ao realizar de maneira inteiramente convincente, porque literariamente consistente, o registro das memórias orais de um homem com tal recorte biográfico.

Para Gianetti o trabalho deixa a desejar

Da primeira à última linha desse que é, de fato, um longo monólogo exterior, há um personagem que se materializa através de uma voz, de uma dicção que lhe é peculiar, feita de certo ritmo, de certa sintaxe, de certo vocabulário e de certa ambiência sociocultural. Não se trata, portanto, de um romance no sentido padrão – pois há um padrão dominante apesar de todo o polimorfismo da forma romance. Não obstante isso, e o fato de o personagem-monólogo ser inteiramente consistente, além de envolvente, o mesmo Gianetti afirma que, ao fim da leitura, a sensação é a de assistir a um jogo de grandes lances no qual o conjunto do time e o próprio jogo deixassem, porém, a desejar. Ao contrário do resenhista e do próprio Chico Buarque, não tenho qualquer intimidade com jogos em geral e com o futebol em particular, que simplesmente me dá tédio. Mas, quanto ao romance em si, se posso dizer algo é que se trata exatamente do contrário. Há de fato grandes lances, mas sequer há um time, pois à diferença, justamente, do romance padrão, que põe em campo um conjunto de personagens em ação e interação, aqui se trata de um jogo solitário, como o de um tenista contra o paredão da própria memória. Logo, tampouco faz sentido questionar a possível pouca consistência dos personagens secundários, pois não há verdadeiramente personagens secundários, já que tudo é o mesmo monólogo do protagonista solitário; e não é verossímil esperar que Eulálio D´Assumpção crie personagens literariamente consistentes, mas tão-somente recordações não muito inconsistentes, inclusive de seus preconceitos quanto aos demais personagens.

A escolha da solução formal do monólogo, se obviamente não é nova, não se torna menos difícil por isso. Redigir o que seriam as próprias palavras espontâneas de um personagem ao longo de centenas de páginas é bem menos fácil do que descrever, como na prosa de ficção habitual. O fato de se tratar de memórias semissenis apenas acrescenta dificuldades, no plural, pois não há somente organização do discurso e de suas referências, mas organização e desorganização, que o autor, porém, tem de organizar igualmente. Para não falar das mudanças de registro impostas pelo grande arco de tempo e pelo largo recorte social que o personagem afinal percorre em sua decadência. Por fim, há o humor. Pois Leite derramado é afinal uma comédia, na tradição da stand up comedy – ainda que neste caso se trate de uma “lie down” comedy –, em que o comediante se põe solitário no centro do palco com um microfone. Aqui, como se trata de um comediante ficcional, cabe ao autor criar, além de seu monólogo, o próprio comediante e o palco em que monologa. E tudo – palco, comediante e monólogo – tem de ser criado pelo monólogo em si. As páginas 125 a 127 talvez contenham o maior daqueles “lances” apontado pelo resenhista. Depois de uma longa e lúcida rememoração da infância do neto, segue a rememoração já não tão longa nem lúcida da infância do bisneto, e daí do trineto, enquanto a lucidez vai se perdendo na repetição e na permutação das mesmas palavras usadas para rememorar todas essas infâncias, que assim se fundem e confundem, o que é ajudado pelo fato de os prenomes de todos os descendentes ser o mesmo. Também se fundem e confundem passado e presente, e interior e exterior, pois ao final a rememoração impregna com seu tempo verbal um fato atual – “[…] fiz fotografá-lo de calças curtas com padres vermelhos, mas o sabor do remédio estava estranho” – para, sem solução de continuidade, passar daí para o presente e o externo: “[…] mas o sabor do remédio estava estranho. Não estou gostando da sua cara, não reconheço esse seu sorriso cáustico”.

A “bola”, na verdade, jamais cai. Assim, pode-se em seguida ler, à página 129, uma excelente descrição de sabor mais clássico (não fosse o fato de se tratar de uma alucinação-recordação):

Quem hoje veio me ver foi o papai, que nunca aparece no meu quarto. Passou para me recomendar que ficasse pregado na cama, senão a caxumba desce para os ovos, o saco fica enorme e o pinto vira pelo avesso. Por isso não viro a cabeça para olhar você, mas pelo rabo do olho a vejo de robe de chambre e chinelos, dando uns cascudos no ar. É o termômetro que você sacode antes de colocar no meu sovaco, para então sentar na minha cama e pousar as costas da mão no meu pescoço e na minha testa. Eu por mim ficaria doente mais amiúde, teria caxumba outras vezes, e catapora e sarampo e apendicite. E meu quarto teria constantemente esta luz morna de abajur, com janelas fechadas mesmo de dia.

A tríade “catapora e sarampo e apendicite” não é acidental ou narrativamente circunstancial. Ao longo de todo o livro, tríades vocabulares como essa são recorrentes, e ao mesmo tempo em que informam de maneira sintética e sonora a narrativa, conformam seu ritmo.

Machado de Assis como “doença”

Várias das leituras até aqui insistiram também em certo machadianismo do livro (cf. Roberto Schwarz, “Brincalhão, mas não ingênuo”, FSP, 28/03/2009). Haveria alguma condenação de os prosadores brasileiros se haverem cedo ou tarde com Machado, não no mero papel de leitores, mas diretamente no de autores, e Leite derramado seria a o momento “machadiano” de Chico Buarque. Afinal, trata-se de um quatrocentão carioca à beira do túmulo narrando sua vida de aventuras e desventuras mais ou menos ociosas, e que também se relaciona com uma mulher morena envolta num manto de dúvidas etc.: Brás Cubas e Dom Casmurro remixed. Mas isso é tão óbvio quanto, de certo modo, impróprio. Apesar de tudo, se há alguma semelhança realmente significativa, para além de meras coincidências de enredo, de que o mundo da ficção está repleto, há de ser com Memorial de Aires. Pois o último livro de Machado é igualmente o monólogo de um membro da elite carioca no final da vida. A partir de tal semelhança estrutural, porém, tudo são diferenças, pois Aires não fala, escreve seu monólogo num diário, e nada tem de senil ou de decadente, ao contrário: é lúcido e ironicamente consciente de sua posição, e é do alto de sua lucidez e de sua posição que observa o Rio de Janeiro, o mundo e seus habitantes. Leite derramado, então, pode ser lido como um Memorial de Aires avacalhado. Não porque avacalhado o relato, mas porque avacalhados o narrador, o Rio de Janeiro e o mundo em relação àqueles do Memorial. A decadência quase gráfica do personagem a partir do próprio tempo de Aires, o fim do século XIX e o início do XX, reforça sua situação como um continuador e um atualizador. Decadência quase gráfica, pois marcada por uma clara dimensão imobiliária. Um belo chalé isolado numa Copacabana intocada em que vivem Eulálio Assumpção e sua filha é a certa altura trocado por dois apartamentos de três quartos num novo prédio contíguo. Perde-se depois um dos apartamentos por dívidas, e voltam pai e filha a viver sob o mesmo teto. Até que o apartamento restante de Copacabana tem de ser trocado por dois na Tijuca. Tudo afinal termina num puxado de uma igreja evangélica na periferia. Acontece que, ao mesmo tempo em que soa farsesco como em uma comédia de costumes, também soa verossímil como numa narrativa realista, pois o velho, que vive de rendas, tem uma filha acostumada a gastar, e que gasta mais do que pode, principalmente considerando que nenhuma nova renda é gerada. Enfim, uma farsa realista e um realismo farsesco, que se parecem estranhamente com muitos aspectos da realidade brasileira.


 Sobre Luis Dolhnikoff

Luis Dolhnikoff estudou Medicina (1980-1985, FMUSP) e Letras Clássicas (1983-1985, FFLCH-USP). Entre 1990 e 1994, co-organizou em São Paulo, ao lado de Haroldo de Campos, o Bloomsday SP, homenagem anual a James Joyce. Em 2005, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a vida e a obra do poeta Pedro Xisto. Entre 2006 e 20014, foi articulista de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo. Como crítico literário e articulista, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, bem como em várias revistas. É autor do livro de contos Os homens de ferro (São Paulo, Olavobrás, 1992), além dos livros de poemas Pânico (São Paulo, Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo, Olavobrás, 1990), Lodo (São Paulo, Ateliê, 2009), As rugosidades do caos (São Paulo, Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016) e Impressões do pântano (São Paulo, Quatro Cantos, 2020).