A banda lançou seu primeiro álbum, Please please me, em 1963 e o último, Let it be, em 1970. Foi contemporânea da revolução cubana, de Bob Dylan, de Allen Ginsberg, da Bossa Nova, de John Coltrane, de Andy Warhol nas artes plásticas, de Karlheinz Stockhausen, John Cage e Steve Reich na música erudita.
Além de ter sido responsável pela mundialização do rock, fez acerca dele uma verdadeira conceituação. Os Beatles sintetizam, em sua obra, o começo e o fim desse gênero e o investigam de forma profunda; chegam a ultrapassar os limites dos padrões de criação da música pop industrializada e dão às suas formas e clichês um grau elevado de complexidade estética.
Entre suas obras, o White album, de 1968, pode ser considerado o momento mais alto, a maturidade do grupo e, ao mesmo tempo, o prenúncio de sua dissolução. Há uma diversidade de estilos e uma fragmentação de processos composicionais que se agrupam no disco e, em sua unidade, revelam certo isolamento de cada um dos membros do conjunto e uma forte convergência de elementos, que dialogam com toda a produção cultural da década, desde Dylan até Cage.
Vale a pena, antes de examinar esse trabalho mais de perto, fazer alguns comentários a respeito do processo de formação da banda e do desenvolvimento de sua discografia. Em 1957, John Lennon, fascinado pelo skiffle – gênero de música folk influenciado, entre outros estilos, pelo jazz e caracterizado pelo uso de instrumentos improvisados, como garrafas, tábuas de esfregar roupas etc. –, formou com alguns amigos a banda de rock The Quarryman, na qual ele próprio tocava um baixo de cabo de vassoura.
Esse conjunto, em seu processo de amadurecimento, teve uma alta rotatividade de membros e nomes e foi por meio dele que, aos poucos, os Beatles foram se encontrando. Em 1958 a banda já estava praticamente completa, já faziam parte dela Lennon (guitarra), Paul McCartney (baixo) e George Harrison (guitarra). Em 1962, Ringo Starr (bateria), que já tocara anteriormente com eles como freelancer, entra definitivamente para o grupo e os quatro realizam a gravação de seus primeiros hits. Até 1963 eles já haviam gravado alguns dos seus grandes sucessos, como “Love me do”, “I want to hold your hand” e “Please please me”, e disparavam em termos de popularidade no Reino Unido.
Ingenuidade e Contracultura
A apresentação de shows nos clubes de Liverpool, como o The Cavern Club, aparições em programas da televisão europeia e pequenas turnês locais davam início à febre que ficou conhecida como beatlemania. O jovem quarteto descobria o seu grande potencial em causar furor no público adolescente por meio de sua versão ye ye ye do rock’n’roll que caracterizou, quase que caricaturalmente, a primeira fase de sua produção.
Em 1964, o sucesso da banda atravessa o Atlântico. Reforçado por uma ampla campanha publicitária nos Estados Unidos – preconizada pelo empresário da banda Brian Epstein em parceria com a Capitol Records –, os Beatles conquistaram, com desenvoltura, o mercado fonográfico norte-americano. Epstein foi uma figura muito importante nessa primeira parte da carreira dos quatro de Liverpool. Ele soube aproveitar muito bem o carisma e a imagem desses músicos: foi o idealizador do célebre traje social e do corte de cabelo comportado que se tornou o logo dessa fase.
A história dos Beatles, assim como a própria década de 1960, é marcada por dois principais períodos, que dividiram a sua discografia. O primeiro deles se caracteriza por certa ingenuidade estética e pelo crescimento de sua influência, e como consequência a influência do rock e dos ideais da juventude, sobre a cultura mundial.
Foi nesse momento que, por meio das mídias de massa, os Beatles mundializaram sua música e seu gênero, alavancaram para níveis planetários a revolução sexual e a liberação moral da segunda metade do século e, em termos de criação musical, consolidaram seus processos de produção de canções, destacando-se a parceria entre Lennon e McCartney como profícua engrenagem criativa.
É nesse período que se congregam as raízes de toda a criação da banda. McCartney, como cabeça musical, trouxe a ela uma grande influência da música de teatro, o que abriu as portas para a produção conceitual-narrativa posterior, e um amplo senso de forma no sentido de composição em blocos com grande variedade na instrumentação.
Lennon, como o principal pensador do grupo, somou à musicalidade de McCartney seu talento para produzir poemas e versos, densidade e agressividade herdadas do blues mais enérgico, espírito de contestação e sentido de experimentação e vanguarda.
Starr e Harrison tiveram uma importância menor em relação aos dois outros beatles. Embora ambos tenham composto algumas canções de bom nível, seu principal papel na banda se deu como instrumentistas responsáveis por sustentar a obra do conjunto em sua performance e na operação de sua música.
O disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (Parlophone, 1967) dá início à segunda fase dos Beatles. Esse álbum foi considerado o primeiro trabalho conceitual de Rock, o que se deu por ser nitidamente experimental para os padrões de seu gênero e, sobretudo, por ter sido concebido como uma unidade narrativa e não apenas uma reunião de canções.
Essa segunda fase se define por uma maior maturidade de expressão e de pensamento, pela contestação política, social e, em muitos momentos, estética. Sgt. Peppers encaminha o quarteto para a produção de suas obras-primas, como Abbey Road (Apple, 1969), Yellow Submarine (Apple, 1969) e o próprio The Beatles (Apple, 1968) – conhecido como The White Album.
Desse modo, a partir de 1967, os Beatles acompanham a década e trocam a docilidade, o lirismo e o idealismo juvenil por uma atitude mais ligada à resistência em relação ao endurecimento moral e político dos governos do pós-guerra, à experiência das drogas e a uma criatividade mais cortante e crítica em relação a si mesmos, ao público e ao mundo.
Eles abandonam os shows ao vivo. A beatlemania passa a entrar em refluxo e declinar e os Beatles se adaptam ao fato se afastando progressivamente enquanto artistas do sistema comercial de produção musical vinculado ao rádio e à televisão e, entre outras coisas, por meio da criação de seu próprio conglomerado de gravação e produção: a Apple Records. Assim, passam a se concentrar na experimentação em estúdio e, em alguns casos – geralmente pela movimentação de Lennon – aproximam-se do ambiente musical mais alternativo à cultura de mainstream.
Na primeira fase, mesmo que mais “ingênua”, os Beatles processam suas influências de blues, country music e rock clássico, como Lonnie Donegan e Elvis Presley, incorporando ao rock acordes dissonantes – como o de sétima maior, anteriormente utilizado apenas pelo jazz e pela música erudita –, ampliando suas formas, tanto harmônica quanto estruturalmente, e adicionando ao gênero lírico da canção de amor elementos de prosa, como em “She loves you”, em que há um interlocutor se dirigindo ao amante e comentando a sua relação amorosa com a amada (“she”, “ela”) na terceira pessoa.
Na segunda fase, as influências mudam, o quarteto passa a dialogar com músicos e grupos como Jimi Hendrix, Frank Zappa, Velvet Underground, Bob Dylan. Incorpora, com frequência, uma instrumentação clássica, como o quarteto de cordas, em suas canções. Passa a elaborar interlúdios e trechos de música eletrônica e concreta para serem adicionados à canção como elemento narrativo e fator de experimentação para o gênero.
O Disco Branco
O White Álbum – que ficou conhecido com esse nome devido à sua capa: um fundo branco com o nome da banda na mesma cor em relevo, criada pelo artista pop britânico Richard Hamilton – pode ser considerado o trabalho mais heterogêneo do conjunto. Há nele uma variedade impressionante.
Há faixas líricas e melodiosas como “Julia”, composta por Lennon em homenagem à sua mãe e gravada apenas por ele, como a célebre balada “Blackbird” de McCartney, também solitária e profundamente lírica, reconstruindo a metáfora do pássaro como figura de liberdade.
Em contraste – o que faz do disco uma rapsódia – há canções extremamente agressivas e tensas, que trabalham a forma, a rítmica e a ostentação do pulso características do blues e do rock mais pesado, como “Helter Skelter”, competição de Paul McCartney com o The Who, a ver quem gravava a faixa mais agressiva; ou a angustiada “Yer Blues” de Lennon, com sabor de Muddy Waters e cor de chuva londrina. Esse também um metarrock, ao sublinhar: “Black cloud crossed my mind/ Blue mist round my soul/ Feel so suicidal/ Even hate my rock and roll” – odeio meu rock and roll. Ou ainda na estrofe antecedente, brutalista: “The eagle picks my eye/ The worm he licks my bones/ I feel so suicidal like Dylan’s Mr. Jones”. Versos de um pessimismo beckettiano.
De passagem, anoto que a violência de “Helter Skelter” encarnou-se na vida, ao ser “captado” como hino apocalíptico por Charles Mason, e, deste modo, tornar-se a trilha sonora do assassinato da jovem atriz Sharon Tate, grávida de oito meses, praticado por seu grupo em Los Angeles, em 1969. Tate era casada com o cineasta Roman Polanski, que, em 1968, ano de White Album, lançara O bebê de Rosemary, baseado no romance de Ira Levin, com Mia Farrow no papel principal, ao lado de John Cassavetes. No final da película, Rosemary confirma suas suspeitas da “ação” da feitiçaria em sua gravidez, ao ver seu bebê num berço negro; no entanto, sorri, terna, para ele, e a câmera se apaga.
“Ob-la-di, ob-la-da” se constrói num clima de deboche e nonsense – por estar num alegre tom maior e ter em sua letra uma frase em yorubá: “ob-la-di-ob-la-da”, figura estranha à língua inglesa, o que dá evidência à construção aliterativa – e antecipa, com sua instrumentação, o desenvolvimento do reggae na música inglesa, trabalhando alguns de seus elementos de baixo e guitarra.
Em “Back in the U.R.S.S.”, assim como em “Ob-la-di”, McCartney mostra a que veio e desenvolve sua aguda criatividade. Aqui, ele faz uma paródia da canção de Chuck Berry “Back in the U.S.A.” e comenta o estilo de surf rock tocado pelos Beach Boys reproduzindo-o e criando sobre ele.
Mas os melhores momentos do disco são, creio, o desempenho instrumental impressionante em termos de intensidade e profundidade lírica de Harrison e Eric Clapton em “While my guitar gently wheeps”; o experimento de colagem e composição com ruído, som instrumental, artificial ou concreto, operado por Lennon em “Revolution 9”; e a letra transgressiva e sexualmente provocativa de “Happiness was a warm gun”.
“Revolution 9” revela a tendência do grupo em assimilar e massificar as descobertas e intenções da música erudita. Nessa faixa, composta por John Lennon, são assimiladas para a cultura de massa as técnicas de composição eletrônica e eletroacústica desenvolvidos por músicos como John Cage, Pierre Schaeffer e Karlheinz Stockhausen.
Ela começa com a repetição da expressão “number nine” por uma voz masculina. A repetição vai saturando sua dimensão semântica e revelando seu aspecto rítmico enquanto um piano levemente dissonante ao fundo vai desenhando uma espécie de rascunho sonoro. A partir daí se desenvolve uma série de motivos e frases de sons de diversas espécies encadeados e articulados em função de seus padrões rítmicos ou do sentido das palavras e figuras criadas por sons materiais.
Nessa faixa, se desenvolve até o ponto mais alto a tendência dos Beatles em inovar tecnicamente com sua música. Como se sabe, a banda é responsável pela invenção do double tracking, gravação em canal duplo, do videoclipe – que torna sua narratividade musical também cinematográfica –, entre mil outras coisas, como o uso da instrumentação não ocidental no rock ou o compact disc em versão longa (“Hey Jude” foi lançada nesse formato e sua duração é de 7 minutos, longa para a época).
Poesia: Lying with his Eyes
Em “Happiness is a warm gun” a poesia entra como elemento essencial. Os Beatles, em geral, trabalham suas canções explorando o gênero conhecido como poesia de circunstância, amplamente trabalhado por poetas de língua inglesa; mas, na letra da canção em tela, a linguagem se adensa e cria uma canção extremamente complexa em termos de forma e criação imagética.
A ironia das expressões sexuais ligadas às imagens de guerra e religião cria, nessa letra, um ambiente de vertigem surrealista ao mesmo tempo que, por contradição, realiza uma incisiva análise crítica e de deboche das instituições moralizantes da sociedade, como a igreja, e sua ligação indireta com a guerra. O verso “Mother Superior jump the gun”, ao mesmo tempo que liga a religião às armas e à guerra, debocha da imagem da freira conotando excitação sexual com a expressão slang “jump the gun”.
Sem dúvida, essa canção merece uma análise mais extensa e detalhada que decodifique e explique seus intrincados processos de composição com a língua e com a forma musical. Ela se forma numa estrutura bastante complexa e variada para o rock ou mesmo para a canção. A peça se constitui em cinco diferentes sessões, que se diferenciam tanto em termos de dinâmica – trechos lentos e suaves contra trechos mais rápidos e agressivos – quanto em termos de métrica: as cinco partes estão, respectivamente, em 4/4, 3/4, 6/8, 3/4 e, por fim, 4/4 no refrão.
O White Album, dessa forma, revela as características individuais de cada um dos beatles e deriva sua unidade da própria crise interna que a banda – e o mundo ocidental – viveram naquele período. É um grande disco, sobretudo por sua multiplicidade rapsódica e pela brilhante conjugação entre tensão, agressividade, protesto e lirismo sob formas inovadoras e que dão destaque ao trabalho com a linguagem como fato estético.
Não seria um exagero dizer que os Beatles são o maior paradigma da cultura dos anos 1960. Uma complexa síntese das inquietações e da criatividade do período e a inauguração de um modelo de juventude e de liberdade que, até hoje, não foi completamente superado. Além disso, e talvez este seja o seu maior feito, os quatro de Liverpool trataram a industrialização da arte com grande perspicácia. Souberam fazer grande arte e a transmitir em massa por meio de um processo crítico em relação aos seus próprios métodos e eficiente em produzir mudança e diferença.
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Happiness is a warm gun
She’s not a girl who misses much
Do do do do do do, oh yeah
She’s well acquainted with the touch of the velvet hand
Like a lizard on a window pane
The man in the crowd with the multicoloured mirrors
On his hobnail boots
Lying with his eyes while his hands are busy
Working overtime
A soap impression of his wife which he ate
And donated to the National Trust
I need a fix ’cause I’m going down
Down to the bits that I left uptown
I need a fix cause I’m going down
Mother Superior jump the gun
Mother Superior jump the gun
Mother Superior jump the gun
Mother Superior jump the gun
Mother Superior jump the gun
Mother Superior jump the gun
Happiness (is a warm gun)
Bang Bang Shoot Shoot
Happiness (is a warm gun, momma)
Bang Bang Shoot Shoot
(When I hold you in my arms)
Oooooooooh, oh yeah!
And when I feel my finger on your trigger
Oooooooooh, oh yeah!
I know nobody can do me no harm
Oooooooooh, oh yeah!
Happiness (is a warm gun, momma)
Bang Bang Shoot Shoot
Happiness (is a warm gun)
Bang Bang Shoot Shoot
Yes it is, gun!
Happiness (is a warm gun)
Bang Bang Shoot Shoot
Happiness (is a warm gun)
is a warm gun, yeeeaahhh
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Vídeos:
The Beatles – Helter Skelter At Studio
http://www.youtube.com/watch?v=aMfkVGCU_BA
Rock N Roll Circus
http://vids.myspace.com/index.cfm?fuseaction=vids.individual&videoid=1214251
White Album Sessions
http://www.youtube.com/watch?v=jF-4TGrjJjo
Revolution 9
http://www.youtube.com/watch?v=lwQiQLqAKOA