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O Catatau de Leminski: as meditações da incerteza

Esta obra teve pretensões bem menores do que as atuais. Num primeiro momento, buscava uma simples leitura comparativa entre o Catatau e o Macunaíma, no rastro de uma pista oferecida, de modo fortuito, por Régis Bonvicino em uma entrevista com o autor da primeira dessas obras (ver Leminski, 1992, p. 175). Na medida em que o trabalho avançava, contudo, o objetivo de partida foi sendo engolfado por uma série de outras questões e acabou nas páginas de um artigo curto, engavetado. O Catatau, de um quase coadjuvante, passou a protagonista, e as conclusões parciais (algumas delas posteriormente revistas) ganharam corpo, em trabalhos acadêmicos com foco bastante distinto desta última versão, destinados a cumprir exigências de alguns cursos que muito contribuíram para minha leitura. Em todas essas etapas, algo faltava, questões mantinham-se em aberto, o que não é diferente do que acontece neste momento. Entretanto, se talvez não deixei suficientemente claro, naquelas ocasiões, o caráter inconcluso da pesquisa, é importante dizer, logo no início deste livro, que, se agora ela chega a um termo, não é obviamente por esgotamento do assunto, mas do pesquisador.

Leminski é um escritor que, embora razoavelmente conhecido do público em geral, pelo menos daquele mais afeito à literatura, ainda não lograra um espaço no cânone literário brasileiro quando do lançamento da primeira edição deste livro – isso apesar de diversos estudiosos, com as mais variadas orientações teóricas, terem avaliado bastante favoravelmente a sua obra, como foram os casos de Leo Gilson Ribeiro, Antônio Risério, Régis Bonvicino, Boris Schnaidermann, Ivan da Costa, Haroldo de Campos, Leyla Perrone-Moyses e Carlos Ávila, apenas para citar em ordem cronológica alguns pioneiros, sem considerar a sua maior ou menor importância para os estudos leminskianos5. A fortuna crítica em torno de sua produção era ainda bastante pequena, embora sempre crescente, e, muitas vezes, restringia-se a rápidas citações em textos com outros interesses ou a estudos curtos, sem uma pretensão maior. Quando o nome de Leminski era lembrado, tanto dentro quanto fora dos meios acadêmicos, quase sempre era como poeta, num quase esquecimento de sua trajetória como prosador, embora se destinasse ao Catatau grande parte dos elogios que lhe eram dispensados. Nesses casos, como observou Régis Bonvicino (1996, p. 5), geralmente o que se recordava era aquele que ele chama de “criador melopaico”, de ligações com a MPB, e por essa faceta o escritor era menosprezado por uns e incensado por outros. Havia, assim, um campo virgem para quem pretendia estudá-lo, fosse como praticante privilegiado, embora irregular, do exercício poético, fosse como prosador inegavelmente criativo. Sem dúvida os seus escritos pediam uma avaliação mais demorada, tanto pelas evidentes qualidades artísticas de boa parte de sua obra, quanto pela projeção que o escritor teve num dado instante de nossa vida cultural – uma época marcada não só por tensões sociais e políticas, mas também estéticas.

Nas duas décadas entre a primeira edição deste livro e o momento presente, essa situação mudou bastante. Multiplicaram-se as pesquisas sobre a obra de Leminski – inclusive sobre o Catatau –, novas edições de seus livros vieram à lume, inéditos foram publicados. Este livro teve a felicidade de ser lembrado em vários estudos sobre o autor, não tanto por eventuais qualidades, mas talvez pelo pioneirismo. Estava há um bom tempo fora do mercado, com uns poucos exemplares à venda em algumas livrarias virtuais. A dissertação que lhe deu origem não se encontra em repositórios digitais e eu mesmo já não tinha os originais, perdidos em um disquete que parou de funcionar. Desse modo, procurado, vez por outra, por pesquisadores interessados, eu já não tinha como ajudá-los. Pensei em simplesmente tornar disponível uma cópia na internet, mas a lembrança do aniversário de vinte anos pesou. Assim, optei pela republicação, com algumas atualizações e correções. Foi grande a tentação de uma revisão mais profunda, mas decidi manter a estrutura geral e não discutir muito com aquele que eu era há duas décadas. Isso fica para outras oportunidades.

Não é intenção deste livro ler o Catatau de Leminski no contexto mais amplo do período em que esse livro revolucionário veio ao mundo. Todavia, é interessante, pelo menos, focalizá-lo no seu tempo, antes de iniciar o estudo propriamente dito, pois isso poderá ajudar a compreendê-lo melhor. O livro veio à luz em 1975, em plena ditadura militar, num momento em que o Brasil e o mundo atravessavam uma turbulência que o texto trouxe para a sua própria estrutura. Época de contracultura e de repressão, de grandes mudanças comportamentais, de explosão dos meios de comunicação de massas, de deriva entre as grandes causas do passado e a emergência de um novo tipo de individualismo. Como não podia deixar de ser, a verdadeira literatura dialogava com isso tudo, sem ser fruto mecânico do que acontecia. No meio que um mundo que se fragmentava, a prática literária desdobrava-se no Brasil, de modo peculiar, por vários caminhos que se cruzavam algumas vezes, outras adquiriam direções bastante divergentes.

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É nesse turbilhão de indefinições – dividido, apenas para citar algumas das parelhas que o tensionavam, entre o mergulho no ego e um novo tipo de salto participativo, entre a referência e a obra de arte como realidade autônoma regida por uma lei própria de constante autossuperação, entre o “capricho” e o “relaxo”, entre certos construtivismo e formalismo e uma estratégia poética mais sensorialista e intuitiva, entre o visual e o coloquial, entre o cerebralismo e o desbunde – que apareceu o Catatau, em diálogo aberto com todas as linhas de força que o cercavam, espécie de flash monstruoso de seu tempo, paródia e caixa de ressonância da época e, por extensão, de si mesmo. Dado à luz numa edição independente, como acontecia em grande parte com a literatura daqueles anos, pautou-se desde logo pelo exagero: dois mil exemplares, num momento e num país em que quase todas edições, principalmente as de vanguarda, inclusive as comerciais, eram, via de regra, bem menores; duzentas e treze páginas de uma prosa difícil, às vezes chata, num único parágrafo, oferecidas ao público de uma única vez, quando um de seus intertextos evidentes, Galáxia, levou treze anos se publicando, entre 1963 e 1976, e só veio a ganhar a forma de livro em 1984.

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É verdade que o livro articula-se como uma paródia ao pensamento cartesiano, ou seja, parece ter um objetivo claramente delineado. Contudo, isso não basta para conformá-lo como uma narrativa teleologicamente conduzida numa única direção. Os desvios, escorregões e possibilidades de leitura são muitos para tanto. Catatau não é uma obra totalmente orientada para determinado fim – ou, se foi escrita inicialmente dessa forma, revoltou-se e ganhou vida própria. O vigor da crítica anti-cartesiana é fruto mais da impossibilidade de uma abordagem lógica tradicional, despida de imaginação, dar conta da verbalização alucinante da narrativa do que de uma causalidade final do texto. Uma interpretação que, sem se aproximar minimamente da tessitura verbal do romance ideia, atenha-se apenas a esse anticartesianismo – ou a alguma outra questão, como o fracasso de uma racionalidade europeia explicar as loucuras tropicais – é, assim, necessariamente, reducionista.

Contribui para a dificuldade de leitura do livro o aspecto fragmentário. Nada se pretende inteiro nele, talvez em um reconheci- mento da impossibilidade de dar conta de qualquer inteireza. As ideias de Descartes são quebradas, estilhaçadas e misturam-se a citações oriundas dos mais diferentes universos, reunindo história, literatura e filosofia num baile carnavalesco. O que é pior (ou melhor): os fragmentos reaparecem o tempo todo, proteicamente, sempre com uma cara nova, às vezes quase irreconhecíveis, numa sorte de estribilho que reafirma constantemente a diferença na semelhança. Aliás, quase tudo no texto é fragmentário. Cartésio, o alter ego catatauesco do filósofo francês, parece reconhecer isso. “Miscelâmina: Renatus Esquartejado” (Leminski, 1989, p. 197) diz ele, em certo trecho, definindo o Brasil/texto ao mesmo tempo como “miscelânea” e “lâmina” a despedaçá-lo.

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O romance-ideia avulta, desse modo, na minha leitura, como um espaço em que, sob o pretexto de mostrar o confronto entre uma determinada racionalidade europeia e o Brasil, confluem questões a respeito da linguagem e da arte, algumas de caráter mais amplo, como a relação entre palavra e coisa, outras mais localizadas, como o papel da transgressão no ofício de um escritor no fim do século XX. Inútil é, porém, buscar muitos trechos em que o livro explicitamente fale sobre essas questões: ele optou por mostrá-las em sua própria carne.

Nesse percurso, o Brasil que se encarna no romance, em um de seus muitos níveis de leitura possíveis, é a própria narrativa que se oferece aos olhos do leitor. A polivalência do vocábulo “catatau” transfere-se para o texto, que é, ao mesmo tempo, uma de suas personagens – Occam, conjunto de todas as personagens –, o lugar em que se passa a ação e um signo da própria linguagem em que vai buscar seu corpo.

O romance, paródia de muitos textos, reconhece o próprio fracasso em localizar a sua ação nos jardins de Nassau ou na consciência de Cartésio e a traz para o seu próprio ser-texto. Nesse jogo, transforma se num conjunto de bonecas russas ou de caixas de engodo que sempre trazem outras caixas em seu interior. A linguagem que se representa nela mesma desdobra-se em vários planos móveis. Diversas questões vão surgindo, como desejo ou impossibilidade, esfarelando-se logo em seguida, como que a zombar do leitor: a igualdade entre o nome e o seu objeto, a presentificação do mundo na palavra, a materialidade dos signos, as falsas fronteiras da verdade…

O Catatau volta-se contra Descartes porque sua linguagem é eminentemente não cartesiana – e não o contrário. Não se trata aqui de uma relação causal, mas de uma impossibilidade de relação. Dizer que tudo no livro se instaura a partir da linguagem não é uma obviedade, como se poderia deduzir do fato de ser ele um texto, mas é a consta tação de que, no mundo que ele encena, nada pode ser apreendido se não for através dela, apesar do fracasso das palavras em dar conta das coisas. Digo aqui “através” e não “por meio de”. O mundo do livro é linguagem, transparência e obstáculo, máscara e lente. Nele, as aparências aparecem, o que já é alguma coisa, como disse Leminski, visto que não há como ir além. Aparências: signos de signos de signos – e as palavras não podem almejar mais do que isso. Mas as próprias palavras são coisas e as coisas são signos também, de modo que se cria uma espécie de círculo virtuoso em cujos limites gira o texto do romance-ideia

Se a linguagem surge nele como um signo entre signos, a relação que se pode estabelecer entre ela e o mundo é difícil, mas alumbrante. Linguagem-coisa entre coisas que conversam, poesia, eis o chão do livro.

Como o Catatau se encena como linguagem, torna-se lícito supor metalinguagem em tudo o que ele mostra. Mas ele é um texto que, apesar de ciente de seu fracasso em apreender o mundo, não quer se fechar em uma autorreferência egoísta, num solipsismo próximo daquele que tomou o espírito cartesiano imediatamente antes do cogito, e mergulha de cabeça na vida de seu tempo. As palavras que têm saudade de sua transparência, da época impossível em que eram iguais aos seus objetos e do tempo mítico em que podiam criar o mundo, apresentam-se como objetos plenos de uma realidade própria, mas sem abrir mão da tentativa de buscar o que esteja além delas. Equilibram-se, assim, entre uma espécie de dificuldade de saltar para fora e o desejo de fazê-lo, movimento barroco que, no entanto, não se enche de angústia, mas se carrega da leveza de quem se deixa levar por uma música sempre renovada, por uma onda que não se sabe onde vai morrer.

No jogo do texto entre a referência e o mergulho em si próprio, representa importante papel o seu aspecto paródico. Nesse sentido, lembro aqui o que já disse na introdução deste livro sobre o fato de a paródia apontar o dedo para a natureza dúplice de qualquer obra de arte e, no limite, de qualquer signo. No caso específico do Catatau, esse fato é reforçado pela própria escolha dos objetos parodiados: um texto filosófico que tenta estabelecer uma relação entre pensamento e mundo, passando, de certa forma, por cima da linguagem; um discurso que se articulou historicamente na tentativa de descrever uma realidade indizível; last but not least, uma certa linguagem vanguardista que se constituiu num quase-gênero, ao colocar em evidência os aspectos mais imanentes do texto enquanto um mundo extremamente particular. A paródia é mais agressiva no primeiro caso e assume um tom inequívoco de homenagem nos demais, mas o movimento crítico não deixa de estar presente em todos.

Se a realidade não pode ser atingida conceitualmente ou magicamente pelo verbo, o que parece restar, por outro lado, é a sua apreensão pelos sentidos. As próprias palavras, entes do mundo, situadas no tempo e no espaço, não podem ser dissociadas de sua materialidade e alcançam-nos fisicamente, como signos visuais ou sonoros que destacam as suas próprias qualidades. Nesse aspecto, tem-se a impressão de que o livro de Leminski almeja fazer-se num local em que elas possam ser marcadas por sua materialidade, ao mesmo tempo que atinjam uma dimensão semântica que transcenda os objetos particulares, sem rotulá-los e congelá-los num conceito atemporal, não-fenomênico e negador dessa multiplicidade que se manifesta em cada ente e que, no livro, parece encenada pelas constantes mutações.

Na base disso tudo, há uma associação heterodoxa de uma visão barroca e mítica do universo, da filosofia pré-socrática e de zen-budismo. Esse último traz especialmente uma concepção anti-intelectualista do mundo, voltada, segundo Leminski, para aquilo que Peirce chamou de primeiridade. Contudo, se o zen é basicamente uma experiência transverbal, que busca uma pureza antes das palavras, um soco no rosto que esteja além da sensação física do soco, como conciliar isso com um livro que não só é feito de palavras, mas procura marcar a sua fisicalidade? Essa é uma contradição no meio de várias outras, num texto que justamente não procura fugir delas, mas as transforma em sua própria matéria. E é justamente isso que o romance-ideia acaba sendo: um campo de contradições, espécie de koan a tentar trazer nas palavras algo que está além delas, a transformá-las num golpe que esteja além do golpe, uma pancada tão forte que possa iluminar.

Referências

LEMINSKI, Paulo. Catatau: um romance-idéia. 2. ed. Porto Alegre, Sulina, 1989.

LEMINSKI, Paulo. Uma carta uma brasa através – cartas a Régis Bonvicino-1976-1981. São Paulo, Iluminuras, 1992.

BONVICINO, Régis. O retorno de Leminski. Folha de S. Paulo. Caderno Mais! 18/8/96, 1996.