A modernidade produzida pelo capitalismo contemporâneo pauta-se pelo princípio do desempenho, do rendimento e das performances do trabalhador em seu próprio trabalho.
É possível encontrar seu precursor em Antístenes, um dos frequentadores dos círculos socráticos junto a Platão. Nele encontra-se a noção moderna de que, na moral, o bem é, por natureza, de difícil acesso, e que o esforço é a vitória sobre si como critério deste mesmo bem moral.
Assim Antístenes anotou: “o sofrimento é um bem”. Mais que isso, em Antístenes encontra-se a primeira descrição da figura do trabalhador, que ele mesmo encarna, pois acrescenta à valorização moral do sofrimento a exaltação do trabalho desafiador de limites. De onde sua referência a Hércules, exemplar figura do “operário fabuloso” e seus trabalhos “sobre-humanos”. Com efeito, uma de suas obras se intitula Hércules maior ou Sobre a força. Lembre-se aqui que a personagem de Hércules teve em seu tempo, como no presente, um caráter indispensável.
Assim Carlyle, um dos profetas da religião do trabalho: “Tu deves, como Hércules, te preencher com ocupações (affairer) e penar bastante” (cf. Wolf Lepenies). Moralista satisfeito, Antístenes não tem nenhum senso dos cultos religiosos que, aliás, ele menospreza com argumentos “iluministas” do tipo “racionalista”. É também inteiramente fechado às Musas – a poesia só o interessa se através dela se expuserem ensinamentos morais; a capacidade de responder a Eros é-lhe totalmente estranha. Como Clemente de Alexandria, ele poderia dizer: “o amor é um vício da natureza”, “Afrodite, eu a cravaria de flechas, se eu a pegasse”.
Quanto à imortalidade, ela não passa de uma palavra vazia para este realista sem ilusões, a única coisa que conta no mundo é uma “vida honesta e correta”, vivendo “na piedade reverencial e na justiça”. Estes traços reunidos constroem a figura do trabalhador. Seu ideal contemporâneo é aquele apto a alcançar e realizar “metas” e, para isso, deve estar 24 horas por dia e, em período integral, trabalhando, o que é viabilizado pelas novas tecnologias, dos celulares à internet transportável.
No capitalismo contemporâneo “domina o cada um por si […]. A obsessão de eliminar o concorrente na busca do lucro se duplica na vontade também ela aguerrida de eliminá-lo na conquista de postos. A cultura do ódio promove a eliminação em lugar da cooperação. As solidariedades de classe se desmancham em proveito da ferocidade favorecedora dos melhores” [1]. Trata-se de um ambiente de trabalho policiado por uma administração que dá conselhos, mas conselhos sem experiência e sem ligação nenhuma com a história do próprio trabalhador. Recusa-se, pois, a temporalidade da experiência, do conhecimento, da felicidade. A temporalidade é institucionalmente organizada e este é “o atributo mais eminente da dominação” [2], pois ela corresponde a um encolhimento do “espaço de experiências” na vida social e de liberdade, liberdade de acesso ao passado e ao futuro como construção de uma subjetividade democrática, pois esta é construção de uma história e de uma identidade comuns, na medida em que tal identidade designa um espaço de objetivos de significações partilhadas.
Direitos sociais como direitos críticos
A temporalidade aderida à aceleração do presente – o presenteísmo – apodera-se de todos os espaços democráticos, a começar da educação, que deixa de ser “educação para a liberdade”, para direitos e deveres correspondentes, tornando-se “educação para a adaptação”, no proliferar de direitos sem a Lei pan-inclusiva que deveria presidi-los. Seus efeitos na educação se constituem no desaparecimento da noção de “cultura geral” pela de “cultura comum”, cuja finalidade precípua é a de “preparar os jovens para entrar no mundo tal como ele é” [3]. Essa adesão ao presente, um presente plano, caso permita algum sonho, é – diga-se – paradoxal, sonha tão somente com o status quo, deseja que nada de novo venha a abrir o tempo histórico e o futuro. O tempo, na contemporaneidade, é fatalizado pela ordem das urgências que significa uma oscilação na razão instrumental, o culto dos meios e o esquecimento dos fins. Ele é o reino das revoluções tecnológicas do progresso.
A modernidade ocidental nasce sob o signo da mudança incessante. Seu protótipo foi o Iluminismo filosófico e científico e seu desejo de claridade. Com a metáfora da luz o Iluminismo [4], no século XVIII europeu, inaugura a crença no progresso científico, político, social, moral e econômico contra as trevas do obscurantismo. O Iluminismo filosófico na política funda a noção de espaço público, aquele que é comum a todos e não propriedade de poucos, e acessível a todos e não privilégio de alguns. Assim, igualdade, liberdade, fraternidade constituíram, até há pouco, o ideário mais nobre do humanismo moderno. Foi esse imaginário coletivo que deu conformidade ao homem-cidadão cuja dignidade esteve resguardada pelo direito e pela Lei. Mesmo que esses ideais tenham se realizado apenas para uma classe da sociedade – no caso a burguesia ascendente no poder –, tais valores, não obstante, permaneceram como ideias reguladoras, como exigência de vigorar para todos. Pois “se nem todos os homens são felizes, todos têm direito a sê-lo” (Kant).
A partir da Revolução Francesa, com o estabelecimento das funções públicas, procurou-se garantir a continuidade das políticas de alcance social, independentemente da alternância dos governantes no poder, de suas vontades particulares e da prática do favor, características do Antigo Regime. Uma sociedade republicana e emancipada – da miséria e do medo – encontra-se em estado de maioridade, distante de qualquer tutela, pois todos, ricos e pobres, são igualmente protegidos pela Lei. Modernidade, nestes termos, veio a significar direito a ser atendido prontamente e com respeito, na saúde, a ler pensadores clássicos no original grego ou latino, porque ricos e pobres dividiam os mesmos bancos escolares. Idosos, portadores de deficiências – o que hoje se denomina improdutivos – não mais estavam excluídos do espaço social.
Nas condições contemporâneas de reprodução e acréscimo do capital, os direitos sociais, que constituíam os elementos críticos do capitalismo, vêm a ser obstáculos no e ao capitalismo, agora, financeirizado. De onde as sucessivas flexibilizações dos direitos sociais. Lembre-se que diferem as temporalidades do mercado e do Estado, uma vez que o mercado opera no curto prazo e os serviços públicos, na duração e no tempo longo – como a saúde, a educação, os transportes, a aposentadoria etc. Assim, a lógica do mercado e da rentabilidade em curto prazo passa a abranger todas as dimensões do tempo. As privatizações correspondem, desse modo, à transferência, do público ao privado, da garantia de futuro de seus cidadãos: “O Estado cede, pois, sua capacidade de garantir o futuro para o Mercado” […]. Duas lógicas temporais estão confrontadas: por um lado, a dos Estados, garantidores da lentidão e do durável, de outro, a dos Mercados, ávidos de velocidade e rendimento em curto prazo” [5].
Publicidade na política e na mídia
A tendência à dissolução dos Estados nacionais pelo capital transnacional privatizante (cujos critérios de autoridade correspondem aos interesses dos conglomerados no Poder) e a determinação de todas as esferas da vida pelas leis do mercado apagam a separação entre o público e o privado, transformam o espaço público em imagem pública e o cidadão em cidadão-consumidor, como se observa no advento do marketing político. Com efeito, as atuais campanhas eleitorais inscrevem-se nas mudanças da esfera pública e no advento de práticas persuasivas ligadas à “peoplelização”, segundo o modelo da imprensa tabloide inglesa das “celebridades” e do colunismo social. Dão-se no adotar técnicas do show business, os políticos imitando a vida de stars, sob a hegemonia das mídias de massa, da publicidade,do talk show, o conjunto atendendo à lógica comercial e recreativa.
Até há pouco se diferenciavam propaganda e publicidade. No século XVIII europeu, a propaganda de ideias correspondeu à constituição de um espaço público nascido dos salões literários, a leitura consistindo no meio por excelência nobre da propagação dos valores de aprimoramento da convivência, da confiança, da solidariedade e da philia social. A propaganda moderna fazia parte do ideário iluminista de combate a todos os tipos de preconceito e de obscurantismo, na política, na moral, na ciência, nas artes. O espaço público foi a contrapartida da vida na corte, esta com seu culto da aparência e da imagem pública do valor de alguém.
Com efeito, ser escolhido pelo Rei Sol, na França de Luís XIV, era o apogeu da vida pública, a partir do momento em que suas formas alternativas, ligadas à cidade e ao civismo, desapareceram, com a derrota dos nobres que se recusavam a abandonar Paris e se confinar na corte. Vencida a Fronda, a capital se transfere de Paris para Versalhes. A vida pública se reduz à vida em público com sua subsequente teatralização. A corte, sabe-se, é o lugar da vaidade e da dissimulação porque é preciso conservar, a todo custo, o crédito, o favor recebido, a fortuna; razão pela qual ela foi o laboratório dos moralistas, esses analistas das paixões humanas.
No século XVIII, o duque de Nivernais escreve um breve tratado para uso dos cortesãos caídos em desgraça, quando perdem honras e fortuna. Na esfera pública, ao contrário, viria a propagar-se o ideal político democratizante, fundado no debate público, na presença dos protagonistas ou por escrito, o que supunha o fortalecimento do âmbito da argumentação e da informação. Já a publicidade visa a tornar visíveis propriedades reais ou imaginárias de um produto segundo a lógica da compra e da venda para fins de reposição, acúmulo e acréscimo de um capital investido e, no caso, o êxito eleitoral.
A política “people” associa propaganda e publicidade, advindo o marketing político, dirigido ao conjunto dos consumidores de mídias, isto é, o corpo de eleitores. “Revolução conservadora”, uma vez que se assiste ao retorno do privado, da intimidade pessoal e da personalização do poder. De onde o tratamento cada vez mais agressivo nas campanhas eleitorais. A mise-en-scène promocional da intimidade tem por corolário a imprensa sensacionalista e vedetizante, que a expõe e vive de escândalos, como denúncias de várias ordens e a curiosidade com respeito a preferências sexuais ou alimentares das celebridades. Os acontecimentos tomam a fórmula dos faits-divers. Não são estranhos à forma pós-moderna da política traços populistas, pautados pelo fetiche das pesquisas de opinião; tais pesquisas determinam a construção de uma imagem pública, destinada a se tornar objeto de ódio ou amor. A personalização da política contradiz a concepção parlamentar das instituições republicanas. Por isso, o debate nas eleições se guia pela lógica da conquista a qualquer preço dos cargos eletivos, apelando para um sistema de preconceitos, suscitando o exercício sem escrúpulos de ressentimentos, fruto de uma “rivalidade mimética” com aquele que se ataca. O cidadão, convertido em telespectador e “comentarista” político, confirma as carências e insuficiências do jogo político tradicional. Assim, também a sucessão de escândalos só pode ser mantida pelos procedimentos próprios à média, capaz de reunir, em um todo “coerente”, um conjunto de elementos desordenados de modo a impedir a reflexão, pois não há como distinguir o que é significativo e o que é insignificante nos noticiários. Cria-se um universo povoado de heróis e anti-heróis, de vítimas e de seus salvadores.
O marketing político se desenvolve no campo ideológico da “autenticidade” e da glorificação do homem comum. Alain Ehrenberg indica as consequências: a autenticidade que se transforma em “culto da transparência”, isto é, da aparência, os políticos treinados como profissionais da comunicação e das “promoções do dia”. Neste sentido, em Rua de mão única, Walter Benjamin escreveu: “O homem pode, se for o caso, colocar ostensivamente sua vida privada em contradição com as máximas que ele defende implacavelmente na vida pública e considera, secretamente, sem a menor dor de consciência, sua própria conduta como a prova mais constrangedora da autoridade dos princípios que ele exibe”.
O recurso à injúria com a finalidade de votos é prática herdada do jacobinismo e amplamente evocada pelas revoluções que nela se inspiraram, tendo por base a suposta superioridade moral de seus enunciadores com respeito a seus opositores: “corruptos” perseguidos por Robespierre e Saint-Just (designação que incluía os nobres, os magistrados, os “açambarcadores”); os “renegados” de Lênin (a social-democracia parlamentar de Kautsky); os “degenerados” de Hitler (judeus, ciganos e povos “inferiores”). A compreensão da política na oposição amigo-inimigo adota a prática empresarial da eliminação do concorrente. A concorrência pode ser que melhore as mercadorias, mas certamente piora os homens. Uma cidade feliz, ao contrário, é aquela que assegura o máximo de sobrevivência, segurança, justiça, liberdade e amizade para o conjunto dos cidadãos. O espaço público é o que é comum a todos e acessível a todos.
A Via Láctea secularizada
Além disso, “politizar” todas as dimensões da vida, incluindo a intimidade, é a expressão da despolitização total, pois são mobilizados aspectos protofascistas e autoritários de cada um, como bem o revelam as análises de Hannah Arendt sobre o Totalitarismo. O teor dos discursos dos candidatos confirma a supressão do debate de ideias pela política reduzida à “prestação de serviços”. Que se pense na agenda midiática despolitizadora: cotas compensatórias que substituem o enfrentamento da exclusão econômica e cultural da maioria, quando deveriam ser apenas transitórias; indenizações para as vítimas do terrorismo de Estado e o silêncio sobre suas causas, com a consequente manutenção da prática da tortura no país. Também os problemas do cotidiano não são considerados políticos para a agenda eleitoral, os que exigiriam questionar as reordenações do capitalismo contemporâneo baseado no descartável e seus resultados desagregadores na vida urbana, dos congestionamentos à desconsideração de atitudes elementares de convivência, como dizer-se “bom-dia” e “com licença”, com o que começa, segundo Adorno, toda civilização.
O mercado, já se disse, não reconhece direitos. Em termos, porque vale a “lei do mais forte”. Semelhante ao descrito por Marx nas Formações econômicas pré-capitalistas, quando massas inteiras de servos da gleba foram arrancados de seu modo de vida, suas crenças e tradições e, violentamente lançados na selva das cidades, vindo a constituir, na Inglaterra, o proletariado moderno, o Estado mínimo para garantir direitos e máximo na arrecadação econômica, com a privatização do que é público e a associação do público ao privado com a flexibilização das leis trabalhistas, traz de volta o desemprego crescente, a miséria material e espiritual, de que o tempo é a melhor expressão. Assim, em certos países será necessário mais tempo de trabalho do que em outros para a aquisição de um mesmo bem. O tempo de trabalho oferece a medida exata da geografia das riquezas e da pobreza: ”Será preciso 193 minutos de trabalho – ou 1h30 de trabalho – para um habitante de Nairóbi e 1h17 em Caracas para comprar um Big Mac, enquanto apenas 9 minutos para um cidadão de Chicago, Houston ou Tóquio, 21 em Paris ou Bruxelas” [6].
A modernidade capitalista, do industrialismo à microeletrônica, supõe a plena luz. Dessa forma, com a substituição dos lampiões a gás pela iluminação elétrica em fins do século XIX “a Via Láctea foi secularizada” [7]. Estas palavras não se referem apenas ao desencantamento psíquico e da cultura, mas também ao significado socioeconômico desta realização: a atividade sem trégua do modo de produção capitalista tornou-a desmedida, não tolerando o tempo noturno – de passividade, repouso e contemplação. A economia, em sua forma atual de acumulação (cuja infraestrutura são as nanotecnologias e a microeletrônica), exige a extensão e a intensificação da atividade até os últimos limites físicos e biológicos do indivíduo. Razão pela qual, com a eletrificação, o dia iluminado terá 24 horas. A organização institucional do tempo é a figura mais eminente da alienação e da dominação do homem pelo mercado mundializado, pois cada um perde o sentido e o mestrado do tempo e de sua vida. Consciente da heteronomia do tempo de trabalho, o Maio de 1968 francês eternizou nos muros da cidade a inscrição: “Não mude de emprego, mude o emprego de sua vida”. Viver é mais que sobreviver. Limitados à sobrevivência, desfazem-se máximas morais. Kant escreveu: “Todas as coisas que podem ser comparadas podem ser trocadas e têm um preço; aquelas que não podem ser comparadas não podem ser trocadas, não têm preço, mas dignidade”. O mercado, ao contrário, só reconhece os custos; quanto custa um idoso, uma criança, um doente. Tal redução do humano ao “quanto custa” só pode ocorrer no empobrecimento espiritual das democracias, cujo vazio passa a ser preenchido pela hierarquia competidora da burocracia empresarial, de maneira que “o dirigente deseja ser reconhecido como um ganhador e cujo maior medo é ser etiquetado perdedor”. Não tem nenhuma lealdade com aqueles com quem trabalha. É competitivo como o mercado e, como ele, exclui aquele que não gera o lucro a qualquer preço. No século XVI, La Boétie escrevia: “Não pode haver amizade onde há deslealdade, desconfiança, injustiça. Entre os maus, quando se reúnem, é um complô, não é companhia; eles não se entretêm, se entretemem; não são amigos, mas, cúmplices”.
O confisco da experiência
A ética protestante foi abandonada em nome do espírito capitalista segundo a fórmula de Benjamin Franklin, para quem “tempo é dinheiro”. Se tempo é dinheiro, ele não é busca de sentido e subjetividade, mas quantidade e heteronomia imposta pela temporalidade do capitalismo tardio – o que só aprofunda a crise do sentido da atividade: a desagregação do sentido da vida em comum arrisca subsumir o homem nesta alienação particular que Hannah Arendt nomeava “acosmismo”, o sentir-se estranho no mundo, o sentimento do não pertencimento, o de ser supérfluo. Deve-se, aqui, diferenciar o capitalismo de produção do capitalismo de consumo. No primeiro, o “homem só se sentia em casa quando fora do trabalho e, quando no trabalho, estava fora de si” [8]. Na sociedade do consumo, quando o homem está fora do trabalho, tampouco se encontra junto a si – o que resulta em uma lógica do desengajamento em relação a um mundo compartilhado e com respeito também a si mesmo, com a dificuldade de criação de laços duradouros, com a obsolescência de valores como respeito, solidariedade, responsabilidade e fidelidade. O eu procura eliminar todos os laços e sentimentos, reduzidos, agora, a valor de troca, e o mercado conduz ao consumo permanente, induzindo à pressa, constrangendo à rapidez e à aceleração, acentuando a superficialidade nos vínculos (na medida em que os sentimentos exigem a duração para se desenvolverem), produzindo a “pobreza interior”.
No século XIX, o aumento tanto absoluto quanto relativo do tempo de trabalho era ainda experimentado como uma espécie de tortura: “Durante um longo período, as pessoas tentaram uma resistência desesperada contra o trabalho noturno ligado à industrialização. Trabalhar antes do alvorecer ou depois do pôr do sol era considerado imoral” [9]. À maneira dos mercados financeiros, o homem não deve dormir nunca e, assim, se institui o stress como modo de vida, seja para aqueles ligados a um trabalho, seja para a massa crescente de trabalhadores precários e desempregados. Predomina aqui uma percepção do tempo na qual não mais se tem tempo – sentimento este paradoxalmente presente, também, entre os desempregados [10]. O capitalismo ultraliberal confisca o “espaço da experiência” e o “horizonte de expectativas”, resumindo-se a um “presente perpétuo” [11].
A aceleração do tempo do mercado mundial entra em conflito com a temporalidade política das democracias que, desprovidas da experiência do passado e do futuro, não mais possuem a possibilidade de construção de uma memória representável, isto é, contestável – o que põe em questão o próprio exercício democrático: a contemporaneidade transforma a capacidade humana de duvidar em simples falta de convicção. Mas não se engajar significa “não se empenhar na criação de valores espirituais” [12]. A pulsão antigenealógica não reconhece nenhuma dívida simbólica com o passado, acredita-se que tudo que se é deve-se a si mesmo por uma espécie de autoengendramento. Sem laços estáveis, produz-se um déficit simbólico no indivíduo e na sociedade, uma vez que valores dependem de um espaço comum de experiências compartilhadas [13].
A mensuração abstrata do tempo, o trabalho por metas voltadas para performances determina o decréscimo das faculdades fantasmáticas dos indivíduos, submetidos às leis do mercado, isto é, à insegurança e ao medo: “Os quadros [de uma empresa] como os funcionários têm o sentimento de não controlar seu ambiente de trabalho e seu futuro. A ameaça consiste em não mais se saber em que critérios se baseiam sanções e recompensas. O êxito ou o fracasso não sendo mais objetiváveis a partir de elementos concretos, a incerteza domina o medo de ser censurado e de ser visado. […]. O contexto suscita uma pressão contínua, um sentimento de jamais fazer o suficiente, uma angústia de não se estar à altura do que a empresa exige” [14]. Além disso, o trabalhador está permanentemente sob o controle das corporações nas quais eles se sentem “a mais”, “custando muito caro”. Perda da identidade profissional e da autoestima constituem uma situação traumática, uma vez que não apenas se perde um posto de trabalho para, talvez, encontrar um outro como – e antes de tudo – toda uma vida pode ser desfeita: “Advêm sentimentos de desvalorização de si, ruptura de redes de solidariedade, perda de elementos constitutivos da identidade profissional, culpabilidade, vergonha, introversão, dilaceramento da comunidade de trabalho que sustentava a existência […]. A perda de confiança no futuro – […] que se anuncia incompreensível – produz uma profunda ansiedade a que respondem a angústia e o medo do abandono. Angústias arcaicas […] que podem ter efeitos devastadores” [15].
Modernização significa, assim, a passagem de um mundo com regras conhecidas a um mundo instável e incerto: “A temporalidade contemporânea, assim constituída, produz – não o tédio, mas monotonia. Se o tédio (l´ennui), como magistralmente o tematizou Baudelaire em poesia e prosa, é a temporalidade do passado que se repete continuamente no presente – como a moda –, isso não significava perda do futuro. Ao contrário, o spleenático vislumbra os paraísos artificiais. Por isso Baudelaire escreve Spleen e ideal, o spleen como ideal para se contrapor à lógica da produção de mercadorias, que é a da multiplicação e da repetição, em princípio ilimitada, do mesmo objeto. O dândi, por seu hábito de “mudar de rosto” e a cada dia surpreender com vestimentas excêntricas, é um ser dotado de singularidade em meio à multidão anônima. O olhar do dândi é capaz de reconhecer no novo o antigo e no antigo o novo, conferindo ao repetitivo a raridade do objeto único, captando na repetição o surpreendente e o extraordinário. Como a maquiagem. O pó de arroz é como a mica do mármore que confere à mulher moderna a aura de uma estátua grega.
Tempo patológico: inflação das possibilidades de significado
Já a monotonia é um tempo estagnado, como se a eternidade do céu se plasmasse na Terra. É uma temporalidade que se exprime na ansiedade de “matar o tempo”. Tempo patológico, seu vazio de significado tem o stress como ideal porque na monotonia o tempo não passa pois está alienado na perda do sentido das ações. Ele promete a felicidade pelo consumo de bens materiais, mas permanentemente frustra essa esperança, pois não é possível, em regime de acúmulo, reposição e acréscimo do capital, democratizar o excedente e o supérfluo. Tempo que se comprime no desejo de consumo ilimitado, por um lado, determina a exaustão, de outro. Diferem a exaustão e o cansaço. Se neste ainda é possível pensar e imaginar, na exaustão não há possibilidade de exercício do pensamento, apenas hiperatividade vazia e também destrutiva. Abulia e sofreguidão constituem dois aspectos do tempo presente, embora aparentemente diversos: “as duas atitudes possuem um traço comum: a reificação de si” [16], apreensão de si como objeto sem valor e sem sentido. Não podendo escolher nem deliberar acerca do trabalho ou dos usos que poderia fazer do tempo, os homens não são mais agentes, mas “agidos”: “A atividade tornou-se uma variante da passividade e, mesmo onde as pessoas se cansam até seu limite […], ela tomou a forma de uma atividade – mas para nada – isto é, uma inatividade” [17]. Ou melhor: vive-se, hoje, uma inflação das possibilidades de significados e, portanto, a impossibilidade em reconhecê-los, tanto em nosso mundo interno quanto externo. Nas palavras de Leder: “O imaginário da sociedade contemporânea encontra-se condicionado […] por uma extrema saturação. O imaginário caracteriza-se por uma abundância potencial que se apresenta ao alcance da mão mas que se encontra, no entanto, inacessível […]. É precisamente a tensão entre a intuição da presença da satisfação ao alcance da mão, e a realidade de seu afastamento e inacessibilidade, o que determina a situação da consciência contemporânea […]. Um exemplo pode ser encontrado na sociedade polonesa, na dicotomia entre sociedade da penúria material e uma sociedade de consumo que ocorreu há quinze anos e transformou totalmente o imaginário social. A mudança da valorização e principalmente da saturação do campo simbólico foi muito mais acelerada que a melhora da qualidade de vida. Paradoxalmente, nos anos 60, depois da desestalinização, quando praticamente a totalidade dos poloneses vivia em profunda penúria, mas ao mesmo tempo seu imaginário estava relativamente pouco saturado e, além do mais, estruturado pelo vetor do progresso, a vivência da falta era fraca e cada aquisição material tornava-se um símbolo valorizado positivamente. Nos anos 90, a transformação econômica melhorou muito a situação material da maioria da população mas, ao mesmo tempo, forçou a integração do campo simbólico dos poloneses no espaço da civilização global. O sentimento de falta e de frustração tornou-se generalizado em todas as camadas da sociedade” [18].
Encontra-se aqui o mal-estar contemporâneo, que se expressa em um sentimento de monotonia ou “tédio crônico”, monotonia que conduz a um desinvestimento em valores. Tudo isto se passa em uma temporalidade monótona, específica de uma sociedade organizada, também, de maneira específica – e que é uma desorganização da consciência social pelo sentimento de desvalorização de si e de humilhação: “a privação específica de si, a questão do sentimento mais do que o da consciência da humilhação, do não reconhecimento de si pelo outro, encontra-se no cerne da humilhação nas sociedades contemporâneas” [19]. Na vida política contemporânea, “ser é ser percebido”, fórmula narcisista, regressiva e onipotente de ocupação do espaço público, a exemplo das cerimônias de destruição de que são protagonistas os chamados “amok”, que, periodicamente, atacam escolas, assassinando colegas e professores e, depois, se suicidam em uma cena preparada e cenarizada para a internet no YouTube, gesto de ressentimento do assassinato em série. A lógica do espetáculo corresponde à do consumo e à substituição permanente de mercadorias, quando nenhuma mercadoria preenche a carência que ela suscita. Situação tanto mais humilhante quanto o desejo é movido pela “inveja do tênis”, inveja causada pelo sentimento não do justo, mas do injusto, de desigualdade de vantagens e distinções, quanto mais cada um é chamado a consumir e quanto menos poderá fazê-lo.
Desprezo dos dominantes, por um lado, humilhação dos excluídos do luxo e da abundância, de outro, resultam em apatia e hiperatividade – ambos sintomas de excessos e frustração. Este tempo patológico é preenchido por esportes radicais, obesidade mórbida, anorexia, bulimia, terrorismos e guerras contemporâneos. Esta agitação permanente é a expressão do empobrecimento psíquico e da perda de qualquer sentido da vida – de onde a “desvalorização de todos os valores”. Um mundo no qual só conta a lei do valor, não é o mundo humano, mas o do Capital. Sociedade sem espaço para a fraternidade e para a amizade é também sem compaixão. Esta é uma “tristeza ‘mimética’ pela qual desejamos o fim do sofrimento deste outro nós-mesmos”. Horkheimer anotou, quando ainda existia o socialismo do Leste: ”Os estudantes fugidos do Leste, nos primeiros meses depois de sua chegada à Alemanha (Federal), são felizes porque há mais liberdade, mas logo se tornam melancólicos porque não existe amizade alguma”. Na medida em que uma sociedade perde o sentido da fraternidade, ela se restringe a um projeto pragmático de adaptação ao status quo do consumo pelo consumo, do crescimento econômico pelo crescimento, do progresso pelo progresso. Sociedade sem amizade e sem compaixão “não merece o nome de cidade, mas o de solidão”, como escreveu Spinoza, em outro contexto, no século XVII.
Esta é uma versão retrabalhada do texto “O mal-estar na contemporaneidade: performance e tempo”, de 2008.
Notas
- Vincent de Gaulejac, La Société malade de la gestion. Paris: Seuil, 2005, p. 210.
- Elias Canetti, Masse et puissance. Trad. R. Rovini. Paris: s.ed., 1966, p. 422.
- Cf. M. Dufet e M. Duru-Bellat, L´hypocrisie soclaire. Pour un college enfin démocratique?. Paris: Seuil, 2000, p. 178.
- Lembre-se de que o radical de Aufklärung é klar, Enlightenment é light, Lumières, Ilustración ou Esclarecimento.
- Javier Santiso, “Leunteur politique et vitesse économique”, in Paul Zawadiski (org.), Malaise dans la temporalité. Paris: Publications de la Sorbonne,2005, pp. 124 e 133.
- Ibidem, p. 139.
- Cf. Walter Benjamin, “Arquivo J”, in Le Livre des Passages. Paris: Cerf, 1980.
- Cf. Marx, Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. São Paulo: Martin Claret, 2001.
- Cf. Robert Kurz, in Avis aux naufragés. Paris: Lignes/Manifestes, 2005, p. 42. Vale lembrar que durante a Idade Média, quando os artesãos deviam, excepcionalmente, trabalhar à noite, era preciso alimentá-los e remunerá-los principescamente. Foi proeza docapitalismo transformar uma modalidade de tortura – a da alienação do tempo – em norma de toda atividade.
- [10] Cf. Noëlle Bürge, Minima sociaux et conditions salariales. Paris: Fayard, 2000.
- Que se considerem os mais recentes conflitos na França, em que adolescentes, em sua maioria com ascendência árabe e africana, puseram a nu, em um surto incendiário, a perda desse horizonte de expectativas. Excluídos potenciais e também efetivos do mundo do trabalho, não obstante compulsório na organização da vida em função do capital, chamaram a atenção para o sentimento de humilhação decorrente do tratamento que lhes é reservado como cidadãos franceses, mas de “segunda classe”.
- Cf. Miguel Abensour, “Posfácio” a Quelques réflexions sur la philosophie de l´hitlérisme, de Emmanuel Levinas. Paris: Rivages, 1997.
- É interessante pensar nos ensaios de Walter Benjamin no livro supracitado, “O narrador” e “Experiência e pobreza”, nos quais o filósofo reflete sobre o mundo moderno no qual não é mais possível dar ou ouvir conselhos, onde não pode se desenvolver uma filosofia prática como aquela contida nas narrativas tradicionais, com suas fábulas, parábolas e provérbios que auxiliavam os homens a enfrentar infortúnio e boa sorte.
- Vincent de Gaulejac, op. cit., pp. 176-177.
- Ibidem, p. 164.
- Cf. Andrzej Leder, “La Haine comme force formatrice dans le chmps symbolique”, cópia xerográfica, no prelo da publicação do Colóquio de Cérisy, de setembro de 2005.
- Günther Anders, L´Obsolescence de l´Homme. Trad. Cristophe David. Paris: L´Encyclopédie des Nuisances/Ivrea, 2002, p. 247. O autor refere-se às personagens de Esperando Godot, de Beckett. Assim, Estragon e Vladimir, que não fazem absolutamente nada, representam, na peça, milhões de homens ativos.
- Malgorzata Szpawoska, Vouloir e avoir. La Conscience em Pologne du temps du changement, Varsóvia, 2003, apud Andrzej Leder, “Introduction à une analyse des transformations de l´intuition du temps dans la culture contemporaine”, in Paul Zawadiski (org.), Malaise dans la temporalité. Paris: Publications de la Sorbonne, 2005.
- C. Haroche, “Processus psychologique et sociaux de l´humilhation: l´appauvrissement de l´espace intérieur dans l´individualisme contemporain, in L´Humilhation et le politique, no prelo. Cf. nota 11, acima.