Skip to main content

Aurora Bernardini explica livro de Ivánov

Viatchesláv Vsiévolodovitch Ivánov, eminente professor universitário da MGU (Moscou) e da UCLA (Los Angeles), crítico, semioticista, antropólogo cultural e linguista de fama mundial, esteve em São Paulo em 1990 (a convite do DLO/IEA e com patrocínio da FAPESP), ocasião em que ministrou uma série de conferências e deslumbrou os ouvintes com sua excepcional cultura. Falou sobre alguns de seus trabalhos como A história da cultura mundial; O indo-europeu e os indo-europeus (obra em dois volumes pela qual, em parceria com um colega, obteve o Prêmio Lênin em l988); A semiótica na Rússia e no Ocidente; Par e ímpar: o funcionamento dos hemisférios do cérebro. Dois dos trabalhos ilustrados pelas conferências foram traduzidos para o português, por equipes das quais participaram professores do Curso de Russo da USP: Par e ímpar: o funcionamento dos hemisférios do cérebro está com a Editora Anablume para publicação; e, recentemente; reunindo estudos de história da cultura mundial, de mito e linguagem, remontando dos primórdios da civilização até os nossos dias e, principalmente, analisando os arquivos inéditos do famoso cineasta Serguéi Eisenstein e encontrando ali elementos extremamente originais que ligam o cinema aos outros sistemas de signos, foi publicado o livro Dos diários de Serguéi Eisenstein e outros ensaios, que analisaremos nesta resenha.

O livro, primeiramente publicado em l976, em Moscou, é constituído de cinco capítulos que podem ser lidos como estudos independentes mas que, naturalmente, têm sua sequência lógica e a suas ligações: a mais conspícua delas sendo a presença constante do pensamento de Serguéi Eisenstein.

No primeiro, o estudo de “As etapas primevas do desenvolvimento dos sistemas de signos”, ou seja, a pré-história da Semiótica, está ligado a uma das grandes hipóteses da Antropologia Cultural, entendida aqui como “a ciência que estuda comparativamente diversos tipos de cultura e as vias pelas quais esses tipos de cultura sofrem transformações no processo de transmissão social da informação, de uma geração a outra”. A hipótese seria a seguinte: dentro das diferentes maneiras de se entenderem semelhanças, pode-se admitir que muitas delas não se expliquem pelo modelo da continuidade histórica (o continuum da história), mas pela convergência de processos históricos tipológicos, um de cujos modelos pode ser considerado o dos ciclos de desenvolvimento. Ou, em outros termos: os resultados históricos de certa continuidade, cuja ocorrência nos é visível, só são avaliados com base em outra continuidade análoga no passado, com a qual aqueles se identificam ou se correlacionam, em certo sentido.

A escola da Antropologia Cultural Russa conta com fundadores ilustres: M. Bakhtin, V. Propp, F. Kameniétski, O. Freidenberg, L. Vygotsky e S. Eisenstein. Para eles era fundamental o princípio dinâmico, segundo o qual o pesquisador, começando por separar os segmentos mais arcaicos na descrição sincrônica dos elementos “não oficiais” de determinada tradição cultural, remonta gradualmente às fontes desta e examina as vias de sua posterior transformação. Assim, elementos (textos) orais, gestuais, ritualísticos e mitológicos comparados permitem reconstituir a situação que precedeu os mais antigos textos escritos da humanidade.

Um dos assuntos tocados nesse primeiro capítulo serve de exemplo: a situação folclórica original da “proposta (enigmação) e decifração-do-enigma”. Vladimir Propp e Olga Freidenberg caracterizaram esta situação na versão trágica do mito de Édipo, em Sófocles. Avançando pelo mesmo caminho, V. V. Ivánov propõe remontar às raízes linguísticas (protoindo-europeias) e mitológicas desse mesmo motivo e ir além: perscrutar as raízes humanas universais dos enigmas relacionados com o incesto que unem as tradições do Velho e do Novo Mundo. Assim, além das fontes remotas, descobrem-se também as causas mais tardias da transformação da antiga estrutura.

Dada uma ideia geral, embrenhar-se por essas trilhas heurísticas, apesar et pour cause da linguagem e das referências extremamente rigorosas, é empresa altamente instigante. Pode-se dizer que a cada momento encontram-se teses e comprovações surpreendentes. Sirva como exemplo aqui uma tese de Bogatyriov: “atos mágicos e fórmulas verbais podem ter surgido ao mesmo tempo”. Estudando o papel fundamental das palavras nas representações religiosas arcaicas, através da linguística e da etnologia chegou a comprová-lo na civilização dos hititas. O próximo passo foi verificar como o texto verbal antigo é inseparável do ato ritual, em um número significativamente grande de casos, instituindo o assim chamado “sincretismo primitivo”.

Além dele, Vesselóvski e Vygotsky levaram adiante esses estudos: se o primeiro postulou que o mais antigo rito sincrético correspondia à necessidade de uma catarse psicofísica, o segundo, baseado no conhecido princípio fisiológico do “funil” de Sherrington e nas suas próprias investigações psicofisiológicas, estudou a união dessas formas sincréticas catárticas primitivas com a arte posterior.

No estudo dos diferentes sistemas de signos (línguas, mitos, rituais etc.), a aproximação tipológica de um deles, tido como o mais arcaico, a quaisquer fenômenos no interior de outro sistema semelhante é justificada no caso desses fenômenos terem-se sobressaído como resquícios. Este é um dos princípios formulados por Vesselóvski quanto à “racionalidade das contraposições tipológicas”. Entre suas comprovações está todo o estudo dos rituais siberianos da “caça ao urso”, em que, residualmente, está refletida a visão de mundo dos povos da Idade da Pedra.

Mas onde começa a entrar Eisenstein nisso tudo? Justamente no momento em que Vesselóvski aprofunda a noção dos formalistas russos de que a delimitação dos gêneros artísticos “é sempre histórica, ou seja, justificada somente para um determinado momento”, sendo – os gêneros – resultado da evolução diacrônica do ato sincrético original, e estabelecendo com isso um limite entre a poética contemporânea e a poética “sincrônica” de Aristóteles.

Bakhtin e Eisenstein conseguiram desfazer a contradição entre poética diacrônica e sincrônica, o primeiro baseando-se na integração dos “gêneros discursivos” ligados a determinadas situações de comunicação, o segundo introduzindo categorias aristotélicas no episódio da escadaria de Odessa do Encouraçado Potemkin. Já está visível a atração que Eisenstein sente não apenas pela totalidade em si, mas por uma totalidade que represente a união dos contrários.

Outra hipótese cara a Eisenstein, a do caráter primeiro da técnica em relação à arte (que nada tem a ver com o tecnicismo em si) e da concepção técnica do estilo, não só não constitui de modo algum um resultado dos últimos séculos, mas é verificada, segundo o relato de V. V. Ivánov, em particularidades da terminologia indo-europeia: “a criação de obras de arte vocabular (e de outras obras de arte, como é de esperar) era descrita mediante indicações técnicas que se referiam inicialmente àqueles ofícios como a carpintaria, a tecelagem, a urdidura”.

“Qual a base gestual que existe no fundo das significações das palavras, dos desenhos, das representações pictóricas?” Esta é mais uma pergunta, respondida nesse capítulo, que liga, por exemplo, os arquivos de Eisenstein aos arquivos de Vygotsky: “Analisando os mais diversos conceitos” – escreve V. V. Ivánov – “Eisenstein, que preencheu com pesquisas etimológicas seus diários, procurava descobrir as ações físicas (biológicas) nas quais aquelas representações se baseiam […]. Esta sua ênfase no gesto físico apresenta interesse à luz de novos trabalhos sobre semântica, onde se supõe que a orientação física do homem sirva de base para a descrição do seu mundo, que está fixada na linguagem (cf. a ideia de Vygotsky sobre a “naive physic”).

Se o primeiro e o quarto capítulos do livro (que, partindo dos hinos védicos em que está anagramado o nome impronunciável da divindade, passa por Bach, o compositor favorito de Eisenstein, que anagramava seu nome em suas composições e chega aos anagramas de Saussure) servem de molduras refinadas para o pensamento de Eisenstein, o grande quadro se encontra nos capítulos centrais. Neles V. V. Ivánov se baseou em duas importantes obras do cineasta publicadas, até agora, apenas em fragmentos, O método (Methode) e O problema básico (Grundproblem) e das páginas, guardadas em arquivos não consultados antes de Ivánov, de suas anotações e diários realizados durante as filmagens de Que viva México!

Acompanhando o fio alinhavado no começo de que o sincretismo biológico-social não aparece apenas nos sistemas primitivos, mas em todos os sistemas de signos da arte, é em Grundproblem e Methode que Eisenstein esboça sua teoria estética em uma linguagem telegráfica (o que leva a crer que os livros e as anotações fossem primeiramente um pró-memória) em que os equacionamentos e as alusões são organizados e comentados por V. V. Ivánov de maneira a tornar a leitura sempre mais estimulante. Partindo do pressuposto de que a juventude do cinema o liga às formas arcaicas da cultura, Eisenstein vai ainda mais longe: para chegar ao movimento cinematográfico dedica-se ao estudo do tropismo das plantas, aos olhos dos insetos e dos répteis e à imobilidade regressiva da máscara e, partindo dos níveis do movimento fisiológico, chega aos níveis da consciência. Ao longo de seu caminho biológico-dialético-evolucional, próximo a um biologismo psicanalítico, as descobertas são contínuas: todas elas encadeiam-se para o que ele caracterizou como sendo “o problema fundamental” da arte, “a ascensão aos mais altos níveis intelectuais e a descida, através da forma, nas camadas do mais profundo pensamento sensorial”. Esse mergulho no pensamento arcaico, pré-lógico, representa a regressão, que deve ser compensada pela progressão, para que se crie a obra de arte. Não há a menor dúvida de que a arte, para Eisenstein, está ligada ao diabólico, ao arquetípico, ao mágico. De tanto meditar sobre seus limites, em seus estudos sobre o êxtase, Eisenstein chegou a passar por uma verdadeira crise. Acalmou-o a ideia de que o artista mantém controle sobre esses limites, enquanto eles escapam ao doente. “Os traços arcaicos regressivos (especialmente os ligados ao sincretismo e à indiferenciação iniciais) são patológicos eles se prolongam nas etapas seguintes, mas podem ser controlados pelo artista.”

A forma, então, age sensorialmente sobre o autor e o fruidor, porém sobre o pano de fundo de uma grande unidade ou lei do comportamento social, ou, melhor ainda – quando encontrada –, de uma lei cósmica ou primordial. Quanto mais vasta essa lei, mais eficaz. As pesquisas do cineasta nesse campo são as mais insólitas e as mais apaixonantes. Só para enumerar algumas: o cinema de Walt Disney e a regressão ao mundo animal; a passagem do mundo vegetal para o mineral e a forma cristalográfica do ornamento; a autopunição dos heróis em Dostoiévski; as substituições sucessivas após o trauma primordial; a espiral logarítmica como fórmula do crescimento; o cinema futuro e superação dos limites da representação.

O quinto capítulo do livro, acrescentado mais recentemente como apêndice, fornece informações importantes – entre nós quase totalmente desconhecidas – sobre a história das etapas iniciais da formação do método estruturalista nas ciências humanas dos países eslavos.

 

Dos diários de Serguéi Eisenstein e outros ensaios
Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Noé Silva
São Paulo, Edusp, 2009, 392 p.


 Sobre Aurora Bernardini

Aurora Fornoni Bernardini é professora, escritora e tradutora. Na Universidade de São Paulo (USP), além de mestrado e doutorado sobre futurismo russo e italiano, concluiu em 1978 sua livre-docência sobre Marina Tsvetáieva. Bernardini começou a estudar russo em 1958 e, no fim da década de 1960, durante o mestrado, foi convidada para lecionar no curso de russo da USP por Boris Schnaiderman (1917–2016). Atualmente é professora titular de pós-graduação nos programas de Literatura e Cultura Russa (atual LETRA) e de Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP). Em 2003, foi finalista do prêmio Jabuti pela tradução de Cartas a Suvórin, de Anton Tchékhov (Edusp, com Homero Freitas de Andrade); em 2004, recebeu o prêmio Jabuti (segundo lugar), com o poeta Haroldo de Campos, pela tradução de Ungaretti: daquela estrela à outra (Ed. Ateliê Editorial); em 2006, foi vencedora do prêmio APCA pela tradução de O exército de cavalaria, de Isaac Bábel (CosacNaify, com Homero Freitas de Andrade); em 2006, foi contemplada com o prêmio Paulo Rónai pela tradução de Indícios flutuantes — poemas, de Marina Tsvetáieva (Martins Fontes), de quem Bernardini ainda verteu Vivendo sob o fogo: confissões (Ed. Martins, 2008); em 2007, foi vencedora do prêmio Jabuti (terceiro lugar) também pela tradução de Indícios flutuantes; em 2014, foi finalista do Jabuti pela tradução de “Os sonhos teus vão acabar contigo”: prosa, poesia, teatro, de Daniil Kharms.