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O parnaso-marxismo

Michel Tournier encontrou um lapso na dedicatória das Flores do Mal. Nota que, quando Baudelaire envia seu livro a tal parnasiano, acaba se traindo, pois escreve “ao impecável poeta”, quando o desejo de Baudelaire é o pecado.

O parnaso-marxismo não tem pecado. Chico Buarque é o não-pecado, abaixo da linha do Equador.

O parnaso-marxismo se casa à perfeição com Buarque – o sem crises, o sem fissuras, mantenedor de um redondo universo rimado, incólume aos conflitos contemporâneos. Sua visão social somente reifica o poder.

Leite Derramado é o mais novo “eleito” pelo patrono do parnaso-marxismo – como o ponto máximo de crítica ao establishment crônico e de estilo, reforçando a etiqueta que lhe cabe no latifúndio das ideias bem localizadas.

É a fazenda modelo. Jorra leite sem gozo.

O parnaso-marxismo leu Mário de Andrade, mas, submisso à cartilha, escapuliu–lhe o lembrete: “O passado é lição para se meditar, não para reproduzir”.

O parnaso-marxismo adora pizza, servida por garçons e garçonetes raivosos, devidamente adestrados intra muros.

O parnaso-marxismo não tem vigor, mas tem rancor. O rancor é o seu verdadeiro “método crítico”.

Eric Hobsbawn: “A maioria da esquerda intelectual já não sabe o que fazer com Marx. Ela foi desmoralizada pelo colapso do projeto social-democrata na maioria dos Estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela conversão massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado, assim como pelo colapso dos sistemas políticos e econômicos, que afirmavam ser inspirados por Marx e Lênin. […] O ‘proletariado’, dividido e diminuído, deixou de ser crível como agente histórico da transformação social preconizada por Marx”.

O parnaso-marxismo sabe – e bem – o que fazer com Marx.

O parnaso-marxismo ouve estrelas.

O parnaso-marxismo fechou – como é habitual – os olhos para o social-liberalismo do PT de Lula. Se não faz crítica (o rancor é seu verdadeiro “método crítico”), em compensação, também não faz autocrítica. Para ele, “mensalão” é salário justo de operário.

O parnaso-marxismo deleita-se em distribuir “remédios” com data de validade vencida.

O parnaso-marxismo é uma gag de Groucho Marx. Imita Fredric Jameson.

O parnaso-marxismo adora poetas-diplomatas. E as parnaso-marxistas, que pertencem ao quinto escalão do movimento, adoram poetisas cariocas milionárias.

O parnaso-marxismo agradece o fim da Guerra Fria, caso contrário não existiria.

O parnaso-marxismo tem um DNA stalinista. Por isso ainda tem apreço pela burocracia. Por isso burocratiza a academia. Por isso adora a academia burocratizada, onde se sente em casa.

O parnaso-marxismo adora a palavra “estirão”. De fato, o parnaso-marxismo é cheio de tiques de linguagem, embora impute aos outros a langue de bois.

O parnaso-marxista é sempre o “cauteloso pouco-a-pouco”, da “Ode ao Burguês”, de Mário de Andrade, ou melhor, é um cabotino: “salvo engano”.

O parnaso-marxismo informa “ter experiência em Letras”.

O Parnaso-marxismo Inc. tranforma  – atrás de sua tela protetora marxiana – faculdades de Letras públicas em res privata.

A Parnaso-marxismo Inc. está à venda.

O parnaso-marxismo vê na poesia uma “companheira de viagem”.

O parnaso-marxismo é a Igreja Católica do ateísmo.

O parnaso-marxismo considera a poesia uma inocente útil.

O parnaso-marxismo descobriu a utilidade da poesia.

O parnaso-marxismo ama o poema “Quadrilha”, de Drummond: “Raimundo morreu de desastre”.


 Sobre Régis Bonvicino

Poeta, autor, entre outros de Até agora (Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo), e diretor da revista Sibila.