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O Que é um Autor?

“O que é um autor?”, Bulletin de la Societé Française de Philosophie, 63o ano, n. 3, julho-setembro de 1969, pp. 73-104. (Societé Française de Philosophie, 22 de fevereiro de 1969; debate com M. de Gandillac, L. Goldmann, J. Lacan, J. d’Ormesson, J. Ullmo, J. Wahl.)

Em 1970, na Universidade de Búfalo (Estado de Nova York), M. Foucault oferece uma versão modificada dessa conferência, publicada em 1979 nos Estados Unidos (ver 11-258, vol. III da edição francesa desta obra). As passagens entre colchetes não figuravam no texto lido por M. Foucault em Búfalo. As modificações que ele tinha feito estão assinaladas por uma nota.

  1. Foucault autorizou indiferentemente a reedição de uma ou da outra versão, a do Bulletin de la Societé Française de Philosophie na revista de psicanálise Littoral (n. 9, junho de 1983), e aquela do Textual Strategies no The Foucault Reader (Ed. P. Rabinow. Nova York, Pantheon Books, 1984].[1]

O Sr. Michel Foucault, professor do Centro Universitário Experimental de Vincennes, propunha-se a desenvolver diante dos membros da Sociedade Francesa de Filosofia os seguintes argumentos:

“Que importa quem fala?” Nessa indiferença se afirma o princípio ético, talvez o mais fundamental, da escrita contemporânea. O apagamento do autor tornou-se desde então, para a crítica, um tema cotidiano. Mas o essencial não é constatar uma vez mais seu desaparecimento; é preciso descobrir, como lugar vazio – ao mesmo tempo indiferente e obrigatório –, os locais onde sua função é exercida.

1) O nome do autor: impossibilidade de tratá-lo como uma discrição definida; mas impossibilidade igualmente de tratá-lo como um nome próprio comum.

2) A relação de apropriação: o autor não é exatamente nem o proprietário nem o responsável por seus textos; não é nem o produtor nem o inventor deles. Qual é a natureza do speech act que permite dizer que há obra?

3) A relação de atribuição. O autor é, sem dúvida, aquele a quem se pode atribuir o que foi dito ou escrito. Mas a atribuição – mesmo quando se trata de um autor conhecido – é o resultado de operações críticas complexas e raramente justificadas. As incertezas do opus

4) A posição do autor. Posição do autor no livro (uso dos desencadeadores; funções dos prefácios; simulacros do copista, do narrador, do confidente, do memorialista). Posição do autor nos diferentes tipos de discurso (no discurso filosófico, por exemplo). Posição do autor em um campo discursivo (o que é o fundador de uma disciplina?, o que pode significar o “retorno a…” como momento decisivo na transformação de um campo discursivo?).

Relatório da sessão

A sessão é aberta às 16:45h no College de France, sala número 6, presidida por Jean Wahl.

Jean Wahl: Temos o prazer de ter hoje entre nós Michel Foucault. Estávamos um pouco impacientes por causa de sua vinda, um pouco inquietos com seu atraso, mas ele está aqui. Eu não o apresento a vocês, é o “verdadeiro” Michel Foucault, o de As palavras e as coisas, o da tese sobre a loucura. Eu lhe passo imediatamente a palavra.

Michel Foucault: Creio – sem estar, aliás, muito seguro sobre isso – que é tradição trazer a essa Sociedade de Filosofia o resultado de trabalhos já concluídos, para submetê-los ao exame e à crítica de vocês. Infelizmente, o que lhes trago hoje é muito pouco, eu receio, para merecer sua atenção: é um projeto que eu gostaria de submeter a vocês, uma tentativa de análise cujas linhas gerais apenas entrevejo; mas me pareceu que, esforçando-me para traçá-las diante de vocês, pedindo-lhes para julgá-las e retificá-las, eu estava, como “um bom neurótico”, à procura de um duplo benefício: inicialmente de submeter os resultados de um trabalho que ainda não existe ao rigor de suas objeções, e o de beneficiá-lo, no momento do seu nascimento, não somente com seu apadrinhamento, mas com suas sugestões.

E eu gostaria de fazer a vocês um outro pedido, o de não me levar a mal se, dentro em pouco, ao escutar vocês me fazer em perguntas, sinto eu ainda, e sobretudo aqui, a ausência de uma voz que me tem sido até agora indispensável; vocês hão de compreender que nesse momento é ainda meu primeiro mestre que procurarei invencivelmente ouvir. Afinal, é a ele que eu havia inicialmente falado do meu projeto inicial de trabalho; com toda a certeza, seria imprescindível para mim que ele assistisse a esse esboço e que me ajudasse uma vez mais em minhas incertezas. Mas, afinal, já que a ausência ocupa lugar primordial no discurso, aceitem, por favor, que seja a ele, em primeiro lugar, que eu me dirija essa noite.

Quanto ao tema que propus, “O que é um autor?”, é preciso evidentemente justificá-lo um pouco para vocês.

Se escolhi tratar essa questão talvez um pouco estranha, é porque inicialmente gostaria de fazer uma certa crítica sobre o que antes me ocorreu escrever. E voltar a um certo número de imprudências que acabei cometendo. Em As palavras e as coisas, eu tentara analisar as massas verbais, espécies de planos discursivos, que não estavam bem acentuados pelas unidades habituais do livro, da obra e do autor. Eu falava em geral da “história natural”, ou da “análise das riquezas”, ou da “economia política”, mas não absolutamente de obras ou de escritores. Entretanto, ao longo desse texto, utilizei ingenuamente, ou seja, de forma selvagem, nomes de autores. Falei de Buffon, de Cuvier, de Ricardo etc., e deixei esses nomes funcionarem em uma ambiguidade bastante embaraçosa. Embora dois tipos de objeções pudessem ser legitimamente formuladas, e o foram de fato. De um lado, disseram-me: Você não descreve Buffon convenientemente, e o que você diz sobre Marx é ridiculamente insuficiente em relação ao pensamento de Marx. Essas objeções estavam evidentemente fundamentadas, mas não considero que elas fossem inteiramente pertinentes em relação ao que eu fazia; pois o problema para mim não era descrever Buffon ou Marx, nem reproduzir o que eles disseram ou quiseram dizer: eu buscava simplesmente encontrar as regras através das quais eles formaram um certo número de conceitos ou de contextos teóricos que se podem encontrar em seus textos. Fizeram também outra objeção: Você forma, disseram-me, famílias monstruosas, aproxima nomes tão manifestamente opostos como os de Buffon e de Lineu, coloca Cuvier ao lado de Darwin, e isso contra o jogo mais evidente dos parentescos e das semelhanças naturais. Também aí, eu diria que a objeção não me parece convir, pois jamais procurei fazer um quadro genealógico das individualidades espirituais, não quis constituir um arquétipo intelectual do cientista ou do naturalista dos séculos XVII e XVIII; não quis formar nenhuma família, nem santa nem perversa, busquei simplesmente – o que era muito mais modesto – as condições de funcionamento de práticas discursivas específicas.

Então, vocês me perguntarão, por que ter utilizado, em As palavras e as coisas, nomes de autores? Era preciso ou não utilizar nenhum, ou então definir a maneira com que vocês se servem deles. Essa objeção é, acredito, perfeitamente justificada: tentei avaliar suas implicações e consequências em um texto que logo vai ser lançado; nele tento dar estatuto a grandes unidades discursivas, como aquelas que chamamos de história natural ou economia política; eu me perguntei com que métodos, com que instrumentos se pode localizá-las, escandi-las, analisá-las e descrevê-las. Eis a primeira parte de um trabalho começado há alguns anos, e que agora está concluído.

Mas uma outra questão se coloca: a do autor – e é sobre essa que gostaria agora de conversar com vocês. Essa noção do autor constitui o momento crucial da individualização na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, e também na história da filosofia e das ciências. Mesmo hoje, quando se faz a história de um conceito, de um gênero literário ou de um tipo de filosofia, acredito que não se deixa de considerar tais unidades como escansões relativamente fracas, secundárias e sobrepostas em relação à primeira unidade, sólida e fundamental, que é a do autor e da obra.

Deixarei de lado, pelo menos na conferência desta noite, a análise histórico-sociológica do personagem do autor. Como o autor se individualizou em uma cultura como a nossa, que estatuto lhe foi dado, a partir de que momento, por exemplo, pôs-se a fazer pesquisas de autenticidade e de atribuição, em que sistema de valorização o autor foi acolhido, em que momento se começou a contar a vida não mais dos heróis, mas dos autores, como se instaurou essa categoria fundamental da crítica “o homem-e-a-obra”, tudo isso certamente mereceria ser analisado. Gostaria no momento de examinar unicamente a relação do texto com o autor, a maneira com que o texto aponta para essa figura que lhe é exterior e anterior, pelo menos aparentemente.

A formulação do tema pelo qual gostaria de começar, eu a tomei emprestado de Beckett: “Que importa quem fala, alguém disse que importa quem fala”. Nessa indiferença, acredito que é preciso reconhecer um dos princípios éticos fundamentais da escrita contemporânea. Digo “ético”, porque essa indiferença não é tanto um traço caracterizando a maneira como se fala ou como se escreve; ela é antes uma espécie de regra imanente, retomada incessantemente, jamais efetivamente aplicada, um princípio que não marca a escrita como resultado, mas a domina como prática. Essa regra é bastante conhecida para que seja necessário analisá-la longamente; basta aqui especificá-la através de dois de seus grandes temas. Pode-se dizer, inicialmente, que a escrita de hoje se libertou do tema da expressão: ela se basta a si mesma, e, por consequência, não está obrigada à forma da interioridade; ela se identifica com sua própria exterioridade desdobrada. O que quer dizer que ela é um jogo de signos comandado menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do significante; e também que essa regularidade da escrita é sempre experimentada no sentido de seus limites; ela está sempre em vias de transgredir e de inverter a regularidade que ela aceita e com a qual se movimenta; a escrita se desenrola como um jogo que vai infalivelmente além de suas regras, e passa assim para fora. Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer.

O segundo tema é ainda mais familiar; é o parentesco da escrita com a morte. Esse lago subverte um tema milenar; a narrativa, ou a epopeia dos gregos, era destinada a perpetuar a imortalidade do herói, e se o herói aceitava morrer jovem, era porque sua vida, assim consagrada e magnificada pela morte, passava à imortalidade; a narrativa recuperava essa morte aceita. De outra maneira, a narrativa árabe – eu penso em As mil e uma noites – também tinha, como motivação, tema e pretexto, não morrer: falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a morte, para adiar o prazo desse desenlace que deveria fechar a boca do narrador. A narrativa de Shehrazade é o avesso encarniçado do assassínio, é o esforço de todas as noites para conseguir manter a morte fora do ciclo da existência. Esse tema da narrativa ou da escrita feitos para exorcizar a morte, nossa cultura o metamorfoseou; a escrita está atualmente ligada ao sacrifício, ao próprio sacrifício da vida; apagamento voluntário que não é para ser representado nos livros, pois está consumado na própria existência do escritor. A obra que tinha o dever de trazer a imortalidade recebeu agora o direito de matar, de ser assassina do seu autor. Vejam Flaubert, Proust, Kafka. Mas há outra coisa: essa relação da escrita com a morte também se manifesta no desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve; através de todas as chicanas que ele estabelece entre ele e o que ele escreve, o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita. Tudo isso é conhecido; faz bastante tempo que a crítica e a filosofia constataram esse desaparecimento ou morte do autor.

Não estou certo, entretanto, de que se tenham absorvido rigorosamente todas as consequências inerentes a essa constatação, nem que se tenha avaliado com exatidão a medida do acontecimento. Mais precisamente, parece-me que certo número de noções que hoje são destinadas a substituir o privilégio do autor o bloqueiam, de fato, e escamoteiam o que deveria ser destacado. Tomarei simplesmente duas dessas noções que são hoje, acredito, singularmente importantes.

Inicialmente, a noção de obra. É dito, de fato (e é também uma tese bastante familiar), que o próprio da crítica não é destacar as relações da obra com o autor, nem querer reconstituir através dos textos um pensamento ou uma experiência; ela deve antes analisar a obra em sua estrutura, em sua arquitetura, em sua forma intrínseca e no jogo de suas relações internas. Ora, é preciso imediatamente colocar um problema: “O que é uma obra? O que é pois essa curiosa unidade que se designa com o nome obra? De quais elementos ela se compõe? Uma obra não é aquilo que é escrito por aquele que é um autor?”. Vemos as dificuldades surgirem. Se um indivíduo não fosse um autor, será que se poderia dizer que o que ele escreveu, ou disse, o que ele deixou em seus papéis, o que se pode relatar de suas exposições, poderia ser chamado de “obra”? Enquanto Sade não era um autor, o que eram então esses papéis? Esses rolos de papel sobre os quais, sem parar, durante seus dias de prisão, ele desencadeava seus fantasmas.

Mas suponhamos que se trate de um autor: será que tudo o que ele escreveu ou disse, tudo o que ele deixou atrás de si faz parte de sua obra? Problema ao mesmo tempo teórico e técnico. Quando se pretende publicar, por exemplo, as obras de Nietzsche, onde é preciso parar? É preciso publicar tudo, certamente, mas o que quer dizer esse “tudo”? Tudo o que o próprio Nietzsche publicou, certamente. Os rascunhos de suas obras? Evidentemente. Os projetos dos aforismos? Sim. Da mesma forma as rasuras, as notas nas cadernetas? Sim. Mas quando, no interior de uma caderneta repleta de aforismos, encontra-se uma referência, a indicação de um encontro ou de um endereço, uma nota de lavanderia: obra, ou não? Mas por que não? E isso infinitamente. Dentre os milhões de traços deixados por alguém após sua morte, como se pode definir uma obra? A teoria da obra não existe, e àqueles que, ingenuamente, tentam editar obras falta uma tal teoria, e seu trabalho empírico se vê muito rapidamente paralisado. E se poderia continuar: será que se pode dizer que As mil e uma noites constituem uma obra? E os Stromates1, de Clement d’Alexandrie, ou as Vidas2, de Diogene Laerce? Percebe-se que abundância de questões se coloca a propósito dessa noção de obra. De tal maneira que é insuficiente afirmar: deixemos o escritor, deixemos o autor e vamos estudar, em si mesma, a obra. A palavra “obra” e a unidade que ela designa são provavelmente tão problemáticas quanto a individualidade do autor.

Uma outra noção, acredito, bloqueia a certeza da desaparição do autor e retém como que o pensamento no limite dessa anulação; com sutileza, ela ainda preserva a existência do autor. É a noção de escrita. A rigor, ela deveria permitir não somente dispensar a referência ao autor, mas dar estatuto a sua nova ausência. No estatuto que se dá atualmente à noção de escrita, não se trata, de fato, nem do gesto de escrever nem da marca (sintoma ou signo) do que alguém teria querido dizer; esforça-se com uma notável profundidade para pensar a condição geral de qualquer texto, a condição ao mesmo tempo do espaço em que ele se dispersa e do tempo em que ele se desenvolve.

Eu me pergunto se, reduzida às vezes a um uso habitual, essa noção não transporta, em um anonimato transcendental, as características empíricas do autor. Ocorre que se contenta em apagar as marcas demasiadamente visíveis do empirismo do autor utilizando, uma paralelamente à outra, uma contra a outra, duas maneiras de caracterizá-la: a modalidade crítica e a modalidade religiosa. Dar, de fato, à escrita um estatuto originário não seria uma maneira de, por um lado, traduzir novamente em termos transcendentais a afirmação teológica do seu caráter sagrado e, por outro, a afirmação crítica do seu caráter criador? Admitir que a escrita está de qualquer maneira, pela própria história que ela tornou possível, submetida à prova do esquecimento e da repressão, isso não seria representar em termos transcendentais o princípio religioso do sentido oculto (com a necessidade de interpretar) e o princípio crítico das significações implícitas, das determinações silenciosas, dos conteúdos obscuros (com a necessidade de comentar)? Enfim, pensar a escrita como ausência não seria muito simplesmente repetir em termos transcendentais o princípio religioso da tradição simultaneamente inalterável e jamais realizada, e o princípio estético da sobrevivência da obra, de sua manutenção além da morte, e do seu excesso enigmático em relação ao autor?

Penso, então, que tal uso da noção de escrita arrisca manter os privilégios do autor sob a salvaguarda do a priori: ele faz subsistir, na luz obscura da neutralização, o jogo das representações que formaram uma certa imagem do autor. A desaparição do autor, que após Mallarmé é um acontecimento que não cessa, encontra-se submetida ao bloqueio transcendental. Não existe atualmente uma linha divisória importante entre os que acreditam poder ainda pensar as rupturas atuais na tradição histórico-transcendental do século XIX e os que se esforçam para se libertar dela definitivamente?

Mas não basta, evidentemente, repetir como afirmação vazia que o autor desapareceu. Igualmente, não basta repetir perpetuamente que Deus e o homem estão mortos de uma morte conjunta. O que seria preciso fazer é localizar o espaço assim deixado vago pela desaparição do autor, seguir atentamente a repartição das lacunas e das falhas e espreitar os locais, as funções livres que essa desaparição faz aparecer.

Gostaria, inicialmente, de evocar em poucas palavras os problemas suscitados pelo uso do nome do autor. O que é o nome do autor? E como ele funciona? Longe de dar a vocês uma solução, indicarei somente algumas das dificuldades que ele apresenta.

O nome do autor é um nome próprio; apresenta os mesmos problemas que ele. (Refiro-me aqui, entre diferentes análises, às de Searle3.) Não é possível fazer do nome próprio, evidentemente, uma referência pura e simples. O nome próprio (e, da mesma forma, o nome do autor) tem outras funções além das indicativas. Ele é mais do que uma indicação, um gesto, um dedo apontado para alguém; em certa medida, é o equivalente a uma descrição. Quando se diz “Aristóteles”, emprega-se uma palavra que é equivalente a uma descrição ou a uma série de descrições definidas, do gênero de: “o autor das Analíticas”4 ou: “o fundador da ontologia” etc. Mas não se pode ficar nisso; um nome próprio não tem pura e simplesmente uma significação; quando se descobre que Rimbaud não escreveu La chasse spirituelle, não se pode pretender que esse nome próprio ou esse nome do autor tenha mudado de sentido. O nome próprio e o nome do autor estão situados entre esses dois polos da descrição e da designação; eles têm seguramente uma certa ligação com o que eles nomeiam, mas não inteiramente sob a forma de designação, nem inteiramente sob a forma de descrição: ligação específica. Entretanto – e é aí que aparecem as dificuldades particulares do nome do autor –, a ligação do nome próprio com o indivíduo nomeado e a ligação do nome do autor com o que ele nomeia não são isomorfas nem funcionam da mesma maneira. Eis algumas dessas diferenças.

Se eu me apercebo, por exemplo, de que Pierre Dupont não tem olhos azuis, ou não nasceu em Paris, ou não é medico etc., não é menos verdade que esse nome, Pierre Dupont, continuará sempre a se referir à mesma pessoa; a ligação de designação não será modificada da mesma maneira. Em compensação, os problemas colocados pelo nome do autor são bem mais complexos: se descubro que Shakespeare não nasceu na casa que hoje se visita, eis uma modificação que, evidentemente, não vai alterar o funcionamento do nome do autor. E se ficasse provado que Shakespeare não escreveu os Sonnets que são tidos como dele, eis uma mudança de um outro tipo: ela não deixa de atingir o funcionamento do nome do autor. E se ficasse provado que Shakespeare escreveu o Organon5 de Bacon simplesmente porque o mesmo autor escreveu as obras de Bacon e as de Shakespeare, eis um terceiro tipo de mudança que modifica inteiramente o funcionamento do nome do autor. O nome do autor não é, pois, exatamente um nome próprio como os outros.

Muitos outros fatos assinalam a singularidade paradoxal do nome do autor. Não é absolutamente a mesma coisa dizer que Pierre Dupont não existe e dizer que Homero ou Hermes Trismegisto não existiram; em um caso, quer-se dizer que ninguém tem o nome de Pierre Dupont; no outro, que vários foram confundidos com um único nome ou que o autor verdadeiro não possui nenhum dos traços atribuídos tradicionalmente ao personagem de Homero ou de Hermes. Não é de forma alguma a mesma coisa dizer que Pierre Dupont não é o verdadeiro nome de X, mas sim Jacques Durand, e dizer que Stendhal se chamava Henri Beyle. Seria assim possível se interrogar sobre o sentido e o funcionamento de uma proposição como “Bourbaki e tal, tal etc.” e “Victor Eremita, Climacus, Anticlimacus, Frater Taciturnus, Constantin Constantius são Kierkegaard”.

Essas diferenças talvez se relacionem com o seguinte fato: um nome de autor não é simplesmente um elemento em um discurso (que pode ser sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome etc.); ele exerce um certo papel em relação ao discurso: assegura uma função classificatória; tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir alguns, opô-los a outros. Por outro lado, ele relaciona os textos entre si; Hermes Trismegisto não existia, Hipócrates, tampouco – no sentido em que se poderia dizer que Balzac existe –, mas o fato de que vários textos tenham sido colocados sob um mesmo nome indica que se estabelecia entre eles uma relação de homogeneidade ou de filiação, ou de autenticação de uns pelos outros, ou de explicação recíproca, ou de utilização concomitante. Enfim, o nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso, o fato de haver um nome de autor, o fato de que se possa dizer “isso foi escrito por tal pessoa”, ou “tal pessoa é o autor disso”, indica que esse discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um certo status.

Chegar-se-ia finalmente à ideia de que o nome do autor não passa, como o nome próprio, do interior de um discurso ao indivíduo real e exterior que o produziu, mas que ele corre, de qualquer maneira, aos limites dos textos, que ele os recorta, segue suas arestas, manifesta o modo de ser ou, pelo menos, que ele o caracteriza. Ele manifesta a ocorrência de um certo conjunto de discurso, e refere-se ao status desse discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura. O nome do autor não está localizado no estado civil dos homens, não está localizado na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e seu modo singular de ser.

Consequentemente, poder-se-ia dizer que há, em uma civilização como a nossa, um certo número de discursos que são providos da função “autor”, enquanto outros são dela desprovidos. Uma carta particular pode ter um signatário, ela não tem autor; um contrato pode ter um fiador, ele não tem autor. Um texto anônimo que se lê na rua em uma parede terá um redator, não terá um autor. A função autor é, portanto, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade.

Seria preciso agora analisar essa função “autor”. Em nossa cultura, como se caracteriza um discurso portador da função autor? Em que ele se opõe aos outros discursos? Acredito que se podem, considerando-se somente o autor de um livro ou de um texto, reconhecer nele quatro características diferentes. 1 Elas são, inicialmente, objetos de apropriação; a forma de propriedade da qual elas decorrem é de um tipo bastante particular; ela foi codificada há um certo número de anos. É preciso observar que essa propriedade foi historicamente secundária, em relação ao que se poderia chamar de apropriação penal. Os textos, os livros, os discursos começaram a ter realmente autores (diferentes dos personagens míticos, diferentes das grandes figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam ser transgressores. O discurso, em nossa cultura (e, sem dúvida, em muitas outras), não era originalmente um produto, uma coisa, um bem; era essencialmente um ato – um ato que estava colocado no campo bipolar do sagrado e do profano, do lícito e do ilícito, do religioso e do blasfemo. Ele foi historicamente um gesto carregado de riscos antes de ser um bem extraído de um circuito de propriedades. E quando se instaurou um regime de propriedade para os textos, quando se editoram regras estritas sobre os direitos do autor, sobre as relações autores-editores, sobre os direitos de reprodução etc. – ou seja, no fim do século XVIII e no início do XIX –, e nesse momento em que a possibilidade de transgressão que pertencia ao ato de escrever adquiriu cada vez mais o aspecto de um imperativo próprio da literatura. Como se o autor, a partir do momento em que foi colocado no sistema de propriedade que caracteriza nossa sociedade, compensasse o status que ele recebia, reencontrando assim o velho campo bipolar do discurso, praticando sistematicamente a transgressão, restaurando o perigo de uma escrita na qual, por outro lado, se garantiriam os benefícios da propriedade.

Por outro lado, a função autor não é exercida de uma maneira universal e constante em todos os discursos. Em nossa civilização, não são sempre os mesmos textos que exigiram receber uma atribuição. Houve um tempo em que esses textos que hoje chamaríamos de “literários” (narrativas, contos, epopeias, tragédias, comédias) eram aceitos, postos em circulação, valorizados, sem que fosse colocada a questão do seu autor; o anonimato não constituía dificuldade, sua antiguidade, verdadeira ou suposta, era para eles garantia suficiente. Em compensação, os textos que chamaríamos atualmente de científicos, relacionando-se com a cosmologia e o céu, a medicina e as doenças, as ciências naturais ou a geografia, não eram aceitos na Idade Média e só mantinham um valor de verdade com a condição de serem marcados pelo nome do seu autor. “Hipócrates disse”, “Plínio conta” não eram precisamente as fórmulas de um argumento de autoridade; eram os índices com que estavam marcados os discursos destinados a serem aceitos como provados. Um quiasma produziu-se no século XVII, ou no XVIII; começou-se a aceitar os discursos científicos por eles mesmos, no anonimato de uma verdade estabelecida ou sempre demonstrável novamente; e sua vinculação a um conjunto sistemático que lhes dá garantia, e de forma alguma a referência ao indivíduo que os produziu. A função autor se apaga, o nome do inventor servindo no máximo para batizar um teorema, uma proposição, um efeito notável, uma propriedade, um corpo, um conjunto de elementos, uma síndrome patológica. Mas os discursos “literários” não podem mais ser aceitos senão quando providos da função autor: a qualquer texto de poesia ou de ficção se perguntará de onde ele vem, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de que projeto. O sentido que lhe é dado, o status ou o valor que nele se reconhece dependem da maneira com que se responde a essas questões. E se, em consequência de um acidente ou de uma vontade explícita do autor, ele chega a nós no anonimato, a operação é imediatamente buscar o autor. O anonimato literário não é suportável para nós; só o aceitamos na qualidade de enigma. A função autor hoje em dia atua fortemente nas obras literárias. (Certamente, seria preciso amenizar tudo isso: a crítica começou, há algum tempo, a tratar as obras segundo seu gênero e sua espécie, conforme os elementos recorrentes que nelas figuram, segundo suas próprias variantes em torno de uma constante que não é mais o criador individual. Além disso, se a referência ao autor não passa, na matemática, de uma maneira de nomear teoremas ou conjuntos de proposições, na biologia e na medicina, a indicação do autor e da data do seu trabalho desempenha um papel bastante diferente: não é simplesmente uma maneira de indicar a origem, mas de conferir um certo índice de “credibilidade” relativamente às técnicas e aos objetos de experiência utilizados em tal época e em tal laboratório.)

Terceira característica dessa função autor. Ela não se forma espontaneamente como a atribuição de um discurso a um indivíduo. É o resultado de uma operação complexa que constrói um certo ser de razão que se chama de autor. Sem dúvida, a esse ser de razão, tenta-se dar um status realista: seria, no indivíduo, uma instância “profunda”, um poder “criador”, um “projeto”, o lugar originário da escrita. Mas, na verdade, o que no indivíduo é designado como autor (ou o que faz de um indivíduo um autor) é apenas a projeção, em termos sempre mais ou menos psicologizantes, do tratamento que se dá aos textos, das aproximações que se operam, dos traços que se estabelecem como pertinentes, das continuidades que se admitem ou das exclusões que se praticam. Todas essas operações variam de acordo com as épocas e os tipos de discurso. Não se constrói um “autor filosófico” como um “poeta”; e não se construía o autor de uma obra romanesca no século XVIII como atualmente. Entretanto, pode-se encontrar através do tempo um certo invariante nas regras de construção do autor.

Parece-me, por exemplo, que a maneira com que a crítica literária, por muito tempo, definiu o autor –, ou, antes, construiu a forma autor a partir dos textos e dos discursos existentes – é diretamente derivada da maneira com que a tradição cristã autenticou (ou, ao contrário, rejeitou) os textos de que dispunha. Em outros termos, para “encontrar” o autor na obra, a crítica moderna utiliza esquemas bastante próximos da exegese cristã, quando ela queria provar o valor de um texto pela santidade do autor. Em De viris illustribus, São Jerônimo explica que a homonímia não basta para identificar legitimamente os autores de várias obras: indivíduos diferentes puderam usar o mesmo nome, ou um pode, abusivamente, tomar emprestado o patronímico do outro. O nome como marca individual não é suficiente quando se refere à tradição textual. Como, pois, atribuir vários discursos a um único e mesmo autor? Como fazer atuar a função autor para saber se se trata de um ou de vários indivíduos? São Jerônimo fornece quatro critérios: se, entre vários livros atribuídos a um autor, um é inferior aos outros, é preciso retirá-lo da lista de suas obras (o autor é então definido como um certo nível constante de valor); além disso, se certos textos estão em contradição de doutrina com as outras obras de um autor (o autor é então definido como um certo campo de coerência conceitual ou teórica), é preciso igualmente excluir as obras que estão escritas em um estilo diferente, com palavras e formas de expressão não encontradas usualmente sob a pena do escritor (e o autor como unidade estilística); devem, enfim, ser considerados como interpolados os textos que se referem a acontecimentos ou que citam personagens posteriores à morte do autor (o autor é então momento histórico definido e ponto de encontro de um certo número de acontecimentos). Ora, a crítica literária moderna, mesmo quando ela não se preocupa com a autenticação (o que é a regra geral), não define o autor de outra maneira: o autor é o que permite explicar tão bem a presença de certos acontecimentos em uma obra como suas transformações, suas deformações, suas diversas modificações (e isso pela biografia do autor, a localização de sua perspectiva individual, a análise de sua situação social ou de sua posição de classe, a revelação do seu projeto fundamental). O autor é, igualmente, o princípio de uma certa unidade de escrita – todas as diferenças devendo ser reduzidas ao menos pelos princípios da evolução, da maturação ou da influência. O autor é ainda o que permite superar as contradições que podem se desencadear em uma série de textos: ali deve haver – em um certo nível do seu pensamento ou do seu desejo, de sua consciência ou do seu inconsciente – um ponto a partir do qual as contradições se resolvem, os elementos incompatíveis se encadeando finalmente uns nos outros ou se organizando em torno de uma contradição fundamental ou originária. O autor, enfim, é um certo foco de expressão que, sob formas mais ou menos acabadas, manifesta-se da mesma maneira, e com o mesmo valor, em obras, rascunhos, cartas, fragmentos etc. Os quatro critérios de autenticidade segundo São Jerônimo (critérios que parecem bastante insuficientes aos atuais exegetas) definem as quatro modalidades segundo as quais a crítica moderna faz atuar a função autor.

Mas a função autor não é, na verdade, uma pura e simples reconstrução que se faz de segunda mão a partir de um texto dado como um material inerte. Os textos sempre contêm em si mesmo um certo número de signos que remetem ao autor. Esses signos são bastante conhecidos dos gramáticos: são os pronomes pessoais, os advérbios de tempo e de lugar, a conjugação dos verbos. Mas é preciso enfatizar que esses elementos não atuam da mesma maneira nos discursos providos da função autor e naqueles que dela são desprovidos. Nesses últimos, tais “mecanismos” remetem ao locutor real e às coordenadas espaço-temporais do seu discurso (embora certas modificações possam se produzir: quando se relatam discursos na primeira pessoa). Nos primeiros, em compensação, seu papel é mais complexo e mais variável. É sabido que, em um romance que se apresenta como o relato de um narrador, o pronome da primeira pessoa, o presente do indicativo, os signos da localização jamais remetem imediatamente ao escritor, nem ao momento em que ele escreve, nem ao próprio gesto de sua escrita; mas a um autor ego cuja distância em relação ao escritor pode ser maior ou menor e variar ao longo mesmo da obra. Seria igualmente falso buscar o autor tanto do lado do escritor real quanto do lado do locutor fictício: a função autor é efetuada na própria cisão – nessa divisão e nessa distância. Será possível dizer, talvez, que ali está somente uma propriedade singular do discurso romanesco ou poético: um jogo do qual só participam esses “quase-discursos”. Na verdade, todos os discursos que possuem a função autor comportam essa pluralidade de ego. O ego que fala no prefácio de um tratado de matemática – e que indica suas circunstâncias de composição – não é idêntico nem em sua posição nem em seu funcionamento àquele que fala no curso de uma demonstração e que aparece sob a forma de um “Eu concluo” ou “Eu suponho”: em um caso, o “eu” remete a um indivíduo sem equivalente que, em um lugar e em um tempo determinados, concluiu um certo trabalho; no segundo, o “eu” designa um plano e um momento de demonstração que qualquer indivíduo pode ocupar, desde que ele tenha aceito o mesmo sistema de símbolos, o mesmo jogo de axiomas, o mesmo conjunto de demonstrações preliminares. Mas se poderia também, no mesmo tratado, observar um terceiro ego: aquele que fala para dizer o sentido do trabalho, os obstáculos encontrados, os resultados obtidos, os problemas que ainda se colocam: esse ego se situa no campo dos discursos matemáticos já existentes ou ainda por vir. A função autor não está assegurada por um desses egos (o primeiro) às custas dos dois outros, que não seriam mais do que o desdobramento fictício deles. É preciso dizer, pelo contrário, que, em tais discursos, a função autor atua de tal forma que dá lugar à dispersão desses três egos simultâneos.

Sem dúvida, a análise poderia reconhecer ainda outros traços característicos da função autor. Mas me deterei hoje nos quatro que acabo de evocar, porque eles parecem ao mesmo tempo os mais visíveis e importantes. Eu os resumirei assim: a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina, articula o universo dos discursos; ela nasce se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a varias posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar.

Mas me dou conta de que até o presente limitei meu tema de uma maneira injustificável. Certamente, seria preciso falar do que é a função autor na pintura, na música, nas técnicas etc. Entretanto, mesmo supondo que se mantenha, como eu gostaria de fazer essa noite, no mundo dos discursos, acredito ter dado ao termo “autor” um sentido demasiadamente restrito. Eu me limitei ao autor considerado como autor de um texto, de um livro ou de uma obra, ao qual se pode legitimamente atribuir a produção. Ora, é fácil ver que, na ordem do discurso, pode-se ser o autor de bem mais que um livro – de uma teoria, de uma tradição, de uma disciplina dentro das quais outros livros e outros autores poderão, por sua vez, se colocar. Eu diria, finalmente, que esses autores se encontram em uma posição “transdiscursiva”.

É um fenômeno constante – certamente tão antigo quanto nossa civilização. Homero e Aristóteles, os Pais da Igreja, desempenharam esse papel; mas também os primeiros matemáticos e aqueles que estiveram na origem da tradição hipocrática. Mas me parece que se viu aparecerem, durante o século XIX, na Europa, tipos de autores bastante singulares e que não poderiam ser confundidos nem com os “grandes” autores literários, nem com os autores de textos religiosos canônicos, nem com os fundadores das ciências. Vamos chamá-los, de uma maneira um pouco arbitrária, de “fundadores de discursividade”.

Esses autores têm de particular o fato de que eles não são somente os autores de suas obras, de seus livros. Eles produziram alguma coisa a mais: a possibilidade e a regra de formação de outros textos. Nesse sentido, eles são bastante diferentes, por exemplo, de um autor de romances que, no fundo, é sempre o autor do seu próprio texto. Freud não é simplesmente o autor da Traumdeutung ou de O chiste7; Marx não é simplesmente o autor do Manifesto ou do Capital: eles estabeleceram uma possibilidade infinita de discursos. É fácil, evidentemente, fazer uma objeção. Não é verdade que o autor de um romance seja apenas o autor do seu próprio texto; em um certo sentido, também ele, na medida em que ele é, como se diz, um pouco “importante”, rege e comanda mais do que isso. Para usar um exemplo muito simples, pode-se dizer que Ann Radcliffe não somente escreveu As visões do Castelo dos Pirineus9 e um certo número de outros romances, mas ela tornou possíveis os romances de terror do início do século XIX e, nesse caso, sua função de autor excede sua própria obra. Só que, a essa objeção, “creio que se pode responder: o que esses instauradores de discursividade tornam possível (tomo como exemplo Marx e Freud, pois acredito que eles são ao mesmo tempo os primeiros e os mais importantes), o que eles tornam possível é absolutamente diferente do que o que torna possível um autor de romance. Os textos de Ann Radcliffe abriram o campo a um certo número de semelhanças e de analogias que tem seu modelo ou princípio em sua própria obra. Esta contém signos característicos, figuras, relações, estruturas, que puderam ser reutilizados por outros. Dizer que Ann Radcliffe fundou o romance de terror quer dizer, enfim: no romance de terror do século XIX, encontrar-se-á, como em Ann Radcliffe, o tema da heroína presa na armadilha de sua própria inocência, a figura do castelo secreto que funciona como uma “contra-cidade”, o personagem do herói negro, maldito, destinado a fazer o mundo expiar o mal que lhe fizeram etc. Em compensação, quando falo de Marx ou de Freud como “instauradores de discursividade”, quero dizer que eles não tornaram apenas possível um certo número de analogias, eles tornaram possível (e tanto quanto) um certo número de diferenças. Abriram o espaço para outra coisa diferente deles e que, no entanto, pertence ao que eles fundaram. Dizer que Freud fundou a psicanálise não quer dizer (isso não quer simplesmente dizer) que se possa encontrar o conceito da libido, ou a técnica de análise dos sonhos em Abraham ou Melanie Klein, é dizer que Freud tornou possível um certo número de diferenças em relação aos seus textos, aos seus conceitos, às suas hipóteses, que dizem todas respeito ao próprio discurso psicanalítico.

Surge imediatamente, acredito, uma nova dificuldade, ou, pelo menos, um novo problema: não será o caso, afinal de contas, de todo fundador de ciência, ou de todo autor que, em uma ciência, introduziu uma transformação que se pode chamar de fecunda? Afinal, Galileu não tornou simplesmente possíveis aqueles que repetiram depois dele as leis que ele havia formulado, mas tornou possíveis enunciados bastante diferentes do que ele próprio havia dito. Se Cuvier é o fundador da biologia, ou Saussure o da linguística, não é porque eles foram imitados, não é porque se retomou, aqui ou ali, o conceito de organismo ou de signo, é porque Cuvier tornou possível, em certa medida, a teoria da evolução que estava termo a termo oposta à sua própria fixidez; e na medida em que Saussure tornou possível uma gramática gerativa que é bastante diferente de suas análises estruturais. Portanto, a instauração da discursividade parece ser do mesmo tipo, à primeira vista, pelo menos, da fundação de não importa que cientificidade. Entretanto, acredito que há uma diferença, e uma diferença notável. De fato, no caso de uma cientificidade, o ato que a funda está no mesmo nível de suas transformações futuras; ele faz, de qualquer forma, parte do conjunto das modificações que ele torna possíveis. Essa dependência, certamente, pode tomar várias formas. O ato de fundação de uma cientificidade pode aparecer, no curso das transformações posteriores dessa ciência, como sendo afinal apenas um caso particular de um conjunto muito mais geral que então se descobre. Pode aparecer também contaminado pela intuição e pelo empirismo; é preciso então formalizá-lo de novo, e fazer dele o objeto de um certo número de operações teóricas suplementares que o funda mais rigorosamente etc. Enfim, ele pode aparecer como uma generalização apressada, que é preciso limitar e da qual é preciso retraçar o campo restrito de validade. Em outras palavras, o ato de fundação de uma cientificidade pode ser sempre reintroduzido no interior da maquinaria das transformações que dele derivam.

Ora, acredito que a instauração de uma discursividade é heterogênea às suas transformações ulteriores. Desenvolver um tipo de discursividade como a psicanálise, tal como ela foi instaurada por Freud, não é conferir-lhe uma generalidade formal que ela não teria admitido no ponto de partida, e simplesmente lhe abrir um certo número de possibilidades de aplicações, limitá-la e, na realidade, tentar isolar no ato instaurador um número eventualmente restrito de proposições ou de enunciados, aos quais unicamente se reconhece valor fundador e em relação aos quais tais conceitos ou teoria admitidos por Freud poderão ser considerados como derivados, secundários, acessórios. Enfim, na obra desses fundadores, não se reconhecem certas proposições como falsas; contenta-se, quando se tenta apreender esse ato de instauração, em afastar os enunciados que não seriam pertinentes, seja por considerá-los como não essenciais, seja por considerá-los como “pré-históricos” e provenientes de outro tipo de discursividade. Em outras palavras, diferentemente da fundação de uma ciência, a instauração discursiva não faz parte dessas transformações ulteriores, ela permanece necessariamente retirada e em desequilíbrio. A consequência é que se define a validade teórica de uma proposição em relação à obra de seus instauradores – ao passo que, no caso de Galileu e de Newton, é em relação ao que são, em sua estrutura e normatividade intrínsecas, a física ou a cosmologia, que se pode afirmar a validade de tal proposição que eles puderam avançar. Falando de uma maneira bastante esquemática: a obra desses instauradores não se situa em relação à ciência e no espaço que ela circunscreve; mas é a ciência ou a discursividade que se relaciona à sua obra como as coordenadas primeiras.

Compreende-se por aí que se encontre, como uma necessidade inevitável em tais discursividades, a exigência de um “retorno à origem”. [Aqui, ainda, é preciso distinguir esses “retornos a…” dos fenômenos de “redescoberta” e de “ritualização” que se produzem frequentemente nas ciências. Por “redescobertas” entenderei os fenômenos de analogia ou de isomorfismo que, a partir das formas atuais do saber, tornam perceptível uma figura que foi embaralhada, ou que desapareceu. Direi, por exemplo, que Chomsky, em seu livro sobre a gramática cartesiana10, redescobriu uma certa figura do saber que vai de Cordemoy a Humboldt: ela só pode ser constituída, na verdade, a partir da gramática gerativa, pois é esta última que detém a lei de sua construção; na realidade, trata-se de uma codificação retrospectiva do olhar histórico. Por “reatualização” entenderei uma coisa totalmente diferente: a reinserção de um discurso em um domínio de generalização, de aplicação ou de transformação que é novo para ele. É, nesse caso, a história das matemáticas rica em tais fenômenos (eu me remeto aqui ao estudo que Michel Serres consagrou às anamneses matemáticas11). Por “retorno a”, o que se pode entender? Acredito que se pode designar dessa maneira um movimento que tem sua própria especificidade e que caracteriza justamente as instaurações de discursividade. Para que haja retorno, de fato, é preciso inicialmente que tenha havido esquecimento, não esquecimento acidental, não encobrimento por alguma incompreensão, mas esquecimento essencial e constitutivo. O ato de instauração, de fato, é tal em sua própria essência, que ele não pode não ser esquecido. O que o manifesta, o que dele deriva é, ao mesmo tempo, o que estabelece a distância e o que o mascara. É preciso que esse esquecimento não acidental seja investido em operações precisas, que se podem situar, analisar e reduzir pelo próprio retorno a esse ato instaurador. O ferrolho do esquecimento não foi acrescentado do exterior, ele faz parte da discursividade de que se trata, é esta que lhe dá sua lei; a instauração discursiva assim esquecida é ao mesmo tempo a razão de ser do ferrolho e a chave que permite abri-lo, de tal forma que o esquecimento e o impedimento do próprio retorno só podem ser interrompidos pelo retorno. Por outro lado, esse retorno se dirige ao que está presente no texto, mais precisamente, retorna-se ao próprio texto, ao texto em sua nudez e, ao mesmo tempo, no entanto, retorna-se ao que está marcado pelo vazio, pela ausência, pela lacuna no texto. Retorna-se a um certo vazio que o esquecimento evitou ou mascarou, que recobriu com uma falsa ou má plenitude e o retorno deve redescobrir essa lacuna e essa falta; daí o perpétuo jogo que caracteriza esses retornos à instauração discursiva – jogo que consiste em dizer por um lado: isso aí estava, bastaria ler, tudo se encontra aí, seria preciso que os olhos estivessem bem fechados e os ouvidos bem tapados para que ele não seja visto nem ouvido; e, inversamente: não, não está nesta palavra aqui, nem naquela palavra ali, nenhuma das palavras visíveis e legíveis diz do que se trata agora, trata-se antes do que é dito através das palavras, em seu espaçamento, na distância que as separa. Resulta que, naturalmente, esse retorno, que faz parte do próprio discurso, não cessa de modificá-lo, que o retorno ao texto não é um suplemento histórico que viria se juntar à própria discursividade e a duplicaria com um ornamento que, afinal, não é essencial; é um trabalho efetivo e necessário de transformação da própria discursividade. O reexame do texto de Galileu pode certamente mudar o conhecimento que temos da história da mecânica, mas jamais pode mudar a própria mecânica. Em compensação, o reexame dos textos de Freud modifica a própria psicanálise, e os de Marx, o marxismo. [Ora, para caracterizar esses retornos, é preciso acrescentar uma última característica: eles se fazem na direção de uma espécie de costura enigmática da obra e do autor. De fato, é certamente enquanto ele é texto do autor e deste autor que o texto tem valor instaurador, e é por isso, por que ele é texto deste autor, que é preciso retornar a ele. Não há nenhuma probabilidade de que a redescoberta de um texto desconhecido de Newton ou de Cantor modifique a cosmologia clássica ou a teoria dos conjuntos, tais como foram desenvolvidas (no máximo, essa exumação é suscetível de modificar o conhecimento histórico que temos de sua gênese). Em compensação, a reedição de um texto como o Projeto12 de Freud – e na mesma medida em que é um texto de Freud – corre sempre o risco de modificar não o conhecimento histórico da psicanálise, mas seu campo teórico – e isso só ocorreria deslocando sua acentuação ou seu centro de gravidade. Através de tais retornos, que fazem parte de sua própria trama, os campos discursivos de que falo comportam do ponto de vista do seu autor “fundamental” e mediato uma relação que não é idêntica à relação que um texto qualquer mantém com seu autor imediato.]

O que acabo de esboçar a propósito dessas “instaurações discursivas” é, certamente, muito esquemático. Em particular, a oposição que tentei traçar entre uma tal instauração e a fundação científica. Nem sempre é fácil decidir se se trata disso ou daquilo: e nada prova que ali estão dois procedimentos exclusivos um em relação ao outro. Tentei essa distinção com um único fim: mostrar que essa função autor, já complexa quando se tenta localizá-la no nível de um livro ou de uma série de textos que trazem uma assinatura definida, comporta também novas determinações, quando se tenta analisá-la em conjuntos mais amplos – grupos de obras, disciplinas inteiras.

[Lamento muito não ter podido trazer, para o debate que agora vai se seguir, nenhuma proposição positiva: no máximo, direções para um trabalho possível, caminhos de análise. Mas devo pelo menos dizer, em algumas palavras, para terminar, as razões pelas quais dou a isso uma certa importância.]

Tal análise, se ela fosse desenvolvida, talvez permitisse introduzir uma tipologia dos discursos. Parece-me, de fato, pelo menos em uma primeira abordagem, que semelhante tipologia não poderia ser feita somente a partir das características gramaticais dos discursos, de suas estruturas formais, ou mesmo de seus objetos; existem, sem dúvida, propriedades ou relações propriamente discursivas (irredutíveis às regras da gramática e da lógica, como às leis do objeto), e é a elas que é preciso se dirigir para distinguir as grandes categorias de discurso. A relação (ou a não relação) com um autor e as diferentes formas dessa relação constituem – e de uma maneira bastante visível – uma dessas propriedades discursivas.

Por outro lado, acredito que se poderia encontrar aí uma introdução à análise histórica dos discursos. Talvez seja o momento de estudar os discursos não mais apenas em seu valor expressivo ou suas transformações formais, mas nas modalidades de sua existência: os modos de circulação, de valorização, de atribuição, de apropriação dos discursos variam de acordo com cada cultura e se modificam no interior de cada uma; a maneira com que eles se articulam nas relações sociais se decifra de modo, parece-me, mais direto no jogo da função autor e em suas modificações do que nos temas ou nos conceitos que eles operam.

Não será, igualmente, a partir de análises desse tipo que se poderiam reexaminar os privilégios do sujeito? Será que, empreendendo a análise interna e arquitetônica de uma obra (quer se trate de um texto literário, de um sistema filosófico, ou de uma obra científica), colocando entre parênteses as referências biográficas ou psicológicas, já se recolocaram em questão o caráter absoluto e o papel fundador do sujeito. Mas seria talvez preciso voltar a essa suspensão, não para restaurar o tema de um sujeito originário, mas para apreender os pontos de inserção, os modos de funcionamento e as dependências do sujeito. Trata-se de inverter o problema tradicional. Não mais colocar a questão: como a liberdade de um sujeito pode se inserir na consistência das coisas e lhes dar sentido, como ela pode animar, do interior, as regras de uma linguagem e manifestar assim as pretensões que lhe são próprias? Mas antes colocar essas questões: como, segundo que condições e sob que formas alguma coisa como um sujeito pode aparecer na ordem dos discursos? Que lugar ele pode ocupar em cada tipo de discurso, que funções exercer, e obedecendo a que regras? Trata-se, em suma, de retirar do sujeito (ou do seu substituto) seu papel de fundamento originário, e de analisá-lo como uma função variável e complexa do discurso.

[O autor – ou o que eu tentei descrever como a função autor – é, sem dúvida, apenas uma das especificações possíveis da função sujeito. Especificação possível ou necessária? Tendo em vista as modificações históricas ocorridas, não parece indispensável, longe disso, que a função autor permaneça constante em sua forma, em sua complexidade, e mesmo em sua existência. Pode-se imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fossem aceitos sem que a função autor jamais aparecesse13.] Todos os discursos, sejam quais forem seu status, sua forma, seu valor, e seja qual for o tratamento que se dê a eles, desenvolviam-se no anonimato do murmúrio. Não mais se ouviriam as questões por tanto tempo repetidas: “Quem realmente falou? Foi ele e ninguém mais? Com que autenticidade ou originalidade? E o que ele expressou do mais profundo dele mesmo em seu discurso?”. Além destas, outras questões, como as seguintes: “Quais são os modos de existência desses discursos? Em que ele se sustentou, como pode circular, e quem dele pode se apropriar? Quais são os locais que foram ali preparados para possíveis sujeitos? Quem pode preencher as diversas funções de sujeito?”. E, atrás de todas essas questões, talvez apenas se ouvisse o rumor de uma indiferença: “Que importa quem fala?”.

  1. Wahl: Agradeço a Michel Foucault por tudo o que ele nos disse, e que provoca a discussão. Pergunto logo quem quer tomar a palavra.
  1. d’Ormesson: Na tese de Michel Foucault, a única coisa que eu não havia compreendido bem, e sobre a qual todo mundo, até a mídia, tinha chamado a atenção, era o desaparecimento do homem. Dessa vez, Michel Foucault se declarou contra o elo mais fraco da cadeia: ele atacou não mais o homem, mas o autor. E compreendo bem o que pôde levá-lo, nos acontecimentos culturais dos últimos cinquenta anos, a essas considerações: “A poesia deve ser feita por todos”, “isso fala”, etc. Eu me fazia um certo número de perguntas: eu me dizia que, da mesma forma, há autores na filosofia e na literatura. Vários exemplos poderiam ser dados, parecia-me, na literatura e na filosofia, de autores que são pontos de convergência. As tomadas de posição política são também o feito de um autor e é possível aproximá-las de sua filosofia.

Pois bem, estou completamente convicto, porque tenho a impressão de que em uma espécie de prestidigitação, extremamente brilhante, o que Michel Foucault tomou do autor, ou seja, sua obra, ele lhe devolveu com lucro, o nome de instaurador de discursividade, já que não apenas ele lhe restitui sua obra, mas também a dos outros.

  1. Goldmann: Entre os teóricos notáveis de uma escola que ocupa um lugar importante no pensamento contemporâneo e caracteriza-se pela negação do homem em geral e, a partir daí, do sujeito em todos os seus aspectos, e também do autor, Michel Foucault, que não formulou explicitamente essa última negativa, mas a sugeriu ao longo de sua exposição, concluindo-a na perspectiva da supressão do autor, é certamente uma das figuras mais interessantes e difíceis de combater e criticar. Pois, a uma posição filosófica fundamentalmente anticientífica, Michel Foucault alia um notável trabalho de historiador, e parece claramente provável que, graças a um certo número de análises, sua obra marcará uma etapa importante no desenvolvimento da história científica da ciência e mesmo da realidade social.

É então no plano do seu pensamento propriamente filosófico, e não no de suas análises concretas, que quero hoje colocar minha intervenção.

Permitam-me, entretanto, antes de abordar as três partes do enunciado de Michel Foucault, referir-me à intervenção que acaba de ocorrer para dizer que estou absolutamente de acordo com o interveniente quanto ao fato de que Michel Foucault não é o autor, nem certamente o instaurador do que ele acaba de nos dizer. Porque a negação do sujeito é atualmente a ideia central de todo um grupo de pensadores, ou mais exatamente de toda uma corrente filosófica. E se, no interior dessa corrente, Foucault ocupa um lugar particularmente original e brilhante, é preciso, entretanto, integrá-lo ao que se poderia chamar de a escola francesa do estruturalismo não genético, e que inclui principalmente os nomes de Lévi-Strauss, Roland Barthes, Althusser, Derrida etc.

Quanto ao problema particularmente importante levantado por Michel Foucault: “Quem fala?”, penso ser preciso acrescentar um segundo: “O que ele diz?”.

“Quem fala?” A luz das ciências humanas contemporâneas, a ideia do indivíduo como autor último de um texto, e principalmente de um texto importante e significativo, parece cada vez menos sustentável. Após um certo número de anos, toda uma série de análises concretas mostrou de fato que, sem negar nem o sujeito nem o homem, se é obrigado a substituir o sujeito individual por um sujeito coletivo ou transindividual. Em meus próprios trabalhos, fui levado a mostrar que Racine não é sozinho o único e verdadeiro autor das tragédias racinianas, mas que estas nasceram no bojo do desenvolvimento de um conjunto estruturado de categorias mentais que era obra coletiva, o que me levou a encontrar como “autor” dessas tragédias, em última instância, a nobreza de toga, o grupo jansenista e, no interior deste, Racine como indivíduo particularmente importante14.

Quando se coloca o problema “Quem fala?”, há atualmente nas ciências humanas pelo menos duas respostas que, opondo-se rigorosamente uma à outra, recusam cada uma a ideia tradicionalmente admitida do sujeito individual. A primeira, que eu chamaria de estruturalismo não genético, nega o sujeito que ela substitui pelas estruturas (linguísticas, mentais, sociais etc.) e apenas atribui aos homens e ao seu comportamento o lugar de um papel, de uma função no interior dessas estruturas que constituem o objetivo final da pesquisa ou da explicação.

Opostamente, o estruturalismo genético também recusa, na dimensão histórica e na dimensão cultural da qual faz parte, o sujeito individual; entretanto, ele não suprime, por isso, a ideia de sujeito, mas substitui o sujeito individual pelo sujeito transindividual. Quanto às estruturas, longe de aparecer como realidades autônomas e mais ou menos últimas, elas apenas são nessa perspectiva uma propriedade universal de toda práxis e toda realidade humanas. Não há fato humano que não seja estruturado, nem estrutura que não seja significativa, o que quer dizer, como qualidade do psiquismo e do comportamento de um sujeito, que não preencha uma função. Em suma, três teses centrais nessa posição: há um sujeito; na dimensão histórica e cultural, esse sujeito é sempre transindividual; toda atividade psíquica e todo comportamento do sujeito são sempre estruturados e significativos, ou seja, funcionais.

Acrescentarei que encontrei também uma dificuldade levantada por Michel Foucault: a da definição da obra. De fato, e difícil, inclusive impossível, defini-la em relação a um sujeito individual. Como disse Foucault, quer se trate de Nietzsche ou de Kant, de Racine ou de Pascal, qual o limite do conceito de obra? É preciso limitá-la aos textos publicados? Ou é preciso incluir todos os escritos não publicados, até mesmo as notas de lavanderia?

Se o problema é colocado na perspectiva do estruturalismo genético, obtém-se uma resposta que vale não somente para todas as obras culturais, mas também para qualquer fato humano e histórico. O que foi a Revolução Francesa? Quais foram os períodos fundamentais da história das sociedades e das culturas capitalistas ocidentais? A resposta suscita dificuldades análogas. Voltemos, entretanto, à obra: seus limites, como os de qualquer fato humano, definem-se pelo fato de que ela constitui uma estrutura significativa fundamentada na existência de uma estrutura mental coerente elaborada por um sujeito coletivo. A partir daí, pode ocorrer que se seja obrigado a eliminar, para delimitar essa estrutura, certos textos publicados, ou incluir, pelo contrário, alguns outros inéditos; enfim, não é preciso dizer por que se pode facilmente justificar a exclusão da nota de lavanderia. Acrescentarei que, nessa perspectiva, o correlacionamento da estrutura coerente com sua funcionalidade, em relação a um sujeito transindividual, ou – para empregar uma linguagem menos abstrata – a correlação da interpretação com a explicação, assume uma importância particular.

Apenas um exemplo: durante minhas pesquisas, eu me confrontei com o problema de saber em que medida Les provinciales e os Pensées de Pascal podem ser considerados como uma obra15 e, após uma análise cuidadosa, cheguei à conclusão de que esse não é o caso e de que se trata de duas obras que têm dois autores diferentes. De um lado, Pascal com o grupo Arnauld-Nicole e os jansenistas moderados no que concerne a Les provinciales; de outro, Pascal com o grupo dos jansenistas extremistas no que concerne aos Pensées. Dois autores diferentes, que têm um setor parcial comum: o indivíduo Pascal e talvez alguns outros jansenistas que tiveram a mesma evolução.

Outro problema levantado por Michel Foucault em seu comentário é o da escrita. Acredito ser melhor dar um nome a essa discussão, porque presume que todos pensamos em Derrida e em seu sistema. Sabemos que Derrida tenta – desafio que me parece paradoxal – elaborar uma filosofia da escrita negando totalmente o sujeito. Isso é tão mais curioso na medida em que seu conceito de escrita, inclusive, aproxima-se muito do conceito dialético de práxis. Um exemplo entre outros: eu concordaria com ele quando nos diz que a escrita deixa traços que acabam por se apagar; e a propriedade de qualquer práxis, quer se trate da construção de um templo que desaparece ao cabo de vários séculos ou vários milênios, da abertura de uma rua, da modificação de seu trajeto ou, mais prosaicamente, do preparo de duas salsichas que são comidas a seguir. Mas penso, como Foucault, que é preciso perguntar: “Quem cria os traços? Quem escreve?”.

Como não tenho nenhuma observação sobre a segunda parte do comentário, com a qual estou inteiramente de acordo, passo à terceira.

Parece-me que, nesse caso também, a maior parte dos problemas levantados encontra sua resposta na perspectiva do sujeito transindividual. Vou deter-me apenas em um único: Foucault fez uma distinção justificada entre o que ele chama de os “instauradores” de uma nova metodologia científica e os criadores. O problema é real, mas, em vez de lhe atribuir o caráter relativamente complexo e obscuro que ele assumiu em sua exposição, não se pode encontrar o fundamento epistemológico e sociológico dessa oposição na distinção, comum no pensamento dialético moderno e principalmente na escola lukacsiana, entre as ciências da natureza, relativamente autônomas como estruturas científicas, e as ciências humanas, que não poderiam ser positivas sem serem filosóficas? Não é certamente por acaso que Foucault tenha oposto Marx, Freud e, em uma certa medida, Durkheim a Galileu e aos criadores da física mecanicista. As ciências do homem – explicitamente para Marx e Freud, implicitamente para Durkheim – supõem a união íntima entre as constatações e as valorizações, o conhecimento e a tomada de posição, a teoria e a prática sem, por isso, certamente, abrir mão do rigor teórico. Assim como Foucault, penso que muito frequentemente, e principalmente hoje, a reflexão sobre Marx, Freud e mesmo Durkheim se apresenta sob a forma de um retorno às fontes, pois se trata de um retorno a um pensamento filosófico, contra as tendências positivistas, que querem fazer as ciências do homem a partir do modelo das ciências da natureza. Seria ainda preciso distinguir o que é o retorno autêntico do que, sob a forma de um pretenso retorno às fontes, é na realidade uma tentativa de assimilar Marx e Freud ao positivismo e ao estruturalismo não genético contemporâneo que lhes são totalmente estranhos.

É sob essa perspectiva que gostaria de terminar minha intervenção, mencionando a frase que se tornou célebre, escrita no mês de maio por um estudante no quadro-negro de uma sala da Sorbonne, e que me parece exprimir o essencial da crítica ao mesmo tempo filosófica e científica do estruturalismo não genético: “As estruturas não descem para a rua”, isto é: não são jamais as estruturas que fazem a história, mas os homens, embora a ação destes últimos tenha sempre um caráter estruturado e significativo.

  1. Foucault: Vou tentar responder. A primeira coisa que direi é que jamais, de minha parte, empreguei a palavra estrutura. Procurem-na em As palavras e as coisas, e não a encontrarão. Então, gostaria muito que todas as facilidades sobre o estruturalismo me sejam poupadas, ou que se dê ao trabalho de justificá-las. Mais ainda: não disse que o autor não existia; eu não o disse e estou surpreso que meu discurso tenha sido usado para tal contrassenso. Retomemos um pouco tudo isso.

Falei de certa temática que se pode localizar tanto nas obras como na crítica, e, se vocês querem: o autor deve se apagar ou ser apagado em proveito das formas próprias ao discurso. Isto posto, a pergunta que eu me fazia era a seguinte: o que essa regra do desaparecimento do escritor ou do autor permite descobrir? Ela permite descobrir o jogo da função autor. E o que eu tentei analisar é precisamente a maneira pela qual a função autor se exercia, no que se pode chamar de a cultura europeia após o século XVII. Eu o fiz, certamente, de maneira muito geral, e de uma forma que eu gostaria que fosse bem mais abstrata, porque se tratava de uma ordenação do conjunto. Definir de que maneira se exerce essa função, em que condições, em que campo etc., isso não significa, convenhamos, dizer que o autor não existe.

O mesmo em relação a essa negação do homem mencionada por Goldmann: a morte do homem é um tema que permite revelar a maneira pela qual o conceito de homem funcionou no saber. E se avançassem na leitura, evidentemente austera, das primeiras ou das últimas páginas do que eu escrevi, perceber-se-ia que essa afirmação remete à análise de um funcionamento. Não se trata de afirmar que o homem está morto, mas, a partir do tema – que não é meu e que não parou de ser repetido após o final do século XIX – que o homem está morto (ou que ele vai desaparecer ou será substituído pelo super-homem), trata-se de ver de que maneira, segundo que regras se formou e funcionou o conceito de homem. Fiz a mesma coisa em relação à noção de autor. Contenhamos, então, nossas lágrimas.

Outra observação. Foi dito que eu tomava o ponto de vista da não cientificidade. Certamente, não pretendo ter feito aqui obra científica, mas gostaria de conhecer de que instância me vem essa crítica.

  1. de Gandillac: Eu me perguntei, ao ouvi-lo, a partir de que critério preciso você distinguia os “instauradores de discursividade” não somente dos “profetas” de caráter mais religioso, mas também dos promotores de “cientificidade”, aos quais não é certamente inconveniente juntar Marx e Freud. E se uma categoria original, situada de qualquer forma além da cientificidade e do profetismo (e decorrendo no entanto dos dois), é admitida, eu me surpreendo de não ver ali nem Platão nem sobretudo Nietzsche, que você nos apresentou recentemente em Royaumont, se minha memória não falha, como tendo exercido em nossa época uma influência semelhante à de Marx e Freud.
  1. Foucault: Eu lhe responderei – mas como hipótese de trabalho, pois, uma vez mais, o que eu apontei para vocês não era, infelizmente, nada mais que um plano de trabalho, uma determinação de posição – que a situação transdiscursiva na qual se encontraram autores como Platão e Aristóteles a partir do momento em que eles começaram a escrever até a Renascença deve ser analisada; a maneira como eles eram citados, como se referia a eles, como eram interpretados, como se restaurava a autenticidade de seus textos etc., tudo isso obedece certamente a um sistema de funcionamento. Acredito que com Marx e com Freud trata-se de autores cuja posição transdiscursiva não pode ser superposta à posição transdiscursiva de autores como Platão e Aristóteles. E seria preciso descrever o que é essa transdiscursividade moderna, em oposição à transdiscursividade antiga.
  1. Goldmann: Apenas uma questão: quando admite a existência do homem ou do sujeito, você as reduz, sim ou não, ao status de função?
  1. Foucault: Não disse que eu as reduzia a uma função, eu analisava a função no interior da qual qualquer coisa como um autor poderia existir. Não fiz aqui a análise do sujeito, fiz a análise do autor. Se eu tivesse feito uma conferência sobre o sujeito, provavelmente eu teria analisado da mesma maneira a função sujeito, ou seja, teria feito a análise das condições nas quais é possível que um indivíduo preenchesse a função do sujeito. Seria preciso, ainda, especificar em que campo o sujeito é sujeito, e de que (do discurso, do desejo, do processo econômico etc.). Não há sujeito absoluto.
  1. Ullmo: Fiquei profundamente interessado em sua conferência, porque ela reavivou um problema que é muito importante atualmente na pesquisa científica. A pesquisa científica e, particularmente, a pesquisa matemática são casos-limites nos quais um certo número de conceitos que você destacou aparecem de maneira muito clara. Isso se tornou de fato um problema bastante angustiante nas vocações científicas que se delineiam por volta dos vinte anos, o de confrontar-se com o problema que você colocou de início: “Que importa quem fala?”. Antigamente, uma vocação científica era a própria vontade de falar, de trazer uma resposta aos problemas fundamentais da natureza ou do pensamento matemático; e isso justificava vocações, justificava, pode-se dizer, vidas de abnegação e de sacrifício. Atualmente, esse problema é bem mais delicado, porque a ciência parece muito mais anônima; e, de fato, “que importa quem fala”, o que não foi encontrado por x em junho de 1969 será encontrado por y em outubro de 1969. Então, sacrificar sua vida a essa pequena antecipação e que continua anônima é realmente um problema extraordinariamente grave para quem tem a vocação e para quem deve ajudá-lo. E acredito que esses exemplos de vocações científicas vão esclarecer um pouco sua resposta no sentido, aliás, que você indicou. Vou tomar o exemplo de Bourbaki16; poderia tomar o exemplo de Keynes, mas Bourbaki constitui um exemplo-limite: trata-se de um indivíduo múltiplo: o nome do autor parece apagar-se verdadeiramente em proveito de uma coletividade, e de uma coletividade renovável, pois não são sempre os mesmos que são Bourbaki. Ora, no entanto, existe um autor Bourbaki, e esse autor Bourbaki se manifesta em discussões extraordinariamente violentas, direi mesmo patéticas, entre os participantes do Bourbaki: antes de publicar um de seus fascículos – esses fascículos que parecem tão objetivos, tão desprovidos de paixão, álgebra linear ou teoria dos conjuntos – de fato há noites inteiras de discussão e de brigas para se chegar a um acordo sobre um pensamento fundamental, sobre uma interiorização. E aí está o único ponto sobre o qual eu teria encontrado um desacordo muito profundo com você, porque, no início, você eliminou a interioridade. Acredito que não existe autor a não ser quando há interioridade. E esse exemplo de Bourbaki, que não é de forma alguma um autor no sentido banal, demonstra isso de maneira absoluta. Tendo dito isso, acredito que restabeleça um sujeito pensante, que talvez seja de natureza original, mas que é bastante claro para aqueles que têm o hábito da reflexão científica. Além disso, um artigo muito interessante de Critique, de Michel Serres, “A Tradição da Ideia”, colocava isso em evidência. Nas matemáticas, não é o axioma que conta, não é a combinatória, não é isso que você chamaria de plano discursivo, o que conta é o pensamento interno, é a percepção de um sujeito que é capaz de sentir, de integrar, de possuir aquele pensamento interno. Se eu tivesse tempo, o exemplo de Keynes seria ainda mais surpreendente do ponto de vista econômico. Vou simplesmente concluir: penso que seus conceitos, seus instrumentos de pensamento sejam excelentes. Você respondeu, na quarta parte, as questões que eu me tinha feito nas três primeiras. Onde está o que especifica um autor? Pois bem, o que especifica um autor é justamente a capacidade de remanejar, de reorientar esse campo epistemológico ou esse plano discursivo, que são fórmulas suas. De fato, só existe autor quando se sai do anonimato, porque se reorientam os campos epistemológicos, porque se cria um novo campo discursivo, que modifica, que transfere radicalmente o precedente. O caso mais surpreendente é o de Einstein: é um exemplo absolutamente espantoso sobre essa relação. Muito me agrada ver que M. Bouligand concorda comigo; estamos inteiramente de acordo sobre isso. Consequentemente, sobre esses dois critérios: necessidade de interiorizar uma axiomática e o critério do autor enquanto remaneja o campo epistemológico, acredito que se restitui um sujeito bastante potente, se ouso dizê-lo. O que, aliás, acredito, não está ausente do seu pensamento.
  1. Lacan: Recebi o convite muito tarde. Lendo-o, notei, no último parágrafo, o “retorno a”. Retorna-se talvez a muitas coisas, mas, enfim, o retorno a Freud é alguma coisa que eu tomei como uma espécie de bandeira, em um certo campo, e aí eu só posso lhe agradecer; você correspondeu inteiramente à minha expectativa. A propósito de Freud, evocando especialmente o que significa o “retorno a”, tudo o que você disse me parece, pelo menos do ponto de vista em que eu pude nele contribuir, perfeitamente pertinente.

Em segundo lugar, gostaria de enfatizar que, estruturalismo ou não, não me parece de forma alguma que se trate, no campo vagamente determinado por essa etiqueta, da negação do sujeito. Trata-se da dependência do sujeito, o que é completamente diferente; e muito particularmente, no nível do retorno a Freud, da dependência do sujeito em relação a alguma coisa verdadeiramente elementar, e que tentamos isolar com o termo “significante”.

Em terceiro lugar – limitarei a isso minha intervenção –, não considero o que seja de forma alguma legítimo ter escrito que as estruturas não descem para a rua, porque se há alguma coisa que os acontecimentos de maio demonstram é precisamente a descida para a rua das estruturas. O fato de que ela seja escrita no próprio lugar em que se opera essa descida para a rua nada mais prova que, simplesmente, o que é muito frequente, e mesmo o mais frequente, dentro do que se chama de ato, e que ele se desconhece a si mesmo.

  1. Wahl: Resta-nos agradecer a Michel Foucault por ter vindo, ter falado, ter principalmente escrito sua conferência, ter respondido às perguntas feitas, que, aliás, foram muito interessantes. Agradeço também àqueles que fizeram intervenções e aos ouvintes. “Quem escuta, quem fala?”: poderemos responder “em casa” a essa questão.

Notas

  1. Clement d’Alexandrie, Les Stromates, Stromate I (trad. M. Caster), Paris, Ed. du Cerf, Col. “Sources Chretiennes”. n 30, 1951; Stromate II (trad. C. Mondesert), ibid., n. 38, 1954; Stromate V (trad. P. Voulet), ibid., n. 278, 1981
  1. Diogene Laerce, De vita et moribus philosophorum, Lyon. A. Vicentium, 1556 (Vies, doctrines et sentences des philosophes illustres. trad. R. Genaille, Paris, Classiques Gamier, 1933, 2 vols.).
  1. Searle (J. R.), Speech acts. An essay in the philosophy of language, Cambridge. Cambridge University Press, 1969 (Les actes de langage. trad. H. Panchard. Paris, Hermann, Col. “Savoir”, 1972).
  1. Aristóteles, Les premiers analytiques (trad. J. Tricot), in Organon, Paris, Vrin, t. III, 1947. Les seconds analytiques (trad. J. Tricot), ibid., t. IV, 1947.
  1. Bacon (F.), Novum organum scientiarum, Londres, J. Billium, 1620 (Novum organum, trad. M. Malherbe e J.-M. Pousseur, Paris, PUF, Col. “Epimethee”, 1986).
  1. São Jerônimo, De viris illustribus (Des hommes illustres, trad, abade Bareille, in Oeuvres complètes, Paris, Louis Vivès, 1878, t. III, pp. 270-338).
  1. Freud (S.), Die Traumdeutung, Viena, Franz Deuticke, 1900 (L’interpretation des rêves. trad. D. Berger, Paris, PUF, 1967), Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten. Viena, Franz Deuticke, 1905 (Le mot d’esprit et sa relation à l’inconscient, trad. D. Messier. Paris. Gallimard. Col. “Connaissance de l’Inconscient”, 1988.)
  1. Marx (K.) e Engels (F.), Manifest der kommunistischen Partei, Londres, J. E. Burghard, 1848 (Le manifeste du parti communiste, trad. M. Tailleur. Paris, Editions Sociales, 1951); Das Kapital. Kritik der politischen Oekonomie, Hamburgo, O. Meissner, 1867-1894, 3 vols. (Le capital. Critique de l’économie politique, trad. J. Roy, ed. revisada pelo autor e revista por M. Rubel. livro I, in Oeuvres, Paris, Gallimard, Col. “Bibliotheque de la Pleiade”, t. I, 1965, pp. 630-690; livros II e III, ibid., t. II, 1968, pp. 867-1.485).
  1. Radcliffe (A. W.), Les visions du château des Pyrénées (romance apócrifo; trad. G. Garnier e Zimrnerman da edição de Londres em 1803), Paris. 1810, 4 vols.
  1. Chomsky (N.) Cartesian linguistics. A chapter in the history of rationalist thought, Nova York, Harper & Row, 1966 (La linguistique cartésienne. Un chapitre de l’histoire de la pensée rationaliste, seguido de: La nature formelle du langage, trad. N. Delanoë e D. Sperber, Paris, Éd. du Seuil, Col. “L’Ordre Philosophique”, 1969).
  1. Serres (M.), “Les anamnèses mathématiques”, Archives Internationales d’Histoire des Sciences, n. 78-79, janeiro-junho de 1967 (retomado em Hermès ou la communication, Paris, Éd. de Minuit, Col. “Critique”, pp. 78-112).
  1. Freud (S). Entwurf einer Psychologic (1895; publicação póstuma), in Aus den Anfängen der Psychoanalyse, Londres, Imago Publishing, 1950, pp. 371-466 (Esquisse d’une psychologie scientifique, trad. A. Berman, in La naissance de la psychanalyse. Paris, PUF, 1956, pp. 307-396).
  1. Variante: “Mas há também razões que resultam do status ‘ideológico’ do autor. A questão então se torna: como afastar o grande risco, o grande perigo com os quais a ficção ameaça nosso mundo? A resposta é que se pode afastá-los através do autor. O autor torna possível uma limitação da proliferação perigosa das significações em um mundo onde se é parcimonioso não apenas em relação aos seus recursos e riquezas, mas também aos seus próprios discursos e suas significações. O autor é o princípio de economia na proliferação do sentido. Consequentemente, devemos realizar a subversão da ideia tradicional do autor. Temos o costume de dizer, examinamos isso acima, que o autor é a instância criadora que emerge de uma obra em que ele deposita, com uma infinita riqueza e generosidade, um mundo inesgotável de significantes. Estamos acostumados a pensar que o autor é tão diferente de todos os outros homens, de tal forma transcendente a todas as linguagens, que ao falar o sentido prolifera e prolifera infinitamente.

A verdade é completamente diferente: o autor não é uma fonte infinita de significações que viriam preencher a obra, o autor não precede as obras. Ele é um certo princípio funcional pelo qual, em nossa cultura, delimita-se, exclui-se ou seleciona-se: em suma, o princípio pelo qual se entrava a livre circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição, recomposição da ficção. Se temos o hábito de apresentar o autor como gênio, como emergência perpétua de novidade, é porque na realidade nós o fazemos funcionar de um modelo exatamente inverso. Diremos que o autor é uma produção ideológica na medida em que temos uma representação invertida de sua função histórica real. O autor é então a figura ideológica pela qual se afasta a proliferação do sentido.

Dizendo isso, pareço evocar uma forma de cultura na qual a ficção não seria rarefeita pela figura do autor. Mas seria puro romantismo imaginar uma cultura em que a ficção circularia em estado absolutamente livre, à disposição de cada um; desenvolver-se-ia sem atribuição a uma figura necessária ou obrigatória. Após o século XVIII, o autor desempenha o papel de regulador da ficção, papel característico da era industrial e burguesa, do individualismo e da propriedade privada. No entanto, levando em conta as modificações históricas em curso, não há nenhuma necessidade de que a função autor permaneça constante em sua forma ou em sua complexidade ou em sua existência. No momento preciso em que nossa sociedade passa por um processo de transformação, a função autor desaparecerá de uma maneira que permitirá uma vez mais à ficção e aos seus textos polissêmicos funcionar de novo de acordo com um outro modo, mas sempre segundo um sistema obrigatório que não será mais o do autor, mas que fica ainda por determinar e talvez por experimentar” (Trad. D. Defert.).

  1. Goldmann (L.), Le Dieu caché. Étude sur la vision tragique dans les Pensées de Pascal et dans le théâtre de Racine, Paris, Gallimard, Col. “Bibliotheque des Idées”, 1955.

 

  1. Pascal (B.), Les provinciales (publicados de início separadamente sob a forma de folhetos em 1655, eles foram editados com o título Les provinciales, ou Les lettres écrites par Louis de Montalte à un provincial de ses amis et aux RR. PP. Jésuites, sur le sujet de la morale et de la politique de ses pères, Colonia, Pierre de La Vallée, 1657), in Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, Col. “Bibliothèque de la Pléiade”, 1960, pp. 657-904; Les pensées (publicação póstuma com o título Pensées de M. Pascal sur la religion et sur quelques autres sujets. Qui ont été trouvées aprés sa mort parmi ses papiers, Paris, Guillaume Desprez, 1670), ibid., pp. 1079-1358.
  1. Nicolas Bourbaki: pseudônimo coletivo usado por um grupo de matemáticos franceses contemporâneos que empreenderam o remanejamento da matemática em bases axiomáticas rigorosas (Henri Cartan, Claude Chevalley, Jean Dieudonné, Charles Ehresmann, André Weil etc.).

[1] In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: Estética – literatura e pintura, música e cinema (vol. III). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, pp.  264-298.