Ainda em sequência cronológica, […] avulta a crítica de João Gaspar Simões que tem por mote verrumar os três últimos livros do escritor alagoano publicados até então. Trata-se da longa recensão “Os Livros da Semana: Angústia, S. Bernardo, Vidas Secas, Romances por Graciliano Ramos”, estampada no suplemento literário do Diário de Lisboa, em 1º de setembro de 1938. Como se verá, os posicionamentos desse “mestre-escola” presencista reforçam a hipótese de que a recepção da produção graciliana em Portugal se insere num debate mais amplo em torno da função social da arte que toma conta do ambiente literário lusitano a partir da segunda metade dos anos 1930.
João Gaspar Simões, um dos fundadores da revista Presença e expoente, em Portugal, da defesa da chamada “arte pela arte”, colocava-se na linha de frente nos embates contra o grupo neorrealista. Despertou grande polêmica seu ensaio “Discurso sobre a Inutilidade da Arte”[1], em que considera como característica germinal da produção artística o fato de ela ser “inútil”: “não há arte superior que não nos force a querer sermos mais ou menos do que somos, não enquanto homens sociais, é evidente, mas enquanto homens humanos, isto é, enquanto homens para quem os valores de humanidade sobrelevam aos de sociedade”[2]. Nesse sentido, defende que os artistas, em oposição aos cientistas, não trabalhariam na busca de certezas, mas, sim, visariam à “desautomatização” do homem. Na linha de tal argumento, afirma que a literatura não proporcionaria conscientização política e social, uma vez que sua função se resumiria a “identificar-nos com a essência de nossa personalidade”[3].
Na recensão da obra de Graciliano, antes de entrar propriamente na matéria específica de seu artigo, Gaspar Simões volta a enfatizar que o romance deveria afirmar-se, acima de tudo, como um “estudo do homem”. Segundo ele, essa diretriz, única responsável por permitir a uma obra superar as contingências do momento no qual fora produzida, seria desrespeitada pelos artistas brasileiros: “Daí a limitação dos seus horizontes. Daí certos romances brasileiros correrem o perigo de virem a cansar a admiração do tempo”[4]. Em seguida, escorado por tal argumento vaticina:
[…] o romance português pode subir a uma altitude a que o romance brasileiro dificilmente ascenderá. Para isso basta que surja num romancista nacional a força de expressão com que são dotados os melhores brasileiros aliada a um amadurecimento das faculdades de observação psicológica a que só um europeu, de certo modo, pode aspirar.
Tal silogismo de cunho colonialista norteia a exegese da obra de Graciliano empreendida por Gaspar Simões. Segundo ele todo escritor americano (não só brasileiro) seria incapaz de “descer ao estudo do homem no que nele há de mais complexo”; como o autor de Caetés se encaixava nessa premissa geral, logo estava a ele vedada a capacidade de dar vida interior a qualquer personagem. Ao se referir especificamente ao romance Angústia, Gaspar Simões esbraveja que o grande problema da obra se encontrava no fato de o autor procurar dar vida e expressão analítica “a um ser que se nos afigura destituído de interioridade, sobretudo destituído da consciência dessa interioridade”[5]. De modo deliberado, o crítico português recusa a perspectiva de Castro Senda presente nas páginas de O Diabo. Se, para este, Angústia destacava-se por ser um livro de introspecção, de profunda luta interior “que reproduz – Vida”, para aquele a obra pecava pelo convencionalismo psicológico que reduzia o personagem Luís da Silva a “mera criação literária”.
Gaspar Simões também dispensa seus ataques ao drama de Fabiano e sua família:
É convencional, em Vidas Secas, a redução a quadros de quase puro monólogo interior a vida de um pobre vaqueiro, sua mulher e filhos, tipos característicos de psique vegetativa, destituídos de qualquer espécie de interioridade anímica. Isto é: Graciliano Ramos tentou dar existência a qualquer coisa que não existe. Graciliano Ramos quis aplicar à expressão de psicologias rudimentares métodos que só se enquadram bem à expressão de psicologias complexas[6].
Tais considerações entram em choque direto com a recepção entusiástica que Vidas Secas vinha recebendo em Portugal até então pela pena de Eneida, Castro Senda e Abel Salazar. Gaspar Simões, desdobrando o silogismo que lhe serve de medida crítica, toma como descompasso o emprego de uma técnica sofisticada para auscultar seres tão rudimentares, por mais que tal estratégia narrativa permitisse a Graciliano reforçar o estatuto de seres humanos de suas personagens, bem como enfocar o problema de comunicação[7] a realçar a brutalização a que Fabiano e sua família estavam submetidos.
Essa leitura da obra de Graciliano escorada em argumentos de cunho evolucionista e colonialista, estampada nas páginas de um dos principais jornais lusitanos, iria ganhar repercussão no Brasil. Na folha literária Dom Casmurro, cujo redator-chefe à época era Jorge Amado, os juízos emitidos por Gaspar Simões sobre Angústia são vistos como injustiças: “Graciliano é uma prova da capacidade psicológica de um romancista moderno do Brasil”. O crítico português é colocado ao lado dos autores do chamado romance intimista brasileiro para quem “só certos temas são dramáticos, que só as dores e sofrimentos morais existem. […] Será que ele pensa que a miséria não é drama?”[8] Observa-se que as disputas entre os grupos vulgarmente rotulados como “realistas” (ou “neorrealistas”) e “intimistas” (“presencistas”) dão o tom de um e do outro lado do Atlântico[9].
O próprio Graciliano expressou sua contrariedade ao ponto de vista crítico de Gaspar Simões em carta a Antonio Candido datada de 12 de novembro de 1945: “João Gaspar Simões afirmou que o americano é incapaz de introspecção – e com esta premissa arrasou-me. Veja só. Nada mais falso que um silogismo”[10]. Ainda na esfera íntima, já ao final de 1938, o autor de Angústia foi reconfortado pelas palavras de José Osório de Oliveira:
Esse João Gaspar Simões é um pretensioso mestre-escola da literatura portuguesa. Pretensiosismo próprio (pessoal) e pretensiosismo de europeu! Doutoral e ridículo. Para mais, sem autoridade, porque é romancista, e fraco romancista! É este o meu protesto contra essa crítica[11].
Apesar da estreiteza do padrão de medida, “fruto aliás dos critérios psicologistas da época e de seus mitos”[12], Gaspar Simões não deixa de destacar especialmente S. Bernardo como uma obra “forte”. Segundo o crítico, o convencionalismo do narrador-autor Paulo Honório não obnubilaria o modo a um só tempo cínico e seguro por meio do qual ele conta sua vida. Tal estratégia de ficcionalizar a própria escrita do romance, bem como o caráter direto e sóbrio do estilo do autor levam Gaspar Simões a ajuizar que S. Bernardo não se compararia a nenhuma outra obra do romance brasileiro moderno: “Nenhuma se nos impôs até agora com tanta exatidão”[13]. Como se verá, alguns anos depois, no ensaio de natureza globalizante “Machado de Assis e o Problema do Romance Brasileiro”, datado de 1942, Gaspar Simões reafirmará o caráter singular de S. Bernardo enquanto tentativa de passagem do “descritivo para o analítico, ou seja, da descrição meramente lírica e espontânea à visão refletida e dramática”[14].
O fato de Gaspar Simões valorizar S. Bernardo e rebaixar Angústia vai na contramão do enquadramento até então adotado pela crítica brasileira. Em meio a elogios incondicionais, S. Bernardo foi alvo de restrições por parte de Agripino Grieco, Augusto Frederico Schmidt e Lúcia Miguel Pereira, Aderbal Jurema e Carlos Lacerda. Os três primeiros articulistas apontavam para a possível inverossimilhança do narrador-personagem Paulo Honório, tendo em vista a incompatibilidade entre a sofisticação de seu relato e a rusticidade de sua figura[15]. Os dois últimos consideravam que faltava ao romance o enfoque da vida documental dos humildes e o ímpeto de revolta[16]. Já Angústia, de modo unânime, alcança o Prêmio Lima Barreto de 1937, concedido pela Revista Acadêmica que também lhe dedica um número especial com treze artigos sobre a obra, escritos por, entre outros, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Jorge Amado e Rubem Braga. Além disso, em longo inquérito promovido por esta mesma publicação, Angústia foi eleito o segundo maior romance de todos os tempos da literatura brasileira, ficando atrás, somente, de Dom Casmurro, de Machado de Assis[17].
Na medida em que Gaspar Simões reenfatizava que o grande equívoco de Graciliano teria sido aplicar à expressão de psicologias rudimentares métodos condizentes apenas com a expressão de psicologias complexas, Angústia se mostraria mais falho que S. Bernardo. Segundo o crítico português, naquele se encenava um caso de “humanidade complicada”, que faz avultar o passado pitoresco e caricatural do personagem, resultado da suposta imperícia dos autores americanos em empreender análises verticais; já neste predominava o exame de um tipo característico, que se esforça por compreender a si próprio, permanecendo num abismo entre a brutalidade e a ternura: “É a dualidade entre o homem e o mundo a manifestar-se pela primeira vez no moderno romance brasileiro”[18].
Mesmo ao proceder tal valoração positiva de S. Bernardo, Gaspar Simões continuava a ser alvo da crítica brasileira. Em seu celebrado artigo “Visão de Graciliano Ramos”, Otto Maria Carpeaux se refere indiretamente a Gaspar Simões como o crítico mais “incompreensivo” da obra do autor de Angústia, o qual teria aconselhado ao artista alagoano mais generosidade[19], quando a promoção da descida aos infernos das personagens se pautava, numa simbiose entre psicologia e vida social, pela “destruição deste mundo para salvar todas as criaturas”[20].
Vídeo, com debate, do lançamento do livro do Thiago
Excerto de:
SALLA, Thiago Mio. Graciliano na Terra de Camões: Difusão, Recepção e Leitura (1930-1950). Cotia: Ateliê Editorial; São Paulo: Nankin Editorial, 2021.
Thiago Mio Salla é doutor em Ciências da Comunicação e em Letras pela Universidade de São Paulo. Enquanto docente e pesquisador da Escola de Comunicações e Artes da USP e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH/USP, dedica-se às áreas de Literatura Brasileira, Teorias e Práticas da Leitura e Editoração. Entre outros trabalhos, publicou o livro Garranchos – Textos Inéditos de Graciliano Ramos (Record, 2012) e Graciliano Ramos e a Cultura Política (Edusp, 2017), bem como, em parceria com Ieda Lebensztayn, as obras Cangaços (Record, 2014) e Conversas (Record, 2014), ambas também a respeito do autor de Angústia.
[1] Título inspirado, aparentemente, pelo prefácio-manifesto de Théophile Gautier à obra Mademoiselle de Maupin (1835), no qual este escritor francês milita contra a hipocrisia moral, o utilitarismo progressista, a imprensa e estabelece uma profissão de fé em favor da “arte pela arte”: “Só há beleza naquilo que não serve de nada; tudo que é útil é feio” (Gérad Genette, Paratextos Editoriais, Cotia, SP, Ateliê Editorial, 2009, p. 202). Cf. Alexandre Pinheiro Torres, O Movimento Neorrealista em Portugal em sua Primeira Fase, [Lisboa], Instituto de Cultura Portuguesa, 1983, pp. 42-45.
[2] João Gaspar Simões, “Discurso sobre a Inutilidade da Arte”, Revista de Portugal, n. 1, out. 1937, p. 115.
[3] Idem, p. 116.
[4] João Gaspar Simões, “Os Livros da Semana: Angústia, S. Bernardo, Vidas Secas, Romances por Graciliano Ramos”, Diário de Lisboa, 1º set. 1938, p. 4.
[5] Idem, ibidem.
[6] Idem, ibidem.
[7] Benjamin Abdala Júnior, A Escrita Neo-realista, São Paulo, Ática, 1981, p. 43.
[8] “O Romance brasileiro e João Gaspar Simões”, Dom Casmurro, Rio de Janeiro, ano 3, n. 114, 19 ago. 1939, p. 2. Este assunto volta a ser abordado no texto “Conversa com um Amigo”, também publicado em Dom Casmurro, mas um pouco depois, em 20 de janeiro de 1940.
[9] “No caso português, a oposição ideológica entre presencistas e neorrealistas é muito mais sutil (se é que existe oposição sutil) do que aquela que se desenhou no Brasil, onde uma efetiva polarização teve lugar no interior de uma mesma geração – e não entre duas gerações como em Portugal” [Luís Bueno, “O Romance Brasileiro na Visão de Dois Críticos Portugueses”, em Maria João Marçalo et al. (orgs.), Língua Portuguesa: Ultrapassar Fronteiras, Juntar Culturas, Évora, Universidade de Évora, 2010, disponível em <http://www.simelp2009.uevora.pt/pdf/slt56/06.pdf >, acesso em 10 abr. 2018].
[10] Graciliano Ramos, “Carta a Antonio Candido”, Rio de Janeiro, 12 nov. 1945, em Antonio Candido, Ficção e Confissão, São Paulo, Editora 34, 1992, p. 8.
[11] José Osório de Oliveira, “Cartão para Graciliano Ramos”, [1938], documento pertencente ao Arquivo IEB/USP, Fundo Graciliano Ramos (Código de referência: GR-CP-074, caixa 037).
[12] Fernando Alves Cristóvão, “O Romance Nordestino Brasileiro entre o Realismo Crítico e o Realismo Socialista”, Caderno para Estudos, n. 3, 2013, p. 49.
[13] João Gaspar Simões. “Os Livros da Semana: Angústia, S. Bernardo, Vidas Secas, Romances por Graciliano Ramos”, Diário de Lisboa, 1º set. 1938, p. 4.
[14] João Gaspar Simões, “Machado de Assis e o Problema do Romance Brasileiro”, em Caderno de um Romancista: Ensaios, Lisboa, Livraria Popular de Francisco Franco, [1942], p. 269.
[15] Augusto Frederico Schimdt, “Crítica, Romances”, Diário de Notícias (Rio de Janeiro), 16 dez. 1934; Agripino Grieco, “Um Romance”, Diário de Pernambuco, 30 dez. 1934; Lúcia Miguel Pereira, “S. Bernardo e o Mundo Seco de Graciliano Ramos”, Gazeta de Notícias, 24 dez. 1934.
[16] Aderbal Jurema, “S. Bernardo, de Graciliano Ramos”, Boletim de Ariel, ano IV, n. 3, dez. 1934, p. 68.; Carlos Lacerda, “S. Bernardo e o Cabo da Faca”, Revista Acadêmica, n. 9, mar. 1935.
[17] Iniciado em junho de 1939, tal inquérito realizado pela Revista Acadêmica foi finalizado apenas em junho de 1941. Ao longo desses dois anos, registrou votos de mais de uma centena de intelectuais. “Seu caráter inclusivo lhe dá representatividade e uma legitimidade que as novas enquetes não podem ter” (Luís Bueno, Uma História do Romance de 30, São Paulo, Edusp; Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2006, p. 621).
[18] João Gaspar Simões, “Machado de Assis e o Problema do Romance Brasileiro”, p. 270.
[19] “Cada vez que o romancista cede à tentação de formular programas de reformas sociais — a professora Madalena fala assim – cai logo na armadilha do seu inimigo mais detestado: o lugar-comum; no caso, o lugar-comum humanitário, da “generosidade”, que o seu crítico mais incompreensivo lhe aconselhou” (Otto Maria Carpeaux, “Visão de Graciliano Ramos”, Diretrizes, 29 out. 1942, p. 6). Carpeaux parece aludir a este trecho: “Da fusão do lirismo com o sarcasmo, isto é, da fusão do homem amoroso e contemplativo com o homem satírico e ativo pode nascer um dia esse romance capaz de transcender a pura exaltação lírica que nele impera hoje. S. Bernardo é uma promessa” (João Gaspar Simões, “Machado de Assis e o Problema do Romance Brasileiro”, p. 271). A indicação de que o crítico austríaco se referia a Gaspar Simões encontra-se em Fernando Alves Cristóvão, “Conhecimento e Apreciação Crítica de Graciliano Ramos em Portugal”, em Cruzeiro do Sul ao Norte: Estudos Luso-Brasileiros, Lisboa, Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1983, pp. 132-133.
[20] Otto Maria Carpeaux, op. cit.