“Desconfio que sem uma pitada de comicidade/não se pode escrever hoje versos verdadeiramente sérios”. Sirvo-me desse dístico extraído de um poema de W. H. Auden (em tradução de José Paulo Paes) para começar a pensar a respeito de alguns tópicos da poesia de Décio Pignatari. Confesso que o teor de minha abordagem será um tanto aleatório e subjetivo; não farei, portanto, as vezes do analista margeado pela opção da linearidade histórica, nem do sabido crítico cujo apetite exaustivo exige a totalidade da obra para satisfazer sua capacidade de bucho ruminante. Reservo a minha paciência apenas para dois aspectos bem conhecidos do fazer pícaro-criativo de Décio Pignatari, a saber, sua irreverência de linhagem notoriamente oswaldiana (Décio mantém uma relação mediúnica com o antropófago do modernismo) e sua condição de pornógrafo lírico, românico e romântico.
Desta maneira, com a remissão aos versos de Auden, não pretendo, por outro lado, replicar a opinião de um jovem romancista inglês quanto ao lugar do humor no interior de uma obra literária. Isto é, segundo o escritor, o humor é importante, mas não deve ter a prerrogativa de dizer a última palavra. Numa época de predomínio compulsório da ironia paródica, a afirmação desse romancista parece ser ela mesma um chiste de gosto duvidoso. Também não tomo literalmente a imagem da “pitada de comicidade” – que, de resto, só tem efeito, mesmo, quando o autor se vê implicado naquilo que é alvo do seu riso –, como um diapasão definitivo para considerar alguns poemas de Pignatari. Felizmente, o poeta, na linha mefistofélica da consciência do risco do auto-engano, por seu turno, sempre conseguiu identificar o canastrão (seja externo, seja interno) sob a roupagem da conveniência, a poesia sem medula debaixo da metaforização ornamental, de tal maneira que seus poemas formam um compósito crítico onde se articulam a veia satírica, a suspeição com relação às ideologias e às poéticas do naturalismo lato sensu; Décio se volta sempre fescenino a este estado de coisas; sua atitude cabe na figura do fauno que fustiga as ninfas da poesia brasileira, sistema no qual o poeta se vê controvertidamente integrado; uma forma de metacrítica sempre pronta a perturbar o sistema literário quando os seus eunucos ensaiam entronizar, de saída, grandes versos sérios (de ordinário ruins), sem perceber que, na chegada, resultarão inadvertidamente cômicos, risivelmente teatrais.
Antes de falarmos um pouco mais a propósito dessa comicidade latente que se traduz na determinação aqui e ali de irrupções experimentais sob a forma irreverente de pornografemas líricos, cumpre discutir um tópico menos divertido (mas não por sua culpa) a respeito do poeta, refiro-me a um determinado movimento de sua “obra imatura” mais ou menos embebida da atmosfera literária da época (empresto de Mario de Andrade a divisa com que nomeou sua própria produção anterior à Pauliceia desvairada).
Muito bem, com relação aos primeiros passos de Pignatari – e, não raro, a mesma avaliação é feita no tocante a Augusto e Haroldo de Campos – tem se tornado já um lugar comum lembrar, quase que em tom de censura ou de que isso parece flagrar o poeta com a boca na botija, fazendo algo indevido, ou seja, que ele, Pignatari, começa a sua formação de poeta ao pé da geração de 45. Mas tal nota sabe a uma espécie de estigma de origem. Ora, anotar isso de passagem e como se representasse uma mácula em seu percurso textual, se explica mais por maledicência do que por qualquer outro motivo. Além disso, é inócuo insistir nesse retranquismo analítico disfarçado de broma. Esse mito de origem e, depois, sua reversão, acabam reforçando a noção de que a primeira impressão é a que, de fato, não persiste, a não ser, é claro, para quem vasculhe o passado determinado a achar capitulações e hesitações culposas. De resto, de um ponto de vista aristotélico – ou de uma interpretação que não se limita nem com a verdade nem com a mentira – o suposto sobrepasso de 45 na carreira do jovem Décio Pignatari só indica um ponto de partida, um começo, ou seja, foi o quê, de per si, não se seguiu necessariamente a outra coisa, mas após o quê, naturalmente, existiu ou se produziu outra coisa.
A propósito, por que somos mais intransigentes ou perversos com 45 do que com 22? Para muitos a pergunta soará ingênua, ou melhor, retrô. Ainda assim, insisto nela. Afinal, Mario de Andrade, mais velho, desdenhou seu compromisso inicial com o modernismo. Manuel Bandeira, às vezes, dava de ombros às ideias da Semana de Arte Moderna. Mas de lá para cá, das fontes de 22 ninguém se envergonha e, até onde sei, isso jamais é apontado como ônus. Em certo sentido chega a ser óbvio, já que o alto modernismo se converteu em “uma das manifestações mais oficiais da cultura ocidental”. Em fim de contas, trata-se, por assim dizer, de um classicismo travestido de iconoclastia. Não se trata aqui de pôr em causa o modernismo – o que por um lado sempre será salutar fazê-lo –, nem de tentar entronizar ou, pior, de revisar em tom de reparação os poetas de 45. Cabral, talvez o maior poeta (brasileiro) depois de Bandeira, sempre sustentou uma atitude elevada com relação aos seus pares de 45, ao mesmo tempo, não há linguagem poética mais distante desse ideário estético neo-parnasiano do que a sua. Dizer que o fato de metrificar denuncia a sua filiação a essa geração, é tão verdadeiro quanto dizer que sua aparente indiferença à poesia concreta representa um repúdio frontal ao movimento.
A poesia de Décio Pignatari não veio a se tornar o que é hoje nem apesar, nem graças aos seus primeiros passos um pouco fora e um pouco dentro da ordem unida da geração de 45. A imagem cambiante do percurso poético de qualquer poeta cancela as reduções a que estão fadadas todas as leituras professorais devotadas à captura das motivações de tal percurso. As contradições criativas de Décio Pignatari vão sendo respondidas (ou não), deslocadas, perseguidas ou continuadas com outros gestos criativos de linguagem. Cada poema que leva a efeito, cada hesitação entre o visivo e o discursivo, entre a redundância e o estranhamento – o signovo como talvez preferisse – indicam um autorretrato esboçado a partir de um vigoroso desejo de linguagem, uma questão que o poeta dispara contra si mesmo, e a solução é interrogação permanente.
Mas retomemos, agora, o fio dessa comicidade, desse deboche em sentido mais amplo ou, ainda, como parti pris de corte metalinguístico, e que se manifesta desde cedo em Décio Pignatari. Evoco, a propósito, a conhecida capa de Teoria da poesia concreta — compilação dos textos de intervenção crítica e dos manifestos do movimento —, cujo projeto visual e design, de autoria do poeta, se referem abertamente aos estilemas da pop art. Para quem ainda não teve o livro em mãos, segue uma breve descrição dos signos que a imaginação de Décio Pignatari fez estampar na cobertura da obra: justapostos à esquerda, verticalmente, vê-se em uma colagem (uma tira) quatro quadrinhos (“comics”) resumidos ao seu essencial, ou seja, neles estão representados e recortados contra o fundo branco quatro personagens clássicos dessas histórias; em cada comic vemos sempre um desses heróis (sequencia de poses visualmente isocrônica) de punho cerrado e erguido encimado por um baloon comic com dizeres que lembram palavras de ordem. Portanto, de cima para baixo, o primeiro, Brucutu, diz “A poesia é concreta e participante”; o seguinte, Flash Gordon, afirma “Há anos os momirratos de antânio tentam destruir a poesia concreta”; Mandrake, o terceiro, com retórica poundiana, antecipa “A realidade destruirá os falsos mágicos diluidores”; por fim, destoando oswaldianamente do trio de heróis estadunidenses, o grande e sem nenhum caráter Amigo da Onça, como bom mulato brasileiro, dispara “Tó pra vocês chupins desmemoriados”.
A imprecação contra os opositores da poesia concreta vertida em tal visualidade intersemiótica e algo antropofágica (o sarcástico bucho ruminante feito um encosto) confere uma dimensão cômica, quase que de vaudeville, para não dizer de chanchada, aos transes polêmicos que marcam o surgimento do movimento no interior pretensamente circunspecto do fazer literário do período. A persona do Amigo da Onça, versão macunaímica à cultura pop do momento, serve de modelo a essa assemblage transgressiva registrada na capa de Teoria da poesia concreta e que revela o tanto de iconoclastia e o tanto de iconofilia combinados no apetite estético de Décio Pignatari. Neste ponto vale referir algo sobre o “salto participante” proposto por Décio para a poesia concreta, e que, me parece, alcança eficiência não porque supostamente põe em prática a máxima de Maiakóviski de que o conteúdo revolucionário exige uma forma revolucionária, mas sim porque conseguiu arredar um pouco a perspectiva do ativismo concreto dessa claustrofobia mallarmaica, da prepotência da esterilidade e da rarefação, espécie de transculturação, em sentido fraco, da “poesia pura” simbolista. Só quero deixar registrado que essa opção poética (ou seja, a medida mallarmaica via concretismo) não é pior nem melhor que qualquer outra, o ponto é o seu anacronismo algo puro-sangue, a verticalização histriônica do sinal de menos. Neste sentido, soluções como o “beba coca (…) caco/ cola cloaca” de Pignatari, o ciclo de poemas Forma de fome: servidão de passagem (1961) de Haroldo ou os popcretos de Augusto de Campos injetam um pouco de sujidade, antipoesia e virulência no cristal da “fome de forma” dos poetas do movimento.
Pessoalmente, se for mesmo imperioso defender ou aceitar uma poesia de viés participante, ela só o será, para mim, segundo a acepção em que Mário Faustino (1930-1962) empresta ao qualificativo, a saber, que tal linguagem será “participante como a poesia deve ser participante, i. é., em todos os sentidos: cultural, social, existencial, político, estético. Participação nos destinos do homem e nos destinos da poesia”.
Permitam-me, agora, arriscar algumas ideias e relações. Décio Pignatari (com dois ou três poemas, não mais) se situa para a poesia assim como Jean-Luc Godard se situa para o cinema. Sem descurar das diferenças, ambos se dispõem a rir de si mesmos na fatura de suas obras. Mas, olhando mais de perto, eles se encontram pelo avesso. Godard, pelo menos em parte de seu movimento cinematográfico, é nostálgico dos livros e da literatura, tradições, que segundo seu ponto de vista, sucumbem frente ao poder capitalista da imagem sem fundo da televisão. Godard é ambiguamente maoísta. Décio, crítico da esquerdofrenia, se aplica na afirmação dos novos meios e da cultura de massas, isto é, se distancia, em sua fase de “vanguarda”, dos livros e da figura do poeta que considera “um pobre diabo”, personagem atônito diante da ruína de seus modelos; para ele os cânones dão lugar aos produtos sob medida (custom made goods). No meio do caminho, ambos indo em direção aparentemente opostas, se encontram no purgatório dos signos, na aventura da ruptura intersemiótica. O riso que se volta sobre si mesmo. Décio no poema pré-concreto “semi de zucca”, poema mallarmaico, de estrutura rarefeita e elíptica (já antecipando a ambivalência do poema visual que em seu centro faz o simbólico se precipitar em direção ao icônico), é o caso, no poema, dos parênteses sempre à beira da metamorfose: rabiscos quase sem intenção alfabética. Veja-se este excerto:
Entretanto, o engraçado está nas linhas por onde termina (e por onde começa a nossa leitura), ou seja, nas notas e comentários que Décio redige aos poemas. Mas, ao contrário da tradição eliotiana, a nota a “semi di zucca”, e apenas ela (pois com relação às outras o poeta segue o rito), desconversa, faz pouco caso com a comiseração ao dedicado hermeneuta, enfim, apenas fornece a tradução protocolar e esturricada do sintagma-título, isto é, semi di zucca = “sementes de abóbora”, e acrescenta: “Secas e salgadas, aqui como na Itália, comem-se”. O menos não é mais, o menos é menos. Não estamos longe do koan (anedota zen), do sarro contra a seriedade de fachada, contra o “conteúdo” do poema a ser decodificado; é como se o poeta (amigo da onça) nos convidasse a colher peras ao olmo. No filme Notre Musique, Godard faz uma operação similar; em uma cena do filme, já no encerramento de uma aula sobre o uso do campo e contracampo na cinematografia, uma moça pergunta a Godard se ele acha que as câmeras digitais oferecem novas possibilidades à narrativa do cinema, corte para um close-up do rosto enrugado do diretor e para-ator que fecha os olhos e permanece em silêncio durante alguns segundos, corte. Música calada. Não há resposta. A recusa à redundância e ao previsível é o que subjaz a ambos os casos. Cabe, ainda, lembrar Drummond: a poesia que interessa “é um sinal de menos”.
Em outro filme, Prénom Carmen, Jean-Luc Godard, mais uma vez como para-ator, (des)faz o papel do diretor de cinema, ele mesmo, envelhecido e decadente, mergulhado em uma crise de insanidade. Sua atuação é paródica no mesmo sentido em que Borges, por exemplo, o é em “Borges e eu”, micro-ensaio onde se põe ironicamente em paralelo com o seu duplo, operação maníaco-hilariante com que Godard se identifica. Em seu cinema de autor-diretor e para-ator, o francês não se envergonha de sugerir que seu sósia criou certas obras válidas, mas que essas obras fílmicas não lhe podem salvar, talvez porque os sucessos não pertencem a ninguém, nem mesmo ao duplo, mas à linguagem e à tradição.
O Godard participante durante a filmagem de Sympathy for the Devil (1968)
Com afeito, a personalidade do cineasta Godard está sempre prestes a se perder em seu cinema de colagens e de citações intersemióticas, os fragmentos que jamais se unirão de sua utópica imagem fílmica se referem obsessivamente à tradição de um cinema que ele mata e ressuscita. Também paródica é a leitura do poeta brasileiro com relação ao seu próprio envolvimento com a arte da poesia, tanto que a sua se comparada às vozes de Haroldo e Augusto (seus iguais sempiternos) faz com que estas soem empostadas. Para Décio Pignatari o poema de valor pressupõe uma dose de instabilidade, pois no gesto poeticamente crucial e excruciante se configura uma chance de linguagem que tanto se inaugura quanto se exaure. A propósito disto a peça “Valor do poema” parece fazer alusão, vejamos duas estrofes:
A conjunção imaginada entre os Décio e Godard não me parece totalmente forçada, e, a este respeito, refresco a memória do leitor para uma das epígrafes que Décio Pignatari aplica ao pórtico do seu livro de estreia O carrossel (1950), cuja escolha já sugere o seu interesse pela sétima arte, trata-se da fala: “— Ride the pink horse.”, do film noir de mesmo nome dirigido e estrelado por Robert Montgomery, produção da Universal-International Picture de 1947. A par disso, suas abordagens de cunho intersemiótico apontam aqui e ali para a importância do cinema e seus protagonistas (Stanley Kubrick, nomeadamente em seu Laranja Mecânica/A Clockwork Orange onde a violência, também via idioleto, estilizada até o limiar de um erótico refém da genitália, é um dos seus interesses), e inclusive aqueles cuja inventividade mais radical não foi reconhecida em sua época, caso exemplar é o do comediante e cineasta americano Jerry Lewis a quem Décio Pignatari admira e dedica lancinantes, surpreendentes notas a alguns de seus filmes.
O poema visual Organismo, vai em linha vizinha ao cinemático/cinético. Os fotogramas-sintagmas são ampliados a cada virar de folha (slide folheado, animação analógica em virtual staccato de cromos) na página-écran em um movimento de zoom. O close-up final nos coloca na situação de fruição indecidível entre o icônico e o simbólico.
A par de sua bem humorada intransigência com relação à estabilidade da hipotaxe na estrutura dos discursos, não é difícil perceber que os interesses de Décio Pignatari talvez se aproximem da visão, ou melhor, do sentimento do antipoeta Nicanor Parra com relação ao espetáculo contemporâneo do qual participamos, indecisos entre a credulidade e o cinismo; para o chileno (poeta cuja marca de sua poética também é a da hesitação entre o icônico e o simbólico, entre o verbal e o não-verbal), para o chileno tudo em nossa época se tornou equívoco, a começar pela própria linguagem. Mas voltemos às interações entre o poeta concreto e o diretor-autor da nouvelle vague. Décio e Godard interpretam a aparente estabilidade (redundância) da linguagem do mundo mercantilizado por meio do equívoco mundo das linguagens (o valor precário da invenção), os círculos infernais dos signos: “vertiginoso horizonte”. Ambos, além disso, sucumbem à metáfora priapeia. Em Prénom Carmen, o personagem do diretor, o próprio Jean-Luc Godard, depois de pedir para enfiar o dedo no cu da enfermeira que, sacudindo o termômetro para tirar sua temperatura, vem acompanhar a evolução do quadro do paciente, o tio Godard, não satisfeito, investe libidinoso contra a sobrinha que decide visitá-lo no manicômio: o cineasta doente, mentalmente debilitado, tenta abusá-la nostálgico de uma paixão que nutriu por ela ainda garotinha.
Em Céu de lona (texto dramático publicado em 2003), o Machado de Assis, persona e estrutura verbal recriado por Décio Pignatari – esse pícaro concreto da idade eletro-eletrônica –, tem um intenso apetite sexual; através das cenas de um drama vagamente qorpo-santense [2] o bruxo casmurro se torna o “grande lascivo” que é; sua esposa, a lusitana Carolina, o apelida mimosamente de Machadinho. O poeta de Osasco, com esse divertissement teatral segue as pegadas indiciais de Machado de Assis, pois no trânsito de linguagem do prazer do poema ao poema do prazer, sem desprezar os resquícios de pornografemas que enganam o gozo do qual nos ressentimos, vislumbramos Pignatari sublinhar a diatribe do Machado, crítico de teatro à sua época, segundo a qual “a realidade é boa, o realismo é que não presta para nada”. O texto de Céu de lona não atenua sua erotização ficta, pois ela se funda como desmedida do desejo pelos signos, coisas-semas que Décio Pignatari apalpa em cegueira tirésica (feito a “tesão vã” do ferruginoso canhão colonial tematizado em poema de João Cabral) criptografando e fruindo o íntimo desses seres semióticos na própria pele do aparente com que se honoram e se degradam.
Na faixa mais baixa (quer dizer, quando o que está em causa é a decisão de falar a partir de tal ângulo) de um visivo trobar clus (obscuridade conquistada em função da escassez de elementos)ou, ainda, de um escarnecedor trobar culo (sinédoque da transgressão do mal-dizer pornógrafo) Décio, em Stèle pour vivre nº 4 (1968),submete o sentido mais puro que os diluidores costumam encarecer nas palavras de Mallarmé a uma regressão entre fálica e anal. Versos a um só tempo sugestivos e opacos de Un coup de Dés são decupados ao extremo e confrontados com imagens, desenhos-ícones que aludem ao pênis (elidindo-o em metáfora) ou o representam quase que realisticamente. Vejamos.
Outra intervenção de Décio Pignatari de que gosto especialmente é o álbum de pranchas caligráfico-visuais intitulado Oswald psicografado por Signatari (1981), publicado por Erthos Albino de Souza mantenedor das Edições Código. Uma breve notícia de como consegui essa raridade bibliográfica. Na verdade, meu exemplar é um presente que me foi ofertado pelo próprio editor que acabei conhecendo durante o período em que vivi em Salvador. Por outro lado, quem me pôs em contado com Erthos foi o poeta José Lino Grünewald com quem travei conhecimento na breve estada fluminense feita a caminho da Bahia em 1989. De José Lino, também publicado pela Código, tenho o livro Transas traições traduções, mas já não recordo qual dos dois me deu essa obra. Fecho o parêntese.
E é justamente em Oswald psicografado por Signatari que Décio simula mediunicamente a alegria da influência que o criador da poesia pau-brasil exerce sobre ele. A experiência de linguagem levada a efeito no número especial da revista Código, reconhece o legível nessa condição precária de scriptio defectiva em que a imprecisão da escrita de punho (que confina com o desenho, “rabisco sem intenção alfabética”) materializa indicialmente a ambiguidade semântica, corolário da função poética. Ainda seguindo a corrente alterna da musa priapeia, vários desses psicogramas oswaldianos evocam a retórica do orgasmo pornógrafo. Mas ao contrário, por exemplo, da arte-final mais trabalhada, em termos gráficos, do ideograma “Bibelô(?)” (1980) onde Décio Pignatari-Signatari funde em montagem metonímica pênis, seios e vagina, os fesceninos epigramas caligráficos em questão têm, por sua vez, uma fatura mais naïf, seu resultado “tosco”, premeditado, obedece, por assim dizer, ao desígnio de uma “arte-inicial”.
Décio se aproxima, assim, tanto dos desenhos de menino imiscuídos no Primeiro Caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade (1927), quanto daquela gestualidade áspera e algo punk das tatuagens-poemas ilegivelmente fictas e proliferantes de Edgard Braga, que Régis Bonvicino organizou e reuniu em Desbragada (1985). Comparemos.
(Oswald de Andrade)
(Edgard Braga)
Enquanto Décio Pignatari ainda se interessava em poesia por aquilo que não era mais poesia, seu foco radicava na experimentação de formas poéticas que dessem conta de presentificar, através de uma dialética de saturação-esvaziamento de procedimentos de linguagem (e Organismo me parece modelar a este propósito), um pensamento icônico, espécie de perversão ou de réplica translatícia — intra e entre códigos — ao pensamento verbal sobre o qual a poesia mais tradicional se assentava e que cumpria pôr em questão. E é neste sentido que Octávio Paz, em Transblanco (1986), considera, com alguma generosidade, o escopo da poesia concreta a crítica tanto do pensamento discursivo quanto da nossa civilização. Por esta razão, Décio propunha (não sem algum indício de ideologia hippie, fato que para o período não chegava a comprometer o cidadão, pelo contrário, até lhe facultava certo charme), propunha a fórmula-divisa: “a poesia é o Oriente do signo”.
Décio Pignatari
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Notas
[2] Qorpo Santo (1829-1883). O autor de Mateus e Mateusa é, sob todos os aspectos, um artista revolucionário. Fundador. Em termos poundianos, não há outro meio de classificá-lo senão como inventor. Segundo Guilhermino César, foi o precursor do Teatro do Absurdo [QORPO SANTO, José Joaquim de Campos Leão. Teatro Completo. Fixação do texto, estudo crítico e notas de Guilhermino César. Rio de Janeiro, Serviço Nacional de Teatro, Fundação Nacional de Arte, 1980]. Já para outros, um surrealista avant-la-lettre. De minha parte, restrinjo-me a destacar seu teatro-síntese, antiteatro, teatro para acabar com o – ou um certo tipo de – teatro: a well made play, modelo do drama realista do século 19, como anota Leda Martins em seu O Moderno Teatro de Qorpo Santo, (1991). A dramaturgia de Qorpo Santo se limita com a antiarte – razão pela qual Décio Pignatari declarou que a linguagem qorpo-santense pode ser considerada pop. Os distúrbios afásicos de sua linguagem concorrem para a desestruturação da cena teatral. Não obstante a prosa sobre a qual se assenta toda a sua dramaturgia não-regulamentada, o que Qorpo Santo faz aproxima-se mais da poesia. Suas comédias são construídas segundo um princípio de montagem: blocos narrativos que se justapõem sem que haja entre eles o menor fio de enredo. Linguagem em dissolução, “a ida inacabada do subjetivo ao objetivo”. Ou como argumenta Leda Martins: “pura experimentação, flashes de situações diversas que se sucedem no palco sem apresentarem sequência ou unidade”. Qorpo Santo: sexismo carnavalizado, mescla de misoginia e feminismo grotesco; machismo circense, homem-palhaço travestido de mulher: laranjas que pululam dentro do sutiã. De outra parte (sugestão para quem ainda não leu o autor gaúcho), não será custoso perceber que the hard and the soft na invenção verbal oitocentista brasileira estão emblematizados, respectivamente, em Qorpo Santo e Machado de Assis.